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Aberta e exposta na mesa está uma célula humana. Dentro dela, uma mitocôndria, um retículo endoplasmático liso e demais organelas. Enzimas, hormônios e material genético também são visíveis, circulando pela estrutura e cumprindo suas funções biológicas. Nada disso, entretanto, está sendo estudado por pesquisadores de jaleco, debruçados sobre microscópios e placas de análise no laboratório. São estudantes reunidos em volta do tabuleiro do jogo Cytosis (Citose, em português), atentos às regras, peças em movimento e cartas em mãos.

Cytosis é “um jogo sobre biologia celular”, diz seu encarte, que simula as funções e os processos realizados pela célula, como metabolismo da glicose, expressão gênica e respiração celular. Cytosis faz parte de toda uma gama de jogos de tabuleiro modernos que tematizam a ciência e, por isso, funcionam como ferramenta pedagógica. 

Aprender brincando é a premissa da chamada educação lúdica, que embasa o uso de jogos em sala de aula. Essa é uma maneira divertida e estimulante de apresentar conteúdos, dialogar com a realidade prática cotidiana e apropriar-se do conhecimento. Ou, até mesmo, uma alternativa dinâmica aos métodos de aula tradicionais, meramente expositivos e individualizados. 

“Quando trabalhamos com jogos, estamos estimulando a parte afetiva e emocional. Temos o envolvimento direto do aluno”, diz Carolina Spiegel, professora da pós-graduação de Ensino de Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e coordenadora dos projetos de extensão “Jogos no Ensino de Ciências” e “Jogos para o Ensino de Biologia Celular e Biotecnologia”. 

O jogo garante a participação e o aprendizado coletivos, estimulando aptidões como a socialização, o diálogo, o respeito às regras e a maturidade emocional para perder, vencer e lidar com frustrações. Mas não só isso, diz a pesquisadora. “Quando você joga, você pode errar. E normalmente no processo de ensino e aprendizado, o erro é visto como um problema”, aponta Carolina. 

“Na escola, estamos sempre ressaltando: tirou 9,5 ou 5,4 na prova. É sempre o que você não fez, o que você errou. E de repente, no jogo, isso não tem importância”. O que importa, ressalta a professora, são as oportunidades para que o aluno pense e reveja estratégias, engaje-se com os outros colegas e resolva problemas incitados pela mecânica da brincadeira.

Memória do jogo

Nossa relação com os jogos é ancestral e fortemente cultural. Para os egípcios, em especial os faraós, uma partida de Senet representava o caminho de migração da alma para a outra vida após a morte. Com o Mancala, de origem africana e um dos jogos mais antigos que se tem registro, desafiava-se as habilidades matemáticas e agrícolas dos dois oponentes, que precisam semear e capturar as sementes do adversário. 

A lista é extensa: até mesmo o movimento sufragista, em luta pelo voto feminino no início do século 19 na Inglaterra, produziu o jogo Suffragetto com o objetivo de representar seu ativismo e expandir as suas ideias protofeministas.

São tradicionais as associações do jogo com a experiência cultural humana, seja religiosa e mítica, social e política. Com a prática científica não seria diferente. Assim como o Cytosis, inúmeros outros jogos possuem a ciência como temática e servem como proposta educativa. Evolution — sobre a adaptação das espécies — e Kariba — sobre cadeia alimentar — são alguns exemplos. 

Matérias como a matemática, a história e a geografia também estão presentes no universo dos jogos de tabuleiro. Timeline, por exemplo, propõem que os participantes organizem as cartas em ordem cronológica. Cada carta, por sua vez, possui um evento histórico ou invenção humana importante. O objetivo do participante é colocar esses acontecimentos em ordem correta numa linha do tempo. Uma versão com fatos históricos do Brasil, chamado Timeline: Brasil já existe e, de maneira divertida, pode ajudar o professor a introduzir, expandir e reforçar os conteúdos.

“Duvido que se eu tivesse dado uma aula expositiva, quatro anos depois eles iriam se lembrar do que foi trabalhado”, provoca Carolina ao contar sobre os alunos que a encontram e recordam da sua presença, do conteúdo e dos jogos apresentados por ela em sala de aula. “Talvez você não trabalhe tantos conteúdos, mas a qualidade deles, o quanto, de fato, teve de aprendizagem significativa, e o que vai ser levado para a vida por causa dessa experiência é diferente”, sustenta. 

Diante de uma experiência lúdica, principalmente a que envolve jogos, é necessário, antes de tudo, estar preparado para os imprevistos e bem fundamentado nos seus objetivos pedagógicos. “O professor precisa conhecer sua turma e saber como incluir todos os alunos naquela atividade”, aponta Carolina, ressaltando ainda a necessidade de ajustar e adaptar atividades para a inclusão de alunos com deficiência nas ocasiões de aprendizado.

O desafio surge ainda devido ao caráter individual da ludicidade. “O que é lúdico para um, não necessariamente é para o outro. Tem gente que odeia jogo, logo essa vivência não vai ser lúdica para ela. Jogar é um ato voluntário. Você não pode forçar o aluno a entrar naquele universo. Nós temos que respeitar e pensar em estratégias diversificadas, em outras atividades, como um teatro, um filme e um júri simulado”, explica.

— Foto: Tomasz-Bogusz.

Brincadeira é coisa séria

Os cuidados não param por aí. Se cabe ao professor defender e compreender os limites de suas práticas pedagógicas em sala de aula, fora dela essa atenção e convencimento são indispensáveis. “Não é toda escola que dá liberdade para o professor. Além disso, não é apenas a escola, é a comunidade escolar, ou seja, os pais que pressionam para que se trabalhe mais e mais conteúdo”, afirma Carolina. 

Embates são comuns, por isso, a chave é fundamentar a atividade lúdica por meio de um planejamento educacional e conhecimentos embasados na utilidade dos jogos. Carolina cita o caso de um professor que, ao aplicar um jogo de RPG em sala, foi confrontado pelos familiares religiosos de algumas crianças que associavam o game à prática e ao imaginário do satanismo. As preocupações dos pais, por sua vez, foram refutadas pelo professor que, com um discurso embasado, argumentou sobre os preconceitos contra o RPG. 

“É importante convencer as famílias, trazer esse trabalho para elas. É um trabalho de formiguinha”. Para a professora e pesquisadora, a resistência dos familiares (e até do corpo docente e pedagógico da escola) nasce de uma falta de repertório lúdico. Segundo ela, se somente conhecemos um tipo de método, nesse caso, o expositivo, tendemos a defendê-lo, uma vez que esse é o modelo que nos foi ensinado. “Os educadores vivenciarem experiências lúdicas na sua formação propicia que eles sejam também professores lúdicos. Essa característica não é inata, ela tem que ser desenvolvida”, aponta.

Vivenciar o lúdico, nesse sentido, é crucial para a aceitação da comunidade escolar e o desenvolvimento de novas práticas pedagógicas. É com esse intuito que a Escola Oga Mitá, na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, aos finais de semana, promove o evento Joga Mitá, em que as famílias são convidadas a conhecerem os jogos e brincarem com os filhos e professores. 

Nele, inclusive, comenta Carolina, foi testado pela primeira vez o jogo em desenvolvimento ‘Ciclo do Poder’, pensado pela pesquisadora da Fiocruz, Rafaela Bueno, e que tematiza a menarca, a primeira menstruação de uma mulher. “O jogo fala de assuntos que são tabus, e eventualmente difíceis de serem colocados. A menstruação é um desses temas e ele [o jogo] partiu da percepção da Rafaela Bueno com a filha adolescente. Ela identificou que as amigas da filha não sabiam coisas básicas. Faltava informação”.

Com seus orientandos, alunos e colegas, Carolina viu nascer diversas experiências lúdicas de aprendizado. Desde um RPG sobre os determinantes sociais, econômicos e políticos das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, até um Escape Room [jogo presencial com desafios e enigmas] sobre a história da vacina da varíola no Brasil. A pesquisadora já desenvolveu alguns: “Em paralelo com o mestrado, desenvolvi o Célula Adentro, um jogo baseado na solução de problemas nos quais existem pistas que ajudam o aluno a resolver e apresentar uma solução”, conta. 

O jogo envolve a resolução de casos sobre biologia celular e pode ser brincado em cooperação ou competição. Além disso, o conjunto de regras, tabuleiro, cartas e peões do Célula Adentro estão disponíveis online para baixar e imprimir em casa. 

Sua outra criação, Fome de Q?, segue esse mesmo modelo, chamado “imprima e jogue” (Print and play, em inglês), e trata de assuntos de nutrição e saúde. Esse tipo de jogo possui baixo custo e um amplo alcance, indica Carolina. Por conta dessas características, é mais acessível levar e testar os jogos em múltiplas realidades escolares. 

“Sou uma defensora de que os jogos precisam estar presentes nas escolas — e em qualquer escola”, afirma. Mas adverte: “Tem que desenvolver [o jogo] avaliando seu público. Não adianta fazer um jogo e depois falar ‘aquele vai servir para a escola pública’. Não, tem que pensar que escola pública é essa? Estadual, municipal? Elas são muito diferentes entre si”.

Uma dificuldade de leitura e interpretação de texto dos alunos pode ser um empecilho para a apresentação de algumas experiências lúdicas. Da mesma forma, a falta de infraestrutura da escola pode impedir a aplicação de novas propostas didáticas. Além disso, os jogos educativos não são classificados como livros didáticos pelas regras fiscais, logo não são isentos de tributação. “Quem sabe um dia a gente consiga pensar em um Plano Nacional de Jogos Didáticos, e que as escolas tenham ludotecas onde esses jogos estejam disponíveis”, sonha Carolina.

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