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Quanto mais as pessoas com deficiência estiverem nos espaços como todos os demais, mais conseguiremos mudar as cidades. Essa é a avaliação de Éverton Luís Pereira, coordenador do Observatório sobre Políticas sobre Deficiência da Universidade de Brasília (UnB), sobre a necessidade de super um modelo biomédico em relação às pessoas com deficiência. “Elas devem estar em todos os espaços, e não em espaços exclusivamente e somente para elas”, argumenta, recorrendo a uma visão que garanta o acesso a todas as políticas públicas. 

Éverton considera que é preciso superar o olhar biomédico sobre as pessoas com deficiência e investir numa perspectiva baseada no modelo biopsicossocial, que considera a pessoa em sua integralidade. “O problema não é não enxergar, mas não ter equipamentos que possibilitem que as pessoas que não enxergam cursem o ensino superior em uma universidade adaptada”, diz. Nesta entrevista à Radis, Éverton critica ainda a ausência de um instrumento unificado de contagem das pessoas com deficiência, o que para ele “é um grande perigo” do ponto de vista do acesso a bens e serviços públicos e caminho certo para a exclusão dessas pessoas.

Qual a sua opinião sobre a criação de “ambientes especializados” para a educação de pessoas com deficiência, prevista pela nova Política Nacional de Educação Especial [instituída pelo governo federal em setembro de 2020, por meio do Decreto 10.502, e suspensa pelo Supremo Tribunal Federal em dezembro]? 

Essa é uma perspectiva individualizante do modelo biomédico. Eu vejo a questão da educação com a mesma lente que enxergo o todo. Quanto mais as pessoas com deficiência estiverem nos espaços como todos os demais, mais conseguiremos mudar as cidades. Elas devem estar em todos os espaços, e não em espaços exclusivamente e somente para elas. Se pensarmos no sistema de saúde, pela regulamentação e pela forma como ele está organizado, a pessoa com deficiência percorre o mesmo caminho que as outras. Ela não precisa só da reabilitação. Algumas delas precisarão, mas outras vão precisar da Atenção Básica, por exemplo. Podemos pensar a educação um pouco assim também. As pessoas com deficiência precisam ser alfabetizadas, estar na escola, na universidade, na pós-graduação. Algumas delas vão precisar de recursos de acessibilidade e tecnologia assistiva, que devem ser disponibilizados. Idealmente, se levarmos em consideração o modelo social, esses recursos deveriam estar na escola regular, que deveria estar aberta e acessível para todos. É a escola que tem que se adaptar; que precisa ter livros, aulas e prédios acessíveis para todos. 

Como você avalia o impacto da pandemia de covid-19 na vida das pessoas com deficiência?

Não temos oficialmente nada nos bancos de dados sobre pessoas com deficiência no Brasil e covid-19 no Brasil. Não há informação sobre deficiência no sistema de registro da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Estamos fazendo uma pesquisa para ver como elas foram afetadas e já temos mais de cinco mil respostas. Mas, para além da doença, observamos que essas pessoas já viviam em isolamento forçado antes da pandemia. Quando perguntadas sobre o que mudou na rotina, elas dizem que pouco saíam. São pessoas com poucos amigos. São violências que já estavam postas e que se intensificaram com a covid. Fiquei sabendo de um caso de uma pessoa com amputação de membro que teve covid. Ela procurou atendimento no Hospital de Campanha de Ceilândia, em Brasília, que é inacessível, e caiu. O hospital funciona, mas, para quem?

Para as políticas públicas, quem são consideradas pessoas com deficiência no Brasil?

A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, de 2006, tratado internacional que foi ratificado pelo Brasil em 2009, define que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. Esse conceito foi reforçado pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015. Mas, no Brasil, ao mesmo tempo em que há esse conceito guarda-chuva e que deveria instrumentalizar todas as políticas públicas, existe um conjunto de ações descoordenadas e que ainda não consideram o conceito completamente. A Lei de Cotas, de 1991, e o decreto que fundamenta o ingresso dos jovens com deficiência na universidade pública, de 2005, determina que ela precisa ter perda auditiva de tanto e elenca o conjunto de números da Classificação Internacional de Doenças, as CIDs. O acesso ao Benefício da Prestação Continuada (BCP) requer uma avaliação no INSS e para obter o passe livre é preciso ter um laudo médico emitido por um profissional do SUS. Então, não sabemos ao certo quem são essas pessoas.

Mas o que determina a Lei Brasileira de Inclusão?

Em seu artigo segundo, a LBI diz que a avaliação da deficiência, quando necessária, deve ser feita do ponto de vista biopsicossocial, interdisciplinar e multiprofissional e deve levar em consideração os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação. E diz também que o Poder Executivo vai criar instrumento para avaliação da deficiência, o que não ocorre em sua totalidade. Isso faz com que elas tenham um trânsito difícil nas políticas, o que gera exclusão, porque não conseguem compreender a malha do Estado. Por isso que a inexistência de um sistema de avaliação unificado da deficiência é um grande perigo do ponto de vista do acesso a bens e serviços públicos por parte das pessoas com deficiência no Brasil. Por vezes, uma pessoa é considerada com deficiência por não ter um membro, sendo avaliada na perspectiva do modelo biomédico, como se a deficiência fosse uma questão exclusivamente biológica ou corporal. 

O que difere o olhar do modelo médico do modelo biopsicossocial?

Tradicionalmente, olhamos para as pessoas com deficiência como aquelas que têm alguma perda de estrutura ou função do corpo, como se faltasse algo para ela ser vista como “normal”. Não tem uma perna, não escuta, não enxerga. São as deficiências clássicas pautadas nessa “anormalidade” corporal. Foi esse modelo da falta, ou da doença, que construiu as políticas no Brasil e no mundo. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), de 1993, quando define deficiência, dizia que ela está incapacitada para a vida independente e o trabalho. Só que o artigo 2 da mesma LOAS foi mudado algumas vezes. A última, por meio da LBI. Ou seja, o conceito de pessoa com deficiência agora é o mesmo dos documentos atualizados, mas a construção da política em seus princípios foi feita com base em uma forma biomédica da deficiência. Quando partimos do pressuposto que a deficiência é sinônimo de doença, que é uma questão individual e tem a ver com incapacidade, pautamos o olhar no modelo biomédico e na perspectiva de que é o corpo, e somente o corpo, que fala sobre aquela pessoa. E é dever dela, e no máximo da família, cuidar desse corpo “anormal”. Dizer para a pessoa com deficiência que o problema é dela, e não meu, é excluir essas pessoas. 

No que se ampara o modelo biopsicossocial da deficiência?

Ele questiona o modelo biomédico em três eixos. O primeiro questionamento é que deficiência não é unicamente uma questão corporal. É muito mais uma inadaptação social de uma diversidade corporal, uma restrição de participação das pessoas que tem um corpo diferente. O problema não está em não enxergar, mas não ter equipamentos que possibilitem que as pessoas que não enxergam cursem o ensino superior em uma universidade, por exemplo. Um segundo ponto: a deficiência não é uma questão individual, mas coletiva. Não é só o corpo que precisa ser observado, é o mundo que precisa se adaptar para que esse corpo possa circular livremente, como todos os demais. Por isso, ela é uma questão minha também. É preciso transformar as políticas públicas para que não só incluam, mas mudem a estrutura social. E o terceiro questionamento é a ideia do protagonismo. Quem pode falar sobre deficiência são as pessoas com deficiência, elas devem ser ouvidas. Daí que surge o grande lema: “Nada sobre nós sem nós”. Todas as ações, políticas, pesquisas, precisam levar em consideração a perspectiva da pessoa com deficiência, e não apenas a dos especialistas.

Quantas são as pessoas com deficiência no país?

A rigor, não posso dizer quantos são porque não temos uma forma unificada de definição e avaliação. Existem estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A LBI prevê o Cadastro da Inclusão, que seria um sistema nacional sobre as pessoas com deficiência, mas isso não foi feito. A avaliação unificada e biopsicossocial da deficiência está em discussão por um grupo de trabalho interministerial. Há também uma estimativa, a partir do Censo, que informa que o número de pessoas com deficiência chega a 24% da população. Mas não necessariamente essas pessoas identificadas pelo IBGE têm acesso a política pública específicas para essa população. São pessoas que apresentam algum tipo de impedimento que compromete a funcionalidade plena. Por exemplo, uma pessoa que tem uma certa dificuldade auditiva, não necessariamente tem uma deficiência. O fato de não escutar, não significa que seja uma barreira que impeça sua participação social.

A participação social então define os alcances e limites da pessoa com deficiência?

Sim. O mundo é bilíngue e eu consigo transitar por ele? Ele tem barreiras atitudinais, físicas, arquitetônicas, comunicacionais que me impedem de participar plenamente? Se sim, eu sou uma pessoa com deficiência. Se não, não sou. Digamos que eu não tenha um membro. Serei uma pessoa com deficiência se existirem barreiras que me impeçam de acessar o mundo pelo fato de eu não ter esse membro. O difícil é instrumentalizar esse conceito. Quando partimos para a perspectiva biomédica é só contar e definir por meio de um código da CID. Mas nessa perspectiva relacional, que é a biopsicossocial, precisamos pensar que nem todas as pessoas que têm um tipo de perda de estrutura ou função do corpo têm a mesma restrição de participação ou dificuldade na vida plena. Nem todas as pessoas que são cadeirantes devem ser classificadas da mesma forma pois assim transformamos o corpo como central, que é uma perspectiva do modelo biomédico. É preciso pensar esse corpo em interação com o mundo. 

Mas o padrão único que é dado pela CID não ajuda a quantificar esse universo?

Sim, mas não deveria ser avaliada somente pela CID, mas como uma pessoa que tem a CID no mundo em que está vivendo. Vamos pegar duas pessoas com a mesma CID. Uma delas vive na periferia de Brasília, é um homem negro com baixa escolaridade, que vive em uma casa que não é acessível. Já o outro mora no Plano Piloto, tem casa acessível e dinheiro. Do ponto de vista da deficiência, não posso dizer que os dois são iguais, porque a acessibilidade de um vai gerar muito mais participação que a do outro. A deficiência é uma fórmula: impedimento + barreira = restrição da participação. Se eu levar em consideração que pessoas com o mesmo impedimento são iguais, volto ao modelo biomédico e não pratico o que está proposto na Convenção da ONU e na LBI. 

Você pode dar algum exemplo de como isso ocorre?

As universidades reservam vagas na graduação para pessoas com deficiência. Se há duas pessoas com a mesma CID, quem tem direito às vagas? É preciso considerar que a deficiência não é a CID, mas a interação com as barreiras. A análise da deficiência deveria ser integral. Eu olho para o sujeito em interação com um conjunto de elementos. Outro exemplo vem das empresas que devem empregar um percentual de pessoas com deficiência de acordo com o número de trabalhadores. Elas dão preferência por deficiências mais “leves”. Então virou uma lei de cotas que inclui pouco, porque não precisa mudar o ambiente. Contratam o surdo ou a pessoa com deficiência auditiva para trabalhar no almoxarifado porque não precisa fazer nenhuma adaptação na empresa ou fazer com que outros profissionais da empresa aprendam a Língua Brasileira de Sinais ou ter um tradutor se essa pessoa vai atender o público. A não avaliação biopsicossocial leva a algumas injustiças porque o resultado não é equitativo. 

Há avanços na legislação?

Em 2013 foi sancionada a Lei Complementar 142, que já estava prevista na Constituição Federal. Ela prevê que trabalhadores regidos pelo Regime Geral da Previdência Social têm direito a reduzir o tempo de contribuição de 2, 6, ou 10 anos, a depender se são pessoas com deficiência leve, moderada ou grave. Ela foi posta em prática e hoje o INSS faz uma avaliação biopsicossocial com o Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr), para fins de aposentadoria. Eu atuei na equipe de validação desse índice. Além do índice, construímos escalas, réguas, em que as pontuações são somadas pelo médico e pelo assistente social. É uma avaliação que leva em consideração a multiplicidade da interação desse sujeito no mundo. E agora validamos o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr), que está sendo discutido no Executivo Federal. É uma questão complexa e não será de uma hora para outra que vamos resolver essa questão terminológica, principalmente quando falamos de políticas públicas. 

É correto nomear pessoas com deficiência de pessoas com necessidades especiais?  

As necessidades são especiais para cada um de nós. Esse é um debate terminológico que se dá na arena acadêmica e política. Houve um debate identitário na década de 80, principalmente na academia, que incluiu pessoas com deficiência. Em algum momento da história, a deficiência era vista como algo que a gente portava, como porto meu celular. Mas eu não tenho como pegar e deixar de lado, não querer mais essa deficiência, como se fosse uma questão transitória. Creio que “necessidades especiais” denota a noção de incapacidade. Temos que pensar que as necessidades especiais são inatas. Ninguém pode deixar de lado a sua sexualidade, gênero, cor, origem. E ficou claro que a deficiência constitui o sujeito, não é somente uma parte dele. 

Fala-se hoje em capacitismo. O que significa? 

Temos uma sociedade que olha para alguns sujeitos e os coloca em um espaço de ostracismo, subjugados e dados como incapazes. Ficamos em dúvida quando uma pessoa com deficiência visual diz que vai fazer Medicina e pensamos quem vai querer ser atendido por ela. Essa é uma perspectiva capacitista sobre aquele corpo e sobre aquela vida. Os grupos de pesquisa, mesmo trabalhando com a temática, são capacitistas. Construímos metodologias de pesquisa que não levam em consideração outras formas de estar no mundo, como o caso da deficiência intelectual. Fazemos roteiro que não são acessíveis para cegos, não traduzimos questionários para Libras e não colocamos a necessidade de intérprete nos orçamentos. Minha casa, por exemplo, não está preparada para um amigo cadeirante. Partimos do pressuposto que não teremos amigos com deficiência ou, se tivermos, eles não irão nos visitar. Projetamos slides em aula e supomos que todos estão olhando. Capacitismo, então, é não pensar na deficiência. A universidade avisa quando vamos ter um aluno com deficiência, mas eu deveria partir do pressuposto que sempre vou ter um em sala de aula. Mas eu não tenho e os alunos não chegam, não é? Essa entrevista está sendo feita com áudio. Eu tenho certeza que não foi pensado que eu pudesse ser uma pessoa com deficiência. E não foi pensado por que nós somos capacitistas.

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