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Jenice fez a escolha pela vida, ao descobrir o diagnóstico positivo de HIV em 1990, aos 30 anos. Com bom humor, hoje ela se considera uma “HIVéia”, uma mulher de 62 anos vivendo com HIV. Também em 1990, Vanessa era uma adolescente de 17 anos, com o primeiro namorado, quando se infectou pelo vírus. Depois de anos de silenciamento, ela criou o perfil SoroposiDHIVA nas redes sociais e entendeu que contar a sua história seria dar voz a muitas outras mulheres. Rafaela nasceu em 1991, quando não havia tratamento nem testagem no pré-natal, e só teve a sorologia descoberta quando o pai e a mãe faleceram em decorrência do HIV. Jacqueline é uma mulher trans, mãe de dois filhos adotivos, casada e feliz — sua história de vida e ativismo se tornou documentário, disponível na Globoplay. Orleandra descobriu a sorologia há 18 anos, durante o pré-natal do único filho, que é sorodiferente, e recebeu um abraço dele, 16 anos depois, quando teve coragem de contar sobre o diagnóstico que mudou a sua vida.

A trajetória dessas cinco mulheres tem em comum a experiência de viver com HIV/aids, mas como disse uma delas, a Orleandra: “O HIV não me define”. Jovens, idosas, brancas, negras, indígenas, heterossexuais, lésbicas, bissexuais, trans, travestis, de diferentes profissões e religiões, as mulheres que vivem com HIV no Brasil ainda enfrentam silenciamentos decorrentes de uma sociedade marcada pelo machismo e pelo preconceito, em que a mulher esbarra em dificuldades para exercer a autonomia sobre seu corpo e garantir tanto cuidado quanto prevenção. 

Para fortalecer a luta dessas mulheres por direitos e reconhecimento, combater o isolamento e promover uma rede de apoio, surgiu em 2004 o Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas (MNCP) — que transforma o silêncio em voz e a solidão em exercício de uma cidadania positiva. “Quando uma de nós consegue falar, falamos por muitas outras que não podem, não conseguem ou não desejam falar”, afirma Rafaela Queiroz, secretária executiva do MNCP.Jenice, Vanessa, Rafaela, Jacqueline e Orleandra são, antes de tudo, mulheres. Elas contam sua história à Radis e falam sobre como cada uma delas lida com a experiência de viver com o HIV. Neste 1º de dezembro de 2021, marcado como o Dia Mundial de Luta contra a aids, completam-se também 40 anos dos primeiros registros de casos, enquanto o mundo vivencia outra pandemia, a de covid-19. Para este ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propõe a reflexão sobre o tema das desigualdades, com o lema: “Acabe com as desigualdades. Acabe com a aids. Acabe com as pandemias”. Como as mulheres em geral não são vistas como prioridade nas estratégias de prevenção, conhecer as histórias daquelas que vivem com HIV é tanto entender as desigualdades de gênero quanto enxergar o protagonismo que elas exercem na luta contra a aids.


SoroposiDHIVA, com orgulho

Depois de anos de silêncio, Vanessa Campos decidiu que era hora de trazer sua história a público e falar sobre o HIV. Em 2016, ela tomou coragem e escreveu o primeiro depoimento em seu perfil pessoal no Facebook. “Para mim, falar sobre HIV/aids é sair de uma solidão terrível que eu vivi por muitos anos. E mostrar para as outras pessoas que elas não estão sozinhas”, conta. Em 1990, ela era uma adolescente em Manaus, com 17 anos, que já trabalhava e havia decidido iniciar a vida sexual com o primeiro namorado, da mesma idade. Alguns meses depois, teve sintomas como febre alta, dores no corpo e gânglios aumentados, mas a médica disse se tratar de uma virose simples. Vida que segue.

Seis meses após o término do relacionamento, veio o baque: o ex-namorado sofreu um acidente de carro e, durante a internação, faleceu em decorrência de uma infecção. A causa: HIV. Só assim ela foi orientada a fazer o teste e recebeu o diagnóstico positivo, em 1992. Em uma época em que não havia tratamento, ela logo pensou que iria morrer muito rápido, relembra. “Manaus era uma cidade pequena, eu tive que me mudar, porque por onde andava eu era ‘a namorada do cara que morreu de aids’. Eu não me sentia mais um ser humano, me sentia o próprio vírus ambulante”, relata.

No Rio de Janeiro, cidade para onde foi transferida, recomeçou a vida, iniciou um novo relacionamento e teve o primeiro filho. “A mulher que descobre o seu diagnóstico quer muito ser aceita por alguém. O estigma é muito pesado e vem carregado de culpa”, ressalta. Ao contar para o novo parceiro sobre o HIV positivo, na tentativa de recomeçar, ela passou a ter que lidar com uma norma: “Ele me aceitava, contanto que eu não falasse do meu HIV para ninguém, nem na família ou no trabalho. Ele me aceitava se eu me silenciasse”. Os pavores, ela aprendeu a esconder em seu coração. Não havia com quem conversar.

Assim se passaram anos: veio a separação, ela voltou para Manaus, casou-se novamente, teve duas filhas. E o silenciamento era sempre sua companhia. Em 1997, começou a fazer uso dos antirretrovirais (ARV), que então passaram a ser distribuídos gratuitamente pelo SUS. Depois da segunda separação — que “foi uma relação extremamente abusiva, porque continuou o ciclo do silêncio” —, ela novamente decidiu se calar para proteger as duas filhas: “Eu tinha duas crianças que dependiam de mim e, se eu falasse de HIV, elas também iam sofrer discriminação”, narra.

Mas aos poucos, ao buscar informação e contatos pela internet, Vanessa foi descobrindo uma rede de pessoas que também viviam com HIV e começou a quebrar o ciclo de solidão. Até que em 2016, depois de conversar com as duas filhas, já adolescentes, ela escreveu o primeiro texto em que vivenciou a experiência libertadora de revelar sua sorologia ao mundo. Com o apoio das filhas e de amigos, criou a página SoroposiDHIVA, em que fala sobre empoderamento feminino, sexualidade, autocuidado e prevenção. “A soroposiDHIVA nasceu da ideia de que eu pudesse falar o que estivesse sentindo e que as pessoas se sentissem representadas naquelas dores”, define Vanessa, atualmente representante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids (RNP+Brasil) no Grupo Temático Ampliado do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) e representante da RNP+Brasil no Amazonas.

Autonomia e protagonismo

Ela considera que as mulheres cisgênero sempre foram invisibilizadas desde o início da pandemia de aids. “Não se falava que era uma epidemia que podia atingir qualquer pessoa. Existia o tal ‘grupo de risco’. E aí nessa história de vincular a aids a um grupo de risco, as mulheres cisgênero não estavam contabilizadas”, reflete. Na visão de Vanessa, associar a aids a homossexuais só serviu para reforçar preconceitos e dificultar a prevenção. “A sociedade homofóbica não aceitava que as pessoas estivessem usando sua liberdade sexual e tivessem autonomia sobre seus corpos. De repente apareceu uma doença e tinha-se que mostrar quem eram os ‘culpados’”, completa.

Vanessa aponta que, mesmo 40 anos depois dos primeiros casos de aids descobertos, a história é a mesma quando meninas e mulheres descobrem o HIV: “Elas se sentem imunes porque estão casadas e se relacionam com o mesmo homem a vida inteira”. “Numa sociedade estruturalmente machista, qual é a mulher casada que tem autonomia para exigir o uso de preservativo do seu marido? A primeira coisa que eles dizem, se elas tiverem coragem de ter esse diálogo, é: Você está me traindo?”, afirma.

Mulheres cisgênero ainda enfrentam dificuldades para ter acesso aos protocolos de prevenção combinada, como a profilaxia pré-exposição (PrEP) — em que elas são contempladas apenas se forem trabalhadoras sexuais ou se tiverem um relacionamento com um homem que vive com HIV. “A mulher está sempre condicionada a ter acesso a essa profilaxia dependendo do homem com quem ela transa. Não é por ela e por estar vulnerabilizada numa sociedade em que o homem nega o preservativo”, critica. Vanessa também chama a atenção para a importância do preservativo interno — ou “camisinha feminina”, mas que também pode ser usada por homens trans — como um passo de autonomia no cuidado. Contudo, a partir de 2019, o Ministério da Saúde substituiu a compra do preservativo de borracha nitrílica pelo de látex, que é mais grosso e mais incômodo para a mulher. “Como falar de autonomia da mulher se a própria política nos exclui?”, questiona.

Vanessa assinala que não há protagonismo sobre os direitos sexuais e reprodutivos, assim como falta informação e educação para auxiliar na prevenção ao HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. “O professor ou a professora que ousar fazer um trabalho de educação sexual na escola é considerado alguém que está levando as crianças e adolescentes a fazerem o que não devem, estimulando a terem relações sexuais precocemente”. Ela pontua que, enquanto os meninos são incentivados a iniciarem cedo na vida sexual, as meninas não aprendem a se tocar, a se ver e a se conhecer. “As mulheres cisgêneros são vulnerabilizadas pelo contexto histórico do machismo estrutural. O sexismo é muito forte em nossa sociedade”, constata.

A solidão, sua velha conhecida, não a abandonou depois que ela decidiu tornar sua sorologia conhecida publicamente. “Se você me perguntar, por exemplo, quantos namorados eu tive depois que escancarei a minha sorologia pública, a resposta é nenhum”, conta. Contudo, ela encontra afeto todos os dias na rede de pessoas vivendo com HIV, incluindo jovens que a procuram depois de receber o diagnóstico. “Você já pensou o que é um jovem, em 2021, receber um diagnóstico de HIV e dizer que desistiu de se matar ao conhecer a minha história? Eu praticamente não sei o que é viver sem o contexto do HIV/aids na minha vida. E quando a militância chegou, isso foi libertador. E não posso deixar de levar uma palavra de acolhimento a outras pessoas”, conta. 

Depois de deixar para trás um tempo em que a tristeza a adoecia, ela se descobriu, literalmente, como diva: “Eu me priorizo. Isso é uma coisa que a aids me fez entender. Para eu estar viva, eu tive que me priorizar”.


O desejo de (r)existir

“Minha história com o HIV começa antes mesmo de eu saber sobre tudo isso.” Assim Rafaela Queiroz inicia o relato de sua trajetória de vida com o HIV. Ela adquiriu a infecção ainda bebê, por meio de transmissão vertical, quando o vírus é passado de mãe para filho na gestação, no parto ou na amamentação. A sorologia só foi descoberta com o adoecimento de seus pais, que faleceram quando ela tinha entre dois e três anos de idade. A irmã — que havia testado negativo — e ela foram adotadas por uma tia e seu companheiro, a quem passaram a chamar de pai e mãe. “Foi apenas com 8 anos que eu soube do HIV. Antes disso eu tinha conhecimento que havia um bichinho no meu corpo. Essa história começou a ser contada quando iniciei o processo de tomar medicamentos, aos 5 anos”, diz.

Os pais adotivos ofertaram amor e cuidado e optaram por não expor sua sorologia de forma ampliada. “O que eu agradeço muito, pois a escolha de visibilizar minha sorologia foi algo trabalhado por anos e quando me senti fortalecida iniciei os processos de ir contando para quem eu quisesse”, narra. Na adolescência, veio a experiência de contar para duas amigas. Depois, a atuação voluntária no Programa Saúde na Escola (PSE), na Rede Jovem Rio+, quando se sentia segura no espaço para falar. Porém, a sensação libertadora de trazer sua história publicamente aconteceu no final da faculdade de Psicologia: “Minha experiência de visibilidade positiva se deu na última aula do último período da faculdade, através de uma dinâmica de reflexão sobre corpos HIV+ e expus que meus colegas conviveram com alguém com HIV por cinco anos”, relembra.

Rafuska, como é conhecida, atualmente é psicóloga e secretária executiva do MNCP — aos 30 anos, trabalha diretamente com acolhimento e aconselhamento de pessoas com HIV, dentre os quais mulheres e jovens. “É somente através da troca, da união e de espaços de convivência que podemos nos sentir seguras para externar o que passamos e sentimos”, afirma. Segundo ela, o cotidiano das mulheres com HIV esbarra em vulnerabilidades muitas vezes ignoradas e até silenciadas. 

“Nós somos mulheres e enfrentamos desde o nosso nascimento o reflexo do machismo e da misoginia. Lidamos com o fato de nossos corpos antes de nos pertencer, pertencerem aos outros. Somos julgadas pelas nossas roupas, como nos sentamos, se namoramos, se bebemos. Então, quando há uma IST, logo somos comparadas a mulheres promíscuas. Já os homens são olhados como ‘transantes’”, constata. Ela ressalta que o HIV é “só” mais um desafio que atravessa o cotidiano feminino. Por isso, Rafaela adotou o verbo (r)existir como princípio de vida — e passou a trazê-lo literalmente em sua pele, em uma tatuagem.

“Nossas vivências vão da descoberta do HIV por uma traição. De uma descoberta tardia por profissionais que acham que mulheres casadas não podem contrair o HIV. Da descoberta no início, meio ou final de uma gravidez. Da descoberta na infância. Todas elas com algum apontamento que nos machuca”, descreve. Julgamentos, culpas, abandono, recriminações, acusações — são palavras que cruzam a rotina de muitas delas. “Se é a mulher que descobre primeiro o HIV, há todo um medo de ter que falar com seu parceiro. O apontamento de traição vai vir de forma acusativa e violenta. Ao contar para familiares ou amigos, vem o peso de escutar frases culpabilizadas como: ‘Mas você não segurou seu homem’ ou ‘como você deixou isso acontecer?’”.

Únicas e diversas

Cada mulher é única — por isso, Rafaela acredita que a grande lacuna nos serviços de saúde ainda é um olhar que contemple as necessidades de cada uma daquelas que vivem com HIV. “Realizar um atendimento com um olhar mais multidisciplinar é a nossa grande bandeira atual”, defende. Para a psicóloga, é preciso pensar o cuidado para além do acompanhamento da carga viral. “Tivemos denúncias de mulheres que relatam que se a carga viral está indetectável não há porque ter atendimento psicológico na unidade”, aponta. “Temos a cada dia um maior afastamento do diálogo, afinal vivemos um governo que considera a nossa qualidade de vida como ‘despesas’”.

A prevenção de novas infecções é outro desafio, porque geralmente as estratégias não consideram as mulheres cisgênero como público alvo, “esquecendo que a violência de gênero em uma sociedade machista nos coloca em maior risco para contrair uma IST e o próprio HIV”. “Temos conversado muito sobre a não inserção de mulheres cis como público para PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), pois é de conhecimento que o diálogo sobre o uso de preservativo com seus companheiros tem muitas barreiras, inclusive por relacionamentos abusivos”, ressalta.

“Infelizmente, temos uma sociedade que parou no tempo sobre o HIV. As pessoas ainda acham que beijo, abraço, sentar no mesmo local, lavar roupas juntas são formas de transmissão do vírus”, pontua. Rafaela considera que o “SUS ainda é nosso espaço mais seguro, nosso grande espaço de cuidado e atenção”. “Sem o SUS, muitas de nós nem estaríamos mais aqui, isso inclui eu que nasci com HIV e tive acesso a acompanhamento e tratamento gratuito desde a descoberta do HIV. O SUS é nosso e seguiremos lutando por ele e pela manutenção dele em nossas vidas”, defende. Ela evoca o exemplo de outras mulheres que pavimentaram um caminho de luta por qualidade de vida, como Nair Brito, ativista que reivindicou na Justiça para que as pessoas vivendo com HIV tivessem acesso aos antirretrovirais. “Visibilizar nossas histórias, nossas vidas, nossas profissões é visibilizar a vida com HIV e mostrar para a sociedade que vivemos e podemos viver bem”, reforça.


Flores vermelhas

Após exames de rotina, aos 30 anos, em 1990, Jenice Pizão se viu diante do HIV — “sem entender nada, só com a certeza da morte rápida”. “A culpa e o medo da discriminação me paralisavam, mais ainda quando pensava em minha filha, com 14 anos na época”, relembra. O conhecimento da ciência e dos profissionais de saúde ainda estava em construção — assim como o SUS, que acabava de nascer. “O único medicamento era o AZT, com um custo elevado para uma professora como eu e além da alta toxicidade hepática”.

“O acesso à psicoterapia foi fundamental para minha autoestima e melhor compreensão da realidade da epidemia de aids, conhecer as terapias integrais e complementares que poderiam estimular o sistema imunológico e me fortalecer para enfrentar o medo, o preconceito e a discriminação. Dessa forma, consegui fazer a escolha pela vida, com dignidade, sem culpas, porém, com responsabilidade”, relata. Segundo Jenice, assim ela descobriu como sair “da cadeira de vítima” e assumir “o protagonismo de mulher vivendo com HIV/aids”. 

“Assim falando, parece simples, mas não é. É um processo que dura o tempo de cada pessoa e está diretamente ligado a diversas questões, como ter um salário para seu sustento, ter moradia, ter apoio familiar ou de amigos, ter serviço médico especializado e multidisciplinar garantido pelo SUS e consciência de seus direitos”, considera. Em 1996, ela se tornou uma ativista do movimento de aids e, em 2004, foi uma das fundadoras do MNCP. Hoje, aos 62 anos, em Campinas (SP), coordena o grupo Flores Vermelhas, de ajuda mútua com mulheres cis e trans que vivem ou convivem com HIV/aids.

O cotidiano dessas mulheres foi diretamente afetado pelos retrocessos na política de HIV/aids desencadeado a partir de janeiro de 2019. Uma das mudanças mais impactantes foi o rebaixamento pelo Ministério da Saúde do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), que se tornou Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Segundo as organizações de pessoas vivendo com HIV/aids, esse foi o fim de uma política específica para o tema. Também foram extintas as redes sociais do Ministério da Saúde diretamente voltadas para o assunto. Em fevereiro de 2020, Jair Bolsonaro declarou que “uma pessoa vivendo com HIV é uma despesa para todos aqui no Brasil” — o que gerou a campanha “Eu não sou despesa”, protagonizada por pessoas vivendo com o vírus.

Jenice ressalta que esse descaso foi somado ao contexto difícil trazido pela pandemia de covid-19. “As mulheres foram as mais atingidas devido a questões socioeconômicas, pelo racismo estrutural, pela desigualdade de gênero e, consequentemente, pela violência doméstica”. No auge da pandemia, o sistema de saúde foi direcionado para o atendimento específico do coronavírus, provocando redução de horários, demora para consultas e exames e dificuldades no acesso aos antirretrovirais. “Até uns anos atrás, a atenção à epidemia de aids no Brasil teve avanços importantes, principalmente com o surgimento e fortalecimento do SUS, do movimento social de ONG e de pessoas vivendo com HIV e um Estado com gestão responsável”, enfatiza. Mas, segundo a ativista, “é notório o esforço para desmontar o Estado de bem-estar social”, com retrocessos nas políticas públicas — e impactos diretos para quem vive com HIV/aids.

Brasil era referência

“Tínhamos um Programa de IST, Aids e Hepatites Virais considerado referência mundial na luta contra a epidemia, porém este sofreu um golpe brutal tendo que integrar outras patologias. Vivenciamos outras iniciativas irresponsáveis deste governo, a aids e sexualidade se tornaram assunto proibido nas escolas, não existem campanhas adequadas de prevenção reduzindo o acesso a informações seguras de prevenção, contribuindo para a invisibilidade do tema”, analisa. Outro impacto, segundo Jenice, veio com o desmonte dos espaços de diálogo entre governo e sociedade civil.

Ela também chama atenção para a falta de prevenção para a mulher com mais de 50 anos, casadas ou não — que não são vistas como sexualmente ativas pelos serviços de saúde e, por isso, não têm acesso às estratégias de prevenção às IST. “Muitas de nós se sentem envergonhadas pelo desejo de viver sua sexualidade, não falam sobre isso e assim, ficam mais vulneráveis a se infectarem”, explica. 

Outro problema comum a mulheres que vivem com o vírus é a ocorrência de lipodistrofia, ou seja, o acúmulo de gordura em certas regiões do corpo por efeito do tratamento com antirretrovirais. “A mudança na aparência é um incômodo para as mulheres com influência direta na qualidade de vida e graves consequências sociais e emocionais”. Existem alternativas para atenuar esses efeitos, mas são de difícil acesso — até mesmo porque a maioria das mulheres não contam com apoio nutricional, de programas de educação física e de terapias complementares. “Temos um grande número de pessoas vivendo com HIV/aids em situação de pobreza, pelo desemprego ou perda do benefício do INSS, dificultando as possibilidades de buscar essas alternativas já que em alguns municípios nem os medicamentos básicos têm sido disponibilizados”, completa.

A ativista que vive com HIV há 31 anos ressalta que, mesmo após 40 anos da epidemia de aids, receber o diagnóstico é sempre impactante. “Com a revelação do diagnóstico, muitas vivenciam o desafio do preconceito e, com isso, a rejeição do parceiro, da família e o medo do desemprego”, constata. São mulheres que vivem a solidão da angústia e do silêncio, por medo de perder um amor, a família ou um emprego. Aí vem a violência em vários níveis, não apenas física — “sexual, doméstica, moral, racial e patrimonial”, completa. Por isso, a necessidade das redes de apoio e do aprendizado do autocuidado — temas abordados no podcast Fala PositHIVas (veja BOX). “Precisamos continuar a ser gatosas e, para isso, as informações claras e seguras nos serviços de saúde são fundamentais”, aponta Jenice.


“Meu nome é Jacque”

“Eu me chamo Jacqueline Rocha Côrtes. Também muito conhecida como Jacque. Vivo com HIV, com aids na verdade, desde 1994. Vão-se aí 27 anos. Sou uma mulher transexual redesignada. Fui uma das co-fundadoras da RNP+Brasil e uma incentivadora e integrante do MNCP, onde ocupei por três anos a representação na América Latina.

Eu descobri a sorologia para o HIV em 1994. Descobri por acaso. Voltemos a 1994. Cenário do Brasil em relação à aids: puro e total estigma. Era um momento bastante adverso. Havia o agravante do preconceito por ser um vírus transmitido por via sexual primordialmente. Como a aids chegou no mundo como ‘peste gay’, ela se tornou uma doença extremamente estigmatizada e estigmatizante.”

Assim Jacqueline, professora de inglês aposentada, ativista em vários movimentos sociais de aids e LGBTQIA+, começou a nos contar a sua história. Aos 61 anos, casada, mãe de dois filhos, ela trabalhou na Unaids e como chefe da Assessoria de Cooperação Internacional no então Programa Nacional de IST/aids do Ministério da Saúde. Em 2016, ganhou o seu próprio documentário, “Meu nome é Jacque”, de Ângela Zoe, disponível no Globoplay.

Como ela mesma sugere, voltemos a 1994: “Eu dava aula todos os dias. Tive um mal-estar entre fevereiro e março de 94, uma sensação esquisita, como se fosse uma virose. Fui no médico, minha mãe foi junto, sempre presente. Pelos resultados, ele falou que realmente tinha sido uma virose. Eu já estava melhor, mas minha mãe disse: ‘Não seria melhor pedir um exame de HIV?’ Ele disse que não”, conta. Depois de ficar afônica devido a uma infecção na garganta, fez o primeiro teste. Resultado: inconclusivo. Feita a segunda testagem, já achando que “era o universo conspirando para eu me preparar”, ela foi pegar o resultado no dia 6 de junho. Nunca vai esquecer aquela data nem que saiu do laboratório com o envelope fechado e foi dirigindo até a casa da mãe.

“Parei o carro numa praça. Fiquei olhando para as árvores e abri o exame… E deu positivo. Foi terrível. Eu estava com 34 anos. Era sinônimo de morte rápida. Cheguei na casa da minha mãe com o olho inchado. Quando ela me olhou na porta, já abriu os braços e chorou comigo, sem que eu falasse uma palavra. Minha mãe me deu todo o apoio. Eu fui num médico, um infectologista, e fiz a fatídica pergunta: ‘Quanto tempo eu tinha de vida?’ Depois que insisti, ele disse que a prática mostrava que a sobrevida chega a no máximo 18 meses. ‘Um ano e meio? Então eu posso estar morta com 35 anos?’”

A Jacque daquela época, que ainda não tinha feito a transição de gênero, não sabia o que a vida lhe reservava: ela se tornaria uma das mais conhecidas militantes pelos direitos das pessoas vivendo com HIV/aids do país. Inclusive, poderia realizar o sonho da transição, de se casar, ser mãe. Porém, antes, precisou lidar com a “deprê”, como define.

“A minha relação inicial com o HIV foi horrível. Eu passei por todas as fases que a gente passava na época. Primeiro, a incredulidade, a não aceitação. A negação. Depois, vem a revolta. Eu me sentia uma arma ambulante. Que eu poderia matar alguém a qualquer momento. Depois da raiva e do ódio, vem a grande tristeza, a desesperança e a depressão. Até que num momento, minha mãe me agarrou pelos braços com força, ela era muito positiva na vida: ‘Chega de sofrer! Você não vai morrer de aids!’ E bateu no peito: ‘Porque eu não vou deixar!’”

A história é contada no filme “Meu nome é Jacque” e foi relembrada em conversa com a Radis. As palavras da mãe a ajudaram a sair do quadro depressivo. O ativismo foi ocupando o lugar da tristeza. Estar com outras mulheres a fez se sentir forte e também permitiu mostrar a sua trajetória de vida. “O isolamento acaba com a pessoa. Se isolou, morre. Eu comecei a ver que a vida continuava”, conta. Ela fala com carinho das reuniões do movimento das Cidadãs PositHIVas: “Sempre que junta todo mundo, é uma comoção muito grande. É uma sororidade, sabe? A gente vê as jurássicas, em que eu me incluo, as que acabaram de chegar, que descobriram o HIV agora, é outro momento da aids. Elas têm como referência toda essa mulherada que está viva, que lutou e preparou um caminho”, completa.

“Estou viva”

Jacque fez a transição de gênero em 2001 e casou-se em 2004, depois de mudar sua certidão. “Vivo com meu marido até hoje, que também vive com HIV. Adotamos dois filhos, faz quase 11 anos. Minha filha tinha dois aninhos, meu filho já tinha nove. Hoje ele está com 19 anos, ontem ele prestou o Enem. É uma gratidão. Eu estou viva, mãe, redesignada, vivendo com HIV”, narra.

Ela ressalta que as dificuldades com que as mulheres vivendo com HIV se deparam vão muito além do vírus. “Muitas mulheres são as provedoras financeiras, têm uma jornada dupla ou tripla, muitas não têm marido, ou têm maridos desestruturados, que bebem, violentam”. A ativista também pontua que a maioria das mulheres com HIV não tem formação acadêmica e sofrem dificuldades para conseguir trabalho — o que foi agravado pela pandemia de covid-19. “No caso das mulheres trans, isso é ainda acrescido de grande preconceito e discriminação. O acesso é prejudicado porque a trans não tem seu nome social respeitado”, completa.

Jacque acredita que somente com luta e participação é possível enfrentar as desigualdades e garantir acesso ao cuidado e à prevenção. Ela destaca o papel dos conselhos municipais, estaduais e nacionais de saúde. “Ali podemos legitimamente intervir na construção de políticas públicas”. Também aponta a necessidade de defender as conquistas do SUS no tratamento das pessoas com HIV/aids. “Há locais em que o SUS funciona melhor do que em outros, porque a gestão é mais inclusiva. Quando há controle social, há uma tendência de cumprimento das obrigações do gestor. Eu sou SUS defensora e SUS dependente”, conclui.


Para se libertar de um segredo

Maria Orleandra Alves decidiu que era hora de se libertar de um segredo. Durante o pré-natal de seu primeiro e único filho, hoje com 18 anos, ela havia descoberto a sorologia positiva para o HIV. Com medo, mas com profundo amor por aquela criança que era gerada em seu útero, ela seguiu à risca os protocolos para evitar a transmissão vertical — e Pedro Lucas nasceu sem o vírus. Porém, durante anos, não revelou para ele toda a história. “Não tinha contado para o meu filho, pois me achava uma espécie de supermãe. Achava que ele poderia comentar com algum amigo e sofrer discriminação”, relata. Um dia, ela o chamou para uma conversa. Para sua surpresa, ouviu dele: “É só isso?”

Aos 44 anos, Orleandra é hoje representante do movimento das Cidadãs PositHIVas no Ceará. “Eu costumo dizer que a gente não vem nesse mundo a passeio, que tenho muito a contribuir e vou deixar a minha história para quando eu não estiver mais aqui”. Ainda falta mais um passo no seu caminho de libertação: contar sobre a sorologia para sua mãe. Ela se emociona ao falar: a mãe, que vive com diabetes e faz hemodiálise, no ano passado teve covid e sobreviveu. “É um segredo que quero me libertar dele. Já venho trabalhando há muito tempo sobre como contar para ela. A partir desse momento, estarei livre para voar para o mundo”, afirma.

Em Fortaleza, ela coordena as reuniões mensais em que participam cerca de 70 mulheres que vivem com HIV/aids — as Cidadãs PositHIVas compartilham espaço com a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids (RNP) no Ceará. Conversam sobre saúde mental, violência doméstica, autocuidado. Arrecadam e distribuem cestas básicas. Muitas delas ainda vivem no silenciamento quanto à sorologia positiva. “Existe muito machismo. Achar que o homem tem que andar na frente e a mulher, atrás. Isso não existe, a gente tem que andar lado a lado”, comenta. No apoio a outras mulheres, ela deu novo sentido para sua vida: “As pessoas dizem que sou voluntária e não ganho nada por isso. Mas o que eu recebo, um ‘muito obrigado’, não tem preço”.

“Você imagina uma mulher de 44 anos que descobriu o HIV numa gravidez praticamente sozinha, porque eu não estava mais com o pai do meu filho. Eu olhei pra um lado, olhei pro outro e pensei: ‘O que eu vou fazer da minha vida? Com quem eu vou contar? Quem vai me apoiar?’”, relembra. Ela considera que dividir a sua história serve como motivação para que outras pessoas entendam que é possível viver — e viver bem — com o HIV. “Olhar para trás, com 18 anos de sorologia, e perceber que eu nunca me internei por conta do vírus é algo que ajuda uma pessoa que descobriu hoje e pensa ‘será que eu vou morrer?’”.

Mulher com HIV tem direito de namorar e ser feliz, defende Orleandra, ao mostrar a foto com seu namorado. Com o filho, ela também construiu uma relação de apoio, respeito e amizade. “Nesses dois anos [depois que contou], nunca aconteceu de a gente brigar por alguma coisa e ele me culpar ou jogar na minha cara”, diz. As dificuldades cotidianas são superadas com o apoio da rede de Cidadãs PositHIVas, que adotam o lema: “Não soltar as mãos umas das outras”. “A gente tem que desmistificar que a descoberta do HIV é o fim. É o começo de um novo caminho. Olhando para trás, eu percebo que hoje dou muito mais valor à vida. É outra maneira de olhar o mundo”, confessa. 

Histórias como a de Orleandra, Rafaela, Vanessa, Jacqueline e Jenice mostram que a vida de uma mulher com HIV — assim como a de qualquer mulher — é tão singular que não dá para resumir.


Fala PositHIVas!

Autocuidado, direitos sexuais e reprodutivos e vacinação. Esses são temas tratados no podcast Fala PositHIVas, criado pelas integrantes do MNCP. “A ciência fez e tem feito muito. Mas o preconceito, o estigma e a discriminação ainda vêm atrapalhando muito a vida da gente, principalmente daquelas que recebem o diagnóstico recente”, afirma a ativista Fabiana Oliveira, em um dos episódios. Fica a dica! Acesse: https://bit.ly/3xAvj9W.

Aids no Brasil

O SUS permitiu que o Brasil fosse o primeiro país em desenvolvimento a oferecer medicamentos antirretrovirais a todos os habitantes, em 1996. O país conquistou status internacional na resposta à epidemia. Em 2003, o Programa Brasileiro de Aids recebeu o Prêmio Gates de Saúde Global e estimou uma queda, até aquele momento, de 50% na mortalidade.

De 1980 a junho de 2020, foram identificados pouco mais de 1 milhão de casos de aids no Brasil, com uma média anual de 39 mil novos casos, de acordo com o Boletim Epidemiológico de 2020

    Antirretrovirais

    São distribuídos gratuitamente pelo SUS desde 1996 — e garantidos, desde 2013, para todas as pessoas vivendo com HIV, independentemente da carga viral. A adesão à terapia antirretroviral (TARV) transformou uma infecção com risco de morte em uma condição crônica controlável, apesar de ainda não haver cura. Hoje se entende que o tratamento é também uma forma de prevenção, pois a baixa carga viral devido à terapia faz com que o vírus não seja transmitido (indetectável = intransmissível).

    PrEP e PEPA Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) são métodos de prevenção à infecção pelo uso dos medicamentos. No caso da PrEP, a finalidade é preparar o organismo antes de um possível contato com o HIV, ou seja, por meio de uma relação sexual de risco para o HIV. Já a PEP é um método de urgência utilizado após a exposição. Leia mais em edições anteriores de Radis (194, 178). Ou acesse: https://prepbrasil.com.br/.

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