Lutas contra ameaças de remoção e resistência marcaram a ocupação do antigo litoral que hoje abriga o Complexo da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Parte da história do lugar e de seu cotidiano estão presentes no livro “A Maré em 12 Tempos”, lançado em dezembro de 2020. Organizado por Antônio Carlos Pinto Vieira, Cláudia Rose Ribeiro da Silva e Luiz Antonio Oliveira, cofundadores do Museu da Maré, o livro traz depoimentos e textos de moradores, além de fotografias do acervo da instituição, organizados pelo mesmo fio narrativo da exposição permanente em cartaz no museu, fundado em 2006, revelando as diferentes temporalidades que marcaram e trouxeram identidade a esse território. “Maré em 12 tempos” traz ainda depoimentos de Gilberto Gil, de Ivanir dos Santos, babalaô e doutor em História, e de Renato Gama Rosa, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), e revela como a região se conserva, até os dias de hoje, como espaço de defesa da diversidade cultural, preservando memórias e histórias vivas de cada um dos que o construíram e o constroem cotidianamente. Disponível para leitura no link: https://bit.ly/36gSV74, o livro traz belas e curiosas imagens da região. Radis, com a ajuda dos curadores, antecipa nesta edição algumas das fotos e trechos do livro.
Tempo da água — A imagem registrada por Anthony Leeds, em 1969, hoje no arquivo de dona Orosina Vieira, mostra o início da ocupação do lugar. De lá para cá, a Maré sofreu com muitas ameaças de remoção. Fiscalizações, violações e proibições, no entanto, foram combustíveis para a luta e resistência coletiva. “Segura aí, meu compadre, compra teu material, no chão não tem mais lugar, mas tem lá em cima d’água. Faz uma pontezinha, vê se tem um lugar… Ah! Tem um lugar que dá pra fazer… Faz sua pontezinha, deixa lá, quando for sábado ou domingo, que não tem fiscalização, pega e levanta o barraco”, lembra Atanásio Amorim, morador.
Tempo da festa — O registro da Passarela do Jacaré, feito em 2015 por Luiz Baltar, mostra que a Maré dos dias de hoje reconhece a importância do trabalho e da resistência dos moradores no lugar, mas que a festa é imprescindível: “Sem a festa a Maré já teria acabado”, apontam os moradores em texto coletivo. A ênfase dada à narrativa do espaço dedicado à festa não é exagerada. Andando pelas ruas da comunidade é possível perceber que a festa faz parte da identidade do lugar. “Festejar vitórias, conquistas e a passagem do tempo. Festejar traz esperança e também pode ser um ato revolucionário, que celebra e alimenta processos de mudanças profundas da realidade”.
Tempo do cotidiano — Uma mãe empurra um carrinho com os filhos gêmeos e é fotografada por João Roberto Ripper, em 1991. A imagem, hoje no arquivo de dona Orosina Vieira, mostra a luta dos moradores para se estabelecerem na Maré, com casas de alvenaria ocupando o lugar dos barracos. “As crianças ocupavam as ruas para brincadeiras e os adultos tomavam conta. O cenário era um retrato da união entre os moradores”, lembra a moradora Vilma Santos. “Apesar das dificuldades e a falta de recursos como luz, água e esgoto, os moradores eram solidários e não faltava ajuda para tomar conta dos filhos de alguma mãe que precisava ir ao médico ou dividir algum mantimento”, relembra.
Tempo da ocupação – A foto aérea de João Mendes, em 1978, dá uma visão geral da Maré. No livro, o registro do início: “A praia estava coberta de pedaços de madeira trazidos pela maré. E foi isto exatamente que uma mulher inteligente fez, ignorando os protestos de seu marido e começando a juntar pedaços de madeira. Ela escolheu um ponto seco, conveniente, numa pequena elevação próxima ao mar e levantou seu pequeno barraco com os materiais que a maré trazia de graça”. O texto, extraído do relatório do Morro do Timbau, produzido para o Habitar/ONU, em 1983, narra a história de pessoas como dona Orosina Vieira, precursora na região.
Tempo da criança — Museu é lugar de histórias, indica a imagem de Naldinho Lourenço, feita em 2009. “No Museu da Maré, em sua exposição de longa duração, o tempo da criança está instalado entre o tempo da fé e o tempo do medo, retratando as crenças e o enfrentamento dos menos favorecidos no universo globalmente situado da favela da Maré. A memória coletiva é transmitida aos pequenos por meio dos contadores de histórias e as exposições de fotos e objetos”, diz Luiz Antonio Oliveira, um dos cofundadores do museu, que observa como as crianças subvertem a dicotomia entre as casas e as ruas. “Ela pode transitar em liberdade na casa e abrigar-se na rua”.
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