Cristiane precisava se registrar para registrar a filha, para que ela pudesse depois registrar a neta e, entre outras coisas, ter acesso aos benefícios sociais. Rita queria a certidão de nascimento para em seguida tirar identidade, CPF, abrir conta para a filha, estudar, “ser alguém na vida”. Maria da Conceição tinha outra urgência: finalmente conseguir fazer a cirurgia para tratamento de um câncer de mama — sem documento, já tinham lhe avisado, isso seria impossível. E Aparecida carecia do registro do filho para finalmente conquistar o direito de visitá-lo na prisão. Ainda haveria Paulo, o lutador de MMA que sem conseguir comprovar a sua existência não ia poder viajar com a equipe — e ele “já tinha perdido tanto” — e o senhor que levava sempre consigo, em um envelope, os restos de sua certidão despedaçada como forma de identificação.
Histórias como essas de pessoas sem documento estão na tese, depois transformada no livro Invisíveis: uma Etnografia de Brasileiros sem Documento (FGV Editora). Quem conta à Radis é a autora, jornalista e pesquisadora Fernanda da Escóssia, que durante três anos acompanhou o movimento no ônibus da Justiça Itinerante, na Praça Onze, região central do Rio de Janeiro. Estacionado no pátio da Vara da Infância e da Juventude, sempre às sextas-feiras, o veículo é a parada redentora para homens e uma imensa maioria de mulheres que até então costumavam vagar de balcão em balcão — em vão — na busca da certidão de nascimento. “E então aquilo que durante anos foi a construção social da indiferença se torna um lugar de acolhimento em que essas pessoas começam enfim a ser atendidas”, diz Fernanda, sobre o trabalho do ônibus que vem devolvendo esperança a milhares.
Sem o tão aguardado papel, o brasileiro não pode tirar nenhum outro documento, não consegue emprego com carteira assinada, não tem acesso integral à saúde nem à educação, não vota, não garante sequer um celular em seu nome, não alcança benefícios como o Bolsa Família, como a pesquisadora ouviu dos entrevistados. Esses, aliás, são alguns dos motivos que os levam a procurar o documento, depois de uma “existência vivida nas margens do Estado”, constata Fernanda. No Brasil, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), realizada em 2015, ainda existem três milhões de brasileiros indocumentados, apesar das tentativas de redução desse contingente — durante o governo Lula, a partir de 2003, teve início um movimento de redução do sub-registro, com a criação de comitês distribuídos pelo país para implementar ações de combate ao problema.
O assunto ganhou projeção recentemente, ao aparecer no Enem, em novembro (21/11). Um trecho da tese de Fernanda surgiu como provocação para a redação, cujo tema era: “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. Três dias depois da prova, Radis conversou com a jornalista, editora na revista piauí e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesta entrevista, como no livro, as histórias dos encontros entre Fernanda e seus entrevistados servem de fio condutor para fazer pensar sobre o Brasil e a negação da existência. A chegada desse “documento zero” é comemorada, por muitos, como uma redenção de todos os problemas. Não é bem assim, afinal, explica Fernanda, eles vivem uma contínua negação de direitos. Mas, para a autora de Invisíveis, não restam dúvidas de que a certidão de nascimento é uma chave para a cidadania. Confira nossa conversa:
“Sou um zero à esquerda”
Reginaldo, 63 anos
Quem são as pessoas indocumentadas em nosso país e por que elas não têm documentos?
São três milhões de pessoas, segundo a Pnad de 2015. Esse é o total de quantos são. Agora, a gente sabe que a exclusão documental brasileira é um problema associado à pobreza e que reflete a nossa desigualdade. Portanto, um problema que afeta os mais pobres — os mais pobres dos mais pobres. Entre os indocumentados, há também uma presença forte de pessoas negras. Elas não têm documentos por vários motivos. Por exemplo, o abandono paterno — muitas mães esperam que o pai vá registrar o filho e, por isso, não registram a criança que vai crescendo sem documento. Mas quando digo que é um problema relacionado à pobreza é porque às vezes a pessoa não tem documento porque os pais também nunca tiveram e não registraram seus filhos, o que expõe uma questão geracional. Outras vezes, as pessoas até foram registradas, mas perderam o documento (na enchente, no incêndio, na mudança porque tiveram que se mudar às pressas) — e a gente também perde, por vários motivos, mas, para elas, a segunda via se torna inacessível. No Brasil, a primeira via da certidão de nascimento é gratuita, garantida por lei desde 1997, mas a segunda via, não.
Como é viver sem documento no Brasil?
Resumindo: o indocumentado brasileiro é uma pessoa normalmente pobre, ou muito pobre, e que vem de uma contínua negação de direitos. Porque, como não tem a certidão de nascimento, ela não tem CPF, identidade, título de eleitor e não vota. Se for homem, não pode fazer o certificado de reservista obrigatório. A pessoa não tem carteira de trabalho assinada, portanto, não tem emprego formal. E quando morre, vai para uma cova sem identificação. Então, são pessoas que vivem nesse limbo no mundo dos direitos. Na vida e, também, na morte.
No livro, você nos apresenta dona Maria da Conceição, que, sem documento, não conseguiu acessar o seu direito à saúde, tendo inclusive negada uma cirurgia para tratamento de um câncer. Como foi a trajetória dela para conseguir o documento?
Dona Maria é um personagem muito marcante na minha pesquisa. Porque ela queria muito contar a sua história. Aliás, esse é um aspecto interessante: as pessoas querem muito contar as suas trajetórias indocumentadas porque elas passaram anos sem alguém para ouvir. Então, fazendo um parênteses, eu agradeço muito elas terem me escolhido para compartilhar essas trajetórias. Voltando ao caso específico da dona Maria, ela tinha um câncer, um tumor do tamanho de uma laranja, que chegava a se projetar para fora do peito. E ela queria inclusive mostrar. A mãe dela morreu de câncer de mama, uma irmã morreu de câncer de mama. Ela veio de Pernambuco para o Rio de Janeiro e guardava um papelzinho, que era o único que ela tinha: seu batistério. Mas nunca foi registrada ou, se foi, nunca soube que foi. E ela tinha uma vida aqui. Isso é o que eu acho chocante na história desses adultos indocumentados: eles construíram as suas vidas. Ela teve companheiros, teve filhos, alguns dos filhos foram registrados pelos companheiros. Mas ela não tinha nada no nome dela. Dona Maria era uma pessoa muito pobre, que trabalhou como diarista. Quer dizer, ela frequentou a nossa vida, não a minha, não a sua, mas a vida dessa sociedade documentada, e permaneceu aí, sem condição de ter o documento.
“A pessoa quando não se registra fica como um ninguém,
Carlos, 22 anos.
Como ela chega até o ônibus do Tribunal de Justiça do Rio, na Praça Onze?
Aquele câncer já estava com ela há muitos anos, o caroço era gigante, não apareceu da noite para o dia. Fazia muito tempo que ela tinha descoberto, ia no ambulatório, fazia alguma coisa, só que chegou no ponto em que ela precisava ser operada e não podia porque não tinha documentos. Esta é a questão: eu sei que o SUS têm milhares de outros desafios, mas falando especificamente do sistema de saúde, ele tem que ser visto como uma ponta, se não de busca ativa, pelo menos de encaminhamento dessas pessoas para uma solução. No caso dela, nada foi feito até que alguém falou desse serviço do ônibus, que podia realmente resolver o seu problema. Mas até chegar lá, ela vagou de balcão em balcão, foi de um lugar a outro, viveu uma espera de anos. Então, quando digo que esse assunto exige a atenção de vários campos do saber, a saúde é um deles. Porque as pessoas indocumentadas, além de terem o direito ao documento negado, têm também negado o acesso ao sistema de saúde.
Como ela consegue a cirurgia?
Depois de chegar ao ônibus, ela consegue tudo. Consegue a certidão de nascimento e consegue fazer o tratamento contra o câncer; ela tirou todos os documentos; ela votou em 2018, pela primeira vez; e ainda passou a exercer um papel que chamo de “tutora social”. Ou seja, depois de resolver o seu caso, ela passou a levar outras pessoas para o atendimento no ônibus. A busca pelo documento também mobiliza os conceitos de cidadania, de estado, de identidade. Em março deste ano, ela morreu. E foi enterrada com o nome, com a identificação. Esse é um caso em que a falta de documentação é fundadora, digamos assim, desse caminho de exclusão.
Você chama de “síndrome do balcão” essa dificuldade enfrentada por aqueles que têm que percorrer vários lugares e instâncias estatais na saga da busca pelo documento. Como funciona o trabalho no ônibus da Praça Onze para resolver finalmente o problema de uma pessoa adulta indocumentada?
É assim: essas pessoas já vagaram por muitos balcões até chegar ao ônibus. Elas já foram aos fóruns de assistência social, a hospitais, à defensoria pública e, aí, em algum momento desse percurso, as mandam para o ônibus. O ônibus é especializado em sub-registro, ou seja, faz apenas certidão de nascimento. Então, chegando lá, tem o serviço de triagem, a pessoa faz uma entrevista com os técnicos. Depois, é realizada uma busca nos bancos de dados, em cartórios de outros estados. Esse escrutínio precisa ser feito porque é preciso saber, primeiro, se aquela pessoa realmente não foi registrada — senão pode ter uma duplicidade de documento. Também para evitar fraudes, para saber se não é uma pessoa que, por exemplo, cometeu um crime e está querendo mudar o nome. Isso existe. Se nada for localizado, tem uma audiência em que a própria pessoa precisa levar testemunhas — porque, como ela não tem documento, tem que levar testemunhas como prova de que ela é de fato aquela pessoa. Entra aí a memória como construção da identidade. Depois disso, entra o juiz para autorizar o registro tardio. Esse processo todo deve se resolver em, no máximo, dois meses e a pessoa sai com a certidão de nascimento. O interessante do ônibus é que ele tem um cartório do lado [1ª e 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso], onde a pessoa já recebe a certidão. É um processo incrível. Vi casos de três gerações recebendo a certidão no mesmo dia. É fantástico.
No livro, você também chama a atenção para a questão dos presos sem documento ao contar a saga de dona Aparecida, mãe de um filho que está na prisão. Qual a dimensão desse problema? Pode relembrar a história dela?
Nesse momento é importante debater o problema das pessoas sem documento, mas a questão dos presos sem documento é um debate ainda mais necessário. A pessoa viveu a vida toda sem documento, no limbo, mas quando comete um crime, se torna visível para o Estado. É a punição que chega antes dos direitos. A pessoa é levada para o presídio e recebe primeiro a identificação criminal. Ela tira as digitais, recebe um número, mas ainda não tem identificação civil. Bom, o filho de dona Aparecida era um desses casos. Ela me disse que perdeu um filho para as ruas do Rio de Janeiro e não tinha condições de criar o outro. Então, ela deu esse outro menino para morar com a avó. E o menino foi crescendo sem documento. Aí entra o julgamento moral: obviamente, ela foi julgada muitas e muitas vezes porque não registrou o menino, mas não cabe a gente fazer esse julgamento. Na verdade, não era para ser tão difícil ela conseguir fazer o registro depois daquele momento inicial em que ela não conseguiu, por uma questão de abandono, de violência doméstica, de todas essas histórias que se cruzam na vida das pessoas indocumentadas. Essas pessoas vivem numa contínua negação de direitos. E aí o filho dela foi preso e ela chegou numa daquelas situações que o livro chama de “urgência de legibilidade”.
“Eu me sinto como um nada, a gente não existe”
Fátima, 57 anos.
Do que se trata?
É o seguinte: até um determinado ponto, as pessoas vão levando a vida. Diante da “síndrome do balcão”, que é muito maior do que elas, elas vão resolvendo: estuda em casa, vai só na emergência do hospital, compra o telefone no nome do vizinho e vai acomodando. Mas tem uma hora que a “urgência de legibilidade” se impõe. Foi o caso da cirurgia da dona Maria e é o caso das mães dos presos. O filho de dona Aparecida estava há mais de dois anos na prisão e ela não podia visitá-lo. Não se trata de negar os crimes. Pelo contrário. Ela assume o crime para dizer: “Esse que está aqui e que vocês estão dizendo que matou, ele matou, mas ele é meu filho e eu vou visitá-lo”. Eu sempre choro quando eu falo nesse caso. Porque essa mulher também teve uma vida de privação. Eu acompanhei a audiência no Tribunal de Justiça em que a juíza faz uma entrevista por teleconferência com o filho que está preso e dona Aparecida precisa provar que era realmente a mãe dele. Ela leva a avó com quem o menino morava e ela começa a reconstituir a trajetória do neto. Mas aí, quando o menino vê a mãe por teleconferência, ele já começa tomando a bênção da mãe. Ali, a memória resolveu qualquer dúvida. Ela se sentia muito culpada e pede perdão a ele por não tê-lo registrado. Eu acho esse caso muito forte [emociona-se].
Em um debate, ouvi sua orientadora afirmar que, ao fazer uma etnografia das pessoas sem documento, você acabou fazendo uma etnografia do Estado brasileiro. Quem são as pessoas do Estado que se importam com os indocumentados?
O meu ônibus é um lugar onde as pessoas se importam. E essa é uma instância da burocracia estatal. A gente costuma ver a burocracia e tratar essa palavra no pior sentido, como sendo algo que não funciona. Mas a burocracia é uma forma de organização do Estado em que há uma definição de papéis, em que há uma organização, uma rotina, então, o Estado burocrático também pode funcionar. E ele precisa funcionar, na verdade. No caso do ônibus da Praça Onze, depois de anos de “síndrome do balcão”, essas pessoas chegam a um balcão em que alguém diz: “É aqui!” E aquilo que durante anos foi a construção social da indiferença se torna um lugar de acolhimento em que elas começam a ser atendidas. Tem uma cadeia de atendimento para fazer a busca dos antecedentes nos cartórios. São vários técnicos do Estado, há o momento da audiência. A Defensoria Pública também é um agente muito importante, é ela quem entra com o processo em nome da pessoa. Mesmo se a pessoa não tem os documentos, ela pode ser um sujeito da ação legal. Então, várias instâncias do Estado são acionadas e trabalham em conjunto para fazer funcionar. Eu destaco também o papel dos juízes do ônibus a quem cabe essa decisão para dizer: “Vamos emitir o registro tardio dessa pessoa”.
As juízas, em especial, parecem ter um papel importante nesse processo. Por quê?
Sim, aqui eu destaco muito a urgência que as juízas percebem na garantia do segundo direito negado — e aqui eu vou falar “juízas” porque são elas que atuam muito fortemente nesse sentido. Porque, se para dar o documento, precisa dessa busca e tem essa demora de dois meses, o que as juízas do ônibus fazem é dizer assim: “Tudo bem, mas enquanto a gente investiga, esse outro direito não pode ser negado”. Então, enquanto pesquisa a certidão de nascimento, matricula a criança na escola; enquanto pesquisa, garante o atendimento médico, que foi o caso da dona Maria da Conceição; enquanto pesquisa a certidão de nascimento, vamos garantir que a pessoa em situação de rua possa ser abrigada em algum lugar mesmo sem documento. Essas juízas contestam a ideia de que, se você não tem documento, não pode ter acesso ao mundo dos direitos. Tem uma juíza que dizia assim: “As pessoas sentem muito poder em dizer que ‘não pode!’ Mas, na verdade, o poder é dizer que ‘sim!’”. Mesmo que sem o documento, ela vai ter direito a colocar logo a criança na escola. Não existe uma primazia dos direitos. Então, porque ela não tem o documento, esse outro direito vai ser negado?
O seu livro é sobre direitos. Isso faz a gente pensar que a certidão de nascimento é em si um direito, afinal, sem ela as pessoas não conseguem acessar o Estado. Mas o documento sozinho não garante a cidadania. Até que ponto esse papel significa o ingresso no mundo dos direitos?
As pessoas têm uma expectativa muito grande sobre o documento. Como é o caso da Damiana, que dizia: “Agora eu vou viver a vida”. A dona Maria da Conceição dizia: “Eu me sinto gente agora”. Eu ouvi isso muitas vezes. Elas diziam: “Esse aqui é o dia que eu virei gente, é o dia em que eu nasci de novo”. Eu falo do documento como redenção. Veja: o documento em si é um direito, e é importante que ele seja alcançado. E, de fato, muitos conseguem, a partir daquele documento, entrar nesse mundo dos direitos. Como a própria dona Maria da Conceição. Ou como a Cristiane, que abre o livro: ela consegue, a partir dali, ter um emprego de carteira assinada. Mas, para outros, é uma exclusão tão grande que o papel não consegue resolver os outros problemas. Elas acham que o documento vai resolver tudo e, na verdade, como disse mais de uma vez, existe uma contínua negação de direitos. Porque são muitas outras exclusões. Mas sem dúvida, o documento é um passo imprescindível para entrar nesse caminho da cidadania. Ele já é cidadania em si e é também uma chave para esse caminho.
“Eu me sinto como um cachorro.
Sou uma pessoa que não existe”
Maria da Conceição, 52 anos.
Mas elas têm a real consciência do que o documento significa?
Têm. É uma consciência que foi trazida na busca. Depois de tantos anos da “síndrome do balcão”, depois de ter tantos direitos negados, ao receber o documento, elas sabem imediatamente que caminhos foram fechados e, por oposição, têm uma expectativa sobre os caminhos que podem ser abertos, como, por exemplo, passar a receber os programas sociais. Veja a história do Paulo. O Paulo é um rapaz bonito, galã, lutador de MMA, que foi criado pela irmã. Ele tinha a expectativa de resolver o problema do documento no primeiro dia que vai ao ônibus, porque queria viajar com o grupo de MMA, mas não vai poder, já que é necessário fazer a busca de que falei. Ele teve que esperar. E aí ele cai num choro muito sentido. Em algum momento, ele diz: “Mas eu já perdi tanto!”. Então, ele sabia perfeitamente o quanto de direitos ele tinha perdido por causa do documento e é daí que vem essa expectativa de que direitos também poderiam ser alcançados. Mas é isso: o documento é um passo, que muitas vezes esbarra na desigualdade estrutural brasileira. Um outro caso do livro é a história de dois primos, que nasceram muito próximos um do outro, filhos de duas irmãs. Um foi registrado e o outro, a mãe não registrou porque o pai estava doente, essas questões da vida. Um deles vai crescendo numa vida de pobreza, mas vai à escola, trabalha, é motorista de caminhão, e o outro, aquele que não tinha documento, não sabia nem o dia do aniversário. Ele comemorava o aniversário no dia do primo. Era uma mesma família, mas o documento fez toda a diferença entre eles.
A capa do livro é muito emblemática exatamente por trazer um resto: um documento todo picotado, que na verdade pertencia a um de seus entrevistados. Pode nos contar a história da capa?
É um apego ao que sobrou do documento, como uma tentativa de se identificar. Esse senhor, seu Paulo, estava muito desesperado para tirar a segunda via. Ele dizia: “Eu tenho documento!” Mas é a tal da segunda via inacessível. Pedi a ele que me mostrasse o documento. Quando ele despeja de um envelope, era uma certidão de nascimento. Para a maioria de nós, esse é um documento que fica ali, guardado, é algo impensável andar com a sua certidão de nascimento. Mas era o único que ele tinha — e naquele estado: despedaçado! E aí a gente entende a dificuldade dos técnicos para reconstituir a história de vida, porque a certidão estava realmente ilegível e rasgada. Mas é a relevância do documento como esse lugar de identidade.
Por último, um trecho da sua tese foi citado na prova do Enem, cujo tema da redação era exatamente “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. Qual a sensação depois de ter contribuído com a pesquisa sobre tema tão relevante para o debate público?
Antes mesmo de saber que o texto motivador da redação era um trecho da tese, só por ver o tema, eu já fiquei feliz e, obviamente, muito orgulhosa. Fiquei muito feliz como pesquisadora, porque é muito difícil fazer pesquisa científica em ciências humanas. Nesse momento em que a ciência e a universidade pública estão sob ataque do governo Bolsonaro, a gente teve condição de mostrar que a pesquisa em ciências humanas é relevante socialmente e pode fazer parte do nosso dia a dia. Eu sei que algumas pessoas acharam o tema difícil — e talvez tenha sido um pouco, apesar de sua relevância. Mas um tema é difícil quando ele não está no nosso radar.
“Rita é uma mulher negra de 32 anos e mãe de 4 filhos de 8, 10, 15 e 20 anos. Auxiliar de cozinha numa pizzaria e diarista, moradora de Madureira, bairro da Zona Norte do Rio, relatou que respondia sozinha pelo sustento da casa, pois havia alguns anos não vivia mais com o antigo companheiro. Disse que recebia na pizzaria cerca de R$ 900 mensais, mais as diárias da faxina a R$ 150 cada. Esse trabalho era todo realizado na informalidade, já que Rita, sem registro, não possuía carteira de trabalho ou outro documento. A renda era completada com bicos feitos pelos dois filhos mais velhos, Rodrigo e William. Nem Rita nem os filhos têm documentos, e por isso ela procurou o ônibus da Justiça Itinerante, encaminhada pelo padre de sua comunidade. Agora Rita trouxe a irmã, a também diarista Claudete, de 42 anos. As duas irmãs me relataram a mesma história: a mãe dela teve 11 filhos, mas nenhum chegou a ser registrado”.
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