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Palestinos de Gaza pedem socorro. Ainda em outubro de 2023, poucas semanas após o ataque de integrantes do Hamas ao Sul de Israel (7/10), que vitimou cerca de 1,2 mil israelenses e iniciou o mais recente massacre em curso contra a população palestina, o ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz e hoje coordenador do Centro de Relações Internacionais da instituição (Cris/Fiocruz), Paulo Buss, dizia que se aquele novo conflito não tivesse um fim rápido, o território da Faixa de Gaza passaria a ser “de uma prisão a céu aberto, um grande cemitério”.

A afirmação foi feita em um artigo escrito com o embaixador Santiago Alcázar e o presidente da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública (WFPHA), Luis Eugênio Souza, publicado no site do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz e posteriormente na seção de cartas da revista científica Lancet, em uma versão reduzida. Dito e feito. Passados 12 meses do início do que o governo israelense alega ser um direito de defesa, as trágicas previsões do professor-emérito da Fiocruz se confirmaram.

Desde então, incessantes bombardeios deixam um rastro de destruição e caos no território palestino de Gaza e um número oficial que já supera 40 mil mortos, além de outros mais de 10 mil desaparecidos, muito possivelmente soterrados por escombros. A grande maioria são civis (somente mulheres e crianças representam cerca de 65% dos palestinos assassinados). Paulo Buss reitera que a maneira como os ataques são feitos multiplica as mortes e tira daqueles que se tornam alvos qualquer possibilidade de defesa.

“Essas mais de 40 mil pessoas que perderam suas vidas foram destroçadas por bombardeios. Ou seja, não foram mortas em combate contra a força que as atacou”, ressalta. “Elas foram destruídas por mísseis, bombas de alta letalidade, e não de modo que poderiam ter alguma chance de sobreviver, como em um combate corpo a corpo” [Leia em breve a entrevista completa com Paulo Buss].

“No século 21 nunca houve no mesmo território, em uma área tão concentrada, um número tão grande de civis mortos em tão curto espaço de tempo”.

Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz

O coordenador do Cris/Fiocruz afirma que o massacre em curso contra os palestinos tem características e consequências brutais e não deve ser relativizado. “No século 21, nunca houve no mesmo território, em uma área tão concentrada, um número tão grande de civis mortos em tão curto espaço de tempo”. Para ele, todas as mortes são lamentadas, em especial daqueles que não têm envolvimento direto com a guerra.

“Mortes de militares em um conflito é algo triste, doloroso, que todos nós, pacifistas, temos que lamentar, mas se espera. Já uma concentração dessas mortes, principalmente da população civil — incluindo crianças, mulheres e idosos — com certeza é o fato mais marcante deste século”, frisa.

“O intento sionista é integral limpeza étnica da Palestina”.

Ualid Rabah, presidente da Fepal

Além de Paulo Buss, Radis ouviu o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), o advogado e filho de palestinos vindos da Cisjordânia, Ualid Rabah, para quem o atual ataque a Gaza é uma propagação do que já ocorre naquele território pelo menos desde a implantação do Estado de Israel, em 1948. “Isso sem falar dos 25 anos anteriores, de presença colonial britânica para impor um projeto sionista sobre a Palestina”, acrescenta, ao mencionar a participação inglesa na partilha de terras palestinas aos judeus ao longo do século 20, processo esse intensificado após a Segunda Guerra Mundial.

Entenda a situação e os impactos da devastação de Gaza na saúde e na vida da população local e saiba por que os ataques continuam, que interesses os movem e como a diplomacia da saúde pode influenciar um cessar-fogo permanente e a paz na região.

— Foto: EPA.

Guerra ou genocídio?

Para Paulo Buss, as evidências de um genocídio contra o povo palestino são cada vez mais acentuadas, especialmente porque os ataques são dirigidos indiscriminadamente contra edifícios utilizados para abrigo e cuidado de civis, como escolas, hospitais e instalações das Organizações das Nações Unidas (ONU). “Nós estamos frente a uma guerra absolutamente desigual entre forças armadas regulares muito bem equipadas contra populações civis”, adverte.

“Por isso, muitos analistas dizem que está se cometendo um genocídio em Gaza, porque há a intenção de matar grupos concentrados em instalações que não deveriam estar sendo bombardeadas, segundo as próprias regras da Convenção de Genebra sobre guerra”, complementa.

O presidente da Fepal partilha da mesma posição e rejeita outras terminologias usadas para expressar os ataques. “Não só não é [simplesmente] guerra, como evidentemente não é conflito. Trata-se de uma guerra colonial de décadas que visa ao extermínio da população palestina”. Ainda segundo Ualid, a Fepal afirmou em nota pública que a ação das forças israelenses comandadas por Benjamin Netanyahu contra a população árabe na Palestina trata-se de um genocídio em curso — “promovido por meio de propaganda de guerra travestida de notícia, implicando os veículos de comunicação empresariais e hegemônicos no primeiro genocídio televisionado da história”, diz à Radis [Leia sobre o papel da imprensa ocidental na visão da Fepal clicando aqui].

Paulo acrescenta à análise o fato de os bombardeios serem intencionalmente direcionados contra alvos civis, uma vez que Israel domina tecnologias militares mais eficazes, sob alegação de que combatentes do Hamas estivessem ali. O que não tem sido comprovado. Ualid afirma ainda ser fácil refutar o argumento central invocado pelo governo israelense, de direito à autodefesa. “Pelo Direito Internacional a autodefesa está limitada aos povos sob ocupação colonial, como é o caso palestino, jamais extensível à potência colonial ocupante, caso de Israel”, afirma.

Outro fato que tem chamado a atenção de organismos internacionais é a constante violação de direitos humanitários praticada por Israel contra civis palestinos, que vivem — ou sobrevivem — em condições desumanas. Sem infraestrutura e com carência de itens básicos de necessidade. Para se ter uma ideia, pessoas, inclusive crianças, estão sendo submetidas a cirurgias e amputações sem anestesia, assim como mulheres grávidas estão passando por cesarianas também sem anestésicos, por conta da destruição, dos bloqueios e cercos impostos pela dominação das forças israelenses em Gaza — além das prisões arbitrárias de palestinos, muitos deles torturados sem qualquer comprovação de envolvimento com o Hamas.

O presidente da Fepal denuncia ainda que Israel bloqueia Gaza e ocupa o restante do território palestino, impondo confiscos, regime segregacionista e diversos outros crimes de lesa-humanidade e de guerra. Crimes esses, segundo ele, “já muito bem descritos em relatórios da ONU e das mais importantes organizações não governamentais (ONGs) internacionais de direitos humanos”. Ualid afirma ainda que “o genocídio televisionado que vemos é motivado pelo continuado fracasso sionista de tornar a Palestina sem palestinos”.

Ele acrescenta que esses ataques ocorrem há muito mais do que um ano. “Os sionistas, ao menos desde 1897, conceberam que fariam da Palestina uma terra sem povo. E como fazer isso? Por meio de uma guerra de estrangeiros contra originários, uma guerra de limpeza étnica”, analisa.

Questionado, então, sobre o que seria o 7 de outubro de 2023 nesse contexto, ele recupera essa memória: “Seria o seguimento do extermínio palestino, perseguido pelos sionistas desde 1897 como plano, a partir de 1923 como prática colonial ao lado dos britânicos e, finalmente, desde dezembro de 1947 como ação direta do sionismo, primeiro como gangues armadas limpando o território, depois, a partir de 14 de maio de 1948, como Estado supremacista judaico que busca a integral judaização da Palestina”. Ualid cita ainda uma série de irregularidades na própria constituição do Estado israelense [Leia em breve a entrevista completa].

O acúmulo de privações e violações praticadas contra os palestinos impactam diretamente em suas condições de saúde física e mental. E é justamente sob o mote da saúde como ponte para a paz [Leia mais clicando aqui] que Paulo Buss vem liderando articulações políticas para levar essa proposta ao G20, cuja reunião de cúpula ocorre em novembro, no Rio de Janeiro. O tema foi discutido em duas edições de Webinários Internacionais promovidos pelo Cris/Fiocruz, em novembro de 2023 e abril de 2024. [Assista em: bit.ly/saudeponteparapazfiocruz1 e bit.ly/saudeponteparapazfiocruz2].

— Foto: Irina Dambrauskas/Reuters

Cemitério a céu aberto

O coordenador do Cris/Fiocruz lamenta à Radis o acerto em seu prognóstico feito um ano atrás, sobre Gaza virar “um cemitério a céu aberto”: “Hoje essa é a realidade do local”. Sob os escombros, há possivelmente milhares de corpos que não foram retirados, ele ressalta. Com isso, além da dor e da incerteza daqueles que perderam seus entes queridos e sequer puderam se despedir, os corpos em decomposição e os animais mortos acabam gerando um ambiente propício a infecções. Um cenário devastador.

Ualid Rabah atribui o extermínio palestino em Gaza a um projeto maior por parte do governo israelense: “Eliminar algumas centenas de milhares de palestinos imediatamente, impedir sua capacidade reprodutiva, com o extermínio industrial de mulheres e crianças, e programar as mortes de outras centenas de milhares de palestinos, seja negando atendimento a feridos e doentes ou por conta das condições inabitáveis impostas ao território”, diz.

Um dos painelistas do seminário internacional Saúde como ponte para a paz, promovido pela Fiocruz, foi o médico da Cisjordânia e ativista político palestino Mustafa Barghouti, que deu dimensões mais concretas da tragédia humanitária. No evento realizado remotamente no dia 17 de abril de 2024, ele afirmou que o mundo precisa conhecer o que se passa em Gaza.

“Eu não apoio a violência e acredito que nenhuma criança palestina ou israelense deveria ser morta. Nenhum civil deveria morrer, mas neste momento o mundo tem que perceber a realidade, que estamos sendo sujeitos a um genocídio que tem que parar. Uma limpeza étnica, que forçou milhões de pessoas a saírem de suas casas em Gaza”, disse. Estima-se que a região já tenha cerca de 2 milhões de desabrigados por conta dos bombardeios.

À Radis, o presidente da Fepal apresenta números impactantes registrados em menos de um ano de ataques que embasam sua afirmação de genocídio e extermínio étnico na região. “Considerando os 10 mil desaparecidos sob os escombros, já são 51.414 palestinos exterminados em Gaza, 2,5% de sua população [até 4/9]”, afirma.

Ainda segundo Ualid, os feridos — quase todos mutilados e em situação grave — já totalizavam 99.554 pessoas, quase 5% da população local, até aquela mesma data. “As crianças assassinadas, considerando as desaparecidas sob escombros, já beiram 22 mil, ou quase 10 mil por milhão de habitantes. É a maior matança de crianças da história das guerras e genocídios”, enfatiza, ao lembrar que na Segunda Guerra Mundial morreram 2.813 crianças por milhão de habitantes. “O que significa dizer que Israel assassina 3,4 vezes mais crianças palestinas [proporcionalmente] do que as que foram assassinados no período nazista inteiro”, compara.

Em Gaza, hoje, as crianças que perderam mãe, pai e todos os outros familiares já são 17 mil. “A matança de mulheres também é inigualável. Mais de mil das que foram assassinadas estavam grávidas. Os abortos involuntários aumentaram 300% no período. É claramente a busca da inviabilização da vida e da sua reprodução em Gaza”, denuncia Ualid.

A região com cerca de 360 quilômetros quadrados e de elevadíssima densidade demográfica está completamente devastada e mais isolada do que de costume. Paulo Buss lembra que cada vez mais habitações humanas são destruídas, assim como outras instalações e serviços coletivos. Além disso, suprimentos como comida, água, remédios e vacinas não chegam ao local. “Praticamente todo o sistema de saúde foi destruído. Centenas de médicos e enfermeiras morreram. Centenas de pessoas que trabalhavam nas ONGs de caráter humanitário ou de saúde que estavam no território também morreram”, relata.

A situação é tão grave que quem consegue sobreviver às bombas passa a conviver com outros desafios diários para se manter vivo. “A realidade é que as pessoas em Gaza estão sofrendo com os bombardeios em primeiro lugar e depois com fome, mas também há pessoas que estão morrendo de doenças, porque Israel está destruindo toda a infraestrutura de saúde”, afirmou o médico palestino Mustafa Barghouti.

— Foto: Abed Zagout/UNICEF.

Direito à saúde negado

No fim de agosto de 2024, apenas 45 dos mais de 100 ambulatórios de atenção primária que existiam no território estavam funcionando, e ainda assim de forma parcial. Dos 36 hospitais então existentes para uma população de mais de dois milhões de pessoas, apenas 16 realizavam atendimentos, também parcialmente, detalha Paulo Buss. “Além das mortes, dos feridos e das sequelas, nós ainda temos a falta de acesso crescente e muito elevada”, narra.

Outro fator agravante são os ambientes insalubres e as aglomerações que propiciam o surgimento de doenças. “Vemos que muitas pessoas estão sofrendo com várias doenças diferentes, desde infecções até diarreias terríveis, epidemias grandes, como de hepatite, que está afetando mais de dez mil pessoas. Além disso, há pelo menos 500 mil casos de doenças de pele e outras doenças por causa das áreas superpopulosas em que as pessoas estão se concentrando com falta de saneamento”, relatou Mustafa, em sua fala no webinário da Fiocruz.

Na mesma sessão, em abril de 2024, o médico palestino contou que, àquela altura, cerca de 60 mil mulheres grávidas estavam tendo dificuldades para acompanhar a gestação e terem seus bebês em Gaza de forma segura. Na ocasião, havia 64 mil mulheres amamentando sem as mínimas condições de dignidade. “Muitas delas sequer conseguem alimentar-se adequadamente para fornecer nutrientes a seus bebês”, disse.

“Eu não imaginava, no século 21, que pudéssemos ter essa situação, de fazer cirurgias em pessoas sem anestesia”, desabafou. Algo extremamente desumano e inimaginável para quem acompanha os desdobramentos dos confrontos à distância. Ainda segundo informou, doentes crônicos também estão sem tratamento. Pacientes de câncer ou de hemodiálise, dentre outros agravos, estão tendo piora de suas condições e morrendo sem a assistência devida.

“Todos os dias e todas as noites são pesadelos para nós [médicos], pensando como conseguir sobreviver e ter equipes para tratar todo mundo, como a gente vai conseguir medicamentos e oxigênio para alguns hospitais que ainda estão funcionando, como a gente vai ter equipamentos cirúrgicos para as equipes que precisam fazer operações médicas. É muito difícil”, relatou.

Ualid detalha que 12 mil pessoas deixaram de tratar o câncer e 300 mil interromperam o acompanhamento de alguma doença. “Outros 600 mil contraíram doenças em virtude da insalubridade provocada pelas armas e munições e pela fome e sede, bem como, claro, em virtude das milhares de pessoas e animais que apodrecem sob os escombros”.

Paulo Buss comenta que o retorno da poliomielite em Gaza é uma das consequências das questões apontadas por Mustafa e Ualid. O poliovírus selvagem — altamente contagioso — foi diagnosticado em um bebê palestino de 10 meses. Antes da guerra, a paralisia infantil estava erradicada há 25 anos na região. “Agora a OMS fez um alerta de que podemos ter um surto inédito de pólio, que já estava praticamente controlada no mundo inteiro, com os ataques israelenses à Faixa de Gaza”, afirma.

O coordenador do Cris/Fiocruz também ressalta o problema da fome. “Temos relatos importantes que mostram que o grau de desnutrição em toda a população, mas particularmente em crianças e idosos, é assustador”. A OMS divulgou um relatório destacando que, em Gaza, 96% da população enfrenta níveis elevados de insegurança alimentar aguda devido ao recrudescimento das hostilidades e à interrupção do acesso humanitário.

“Uma criança com desnutrição na primeira infância, de zero aos seis anos, não consegue formar o número de células no sistema cerebral que vai ser decisivo para as condições dela no futuro”, alerta Paulo, que é também médico pediatra.

Qual o futuro de Gaza?

Para Paulo Buss, ainda que leve décadas, a ONU está preparada para a reconstrução de Gaza e tem estratégias de intervenção muito bem estabelecidas pela experiência que possui em função das forças de paz e ações de ajuda humanitária que aprendeu desde sua criação, há quase 80 anos. “Quando for para reconstruir, que é uma missão que a ONU terá, o dinheiro precisará vir também daqueles países que têm maior capacidade, que tem o PIB [Produto Interno Bruto] per capita maior, para derivar recursos para a agenda internacional do desenvolvimento e da restauração de países destroçados pela guerra, pela violência”, avalia.

Ele ressalta que além de reconstruir será preciso remover os escombros e destroços dos bombardeios. Muito possivelmente, um trabalho de décadas. “A remoção vai ser um problema absoluto. Imagine a reconstrução. Vai levar 20, 30 anos para Gaza voltar a ser o que era. Isso se o fluxo de dinheiro for suficiente. E nós não sabemos que futuro vamos ter para as ações humanitárias da OMS”, pondera. “Isso, também, se o dinheiro fluir para essa causa e se esse fluxo atender à situação dos dois Estados, Israel e Palestina, que não é o que Israel aparentemente deseja, ainda que muitos políticos e a população de Israel gostariam que ocorresse”, complementa.

Para Mustafa Barghouti, é imprescindível tratar da desocupação do território por parte de Israel antes de falar em reconstrução. “Esse sofrimento não vai terminar se não terminar a ocupação israelense e toda a discriminação, e sem permitir que nós, pessoas palestinas, possamos ser de fato livres dessa grande ocupação e do sistema de americanização e apartheid que ocorre na região”, afirma.

Pode-se dizer que recentemente um passo importante foi dado nessa direção. Em decisão histórica, a Assembleia-Geral da ONU, reunida em 18/9, aprovou uma resolução elaborada pelos palestinos para que Israel deixe todas as áreas de ocupação palestina em até 12 meses.
O presidente da Fepal Brasil lembra ainda que a ação bélica de Israel pode se intensificar e estender a outros países do Oriente Médio. Ao mesmo tempo que ataca palestino em Gaza e na Cisjordânia, Israel tem atacado regiões do Líbano, Irã e Iêmen, por exemplo. Essa expansão pode acarretar danos ainda maiores na região, elevando o potencial de destruição, miséria e mortes.

A proposta trabalhada pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) de saúde como ponte para a paz foi gestada em seus seminários internacionais, juntamente com outros atores globais da saúde, e tratada também em algumas edições de sua publicação impressa, o Caderno do Cris: uma espécie de “raio-x” da situação internacional da saúde, editado quinzenalmente. [Acesse as publicações em https://bit.ly/cadernosdocrisfiocruz].

O passo seguinte foi propor à Presidência do G20 que aceitasse discutir a questão estratégica da saúde como ponte para a paz, acrescentando o tema na Declaração dos Ministros da Saúde. Paulo Buss explica que a inspiração da proposta parte de uma experiência adotada nas décadas de 1980 e 1990, em conflitos na América Central. “A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) conseguiu, na gestão do brasileiro Carlyle Guerra de Macedo, alguns dias de cessar-fogo, que eram destinados à imunização de crianças e adultos nas regiões de confronto”, recorda.

Lawrence Gostin, jurista da Universidade de Georgetown (EUA) e especialista em Direito da Saúde Pública, foi outro participante do segundo seminário internacional promovido pela Fiocruz, em abril de 2024, e na ocasião endossou o pensamento de Paulo Buss: “Acreditamos que se focarmos na saúde, no sistema de saúde, em medicamentos de saúde pública, incluindo nutrição, água potável e todas as necessidades básicas de sobrevivência, isso pode ser uma ponte para a paz”. Ele afirma ser evidente que saúde e guerra não se associam: “Nós acreditamos que a saúde é sagrada, a saúde tem um valor que nunca pode ser desconsiderado e que a guerra e o conflito são o contrário da saúde e o bem-estar físico e mental”.

O jurista estadunidense afirmou ainda que a comunidade internacional precisa se movimentar fortemente para prevenir as guerras, levar ao cessar-fogo e aumentar a assistência e a ajuda humanitária na região destruída pelos bombardeios. E fazer tudo para que quando uma guerra emergir, os pacientes, os trabalhadores da saúde, os serviços de saúde pública, tenham garantido o acesso à comida, à água, à moradia e a outros cuidados e necessidades básicas. “As nossas recomendações podem ter uma contribuição significativa para a paz e para a saúde”, concluiu. Que a paz possa finalmente vencer e que a saúde venha, de fato, a ser um de seus possíveis caminhos.

— Foto: Abed Zagout/UNICEF.

Os interesses da guerra

Mas por que uma guerra tão letal e desumana, especialmente para uma das partes envolvidas, não tem um fim? Por que organismos internacionais fingem não perceber as seguidas violações de direitos em territórios palestinos invadidos por Israel? A resposta — ou uma das respostas possíveis — é que há um forte interesse econômico de quem lucra com as guerras sustentando os incessantes bombardeios na Faixa de Gaza. Em reportagem publicada pelo jornal O Globo (14/4/2024), o jornalista Filipe Barini, repórter da seção Mundo, descreve este como o momento de ouro para a indústria armamentista, em especial (mas não só) para empresas norte-americanas.

Paulo Buss reforça que, apesar da retórica da paz, os Estados Unidos continuam sustentando economicamente e militarmente Israel. “Eles afirmam estar perto de um acordo, mas na realidade, em nenhum momento cortaram o suprimento de armas, mísseis e bombas que mantém essa situação”. Essa afirmação é confirmada por Filipe, tanto no texto que ele assina no jornal quanto em sua fala no webinário do dia 17/4, do qual também participou.

Como explicou, cada dia de guerra em Gaza custa cerca de 220 mil dólares. Em 2023, empresas de defesa estadunidenses exportaram 238 bilhões de dólares [R$ 1,22 trilhão] só em produtos militares — “desde munições a aeronaves”, sendo 80,9 bilhões de dólares financiados diretamente pelo governo norte-americano, que ainda pretende ampliar o subsídio a Israel.

A matéria publicada em O Globo aponta que, segundo levantamento da organização American Friends Service Committee, cerca de 50 empresas de vários países além dos Estados Unidos, incluindo Israel, lucraram com a guerra em Gaza, desde o fornecimento de uniformes e coletes até bombas guiadas por satélite.

Paulo Buss aponta graves contradições por trás de todo esse gasto que promove destruição, na contramão do que o mundo necessita. “Todo dinheiro disponível nos orçamentos desses grandes países em vez de irem para a chamada ajuda oficial para o desenvolvimento, estão indo para a guerra, para gastos militares”. Segundo ele, o mundo vive uma contradição ética e política brutal. “O mundo pós-Segunda Guerra, esse mundo do século 21, é um mundo absurdo, porque no fundo tudo isso que estamos assistindo em Gaza parte do conflito de poder pela hegemonia política do mundo”, analisa.

“A quem interessa essa guerra? A quem interessa que seja uma guerra, vamos dizer assim, que se pode deixar morrer criança?”, questiona. E prossegue: “Quando tentam conter a guerra, é para o preço do petróleo não subir, não é porque está havendo mortes, é tentando evitar que o conflito no Oriente Médio cresça, porque do contrário vai aumentar o custo da produção do petróleo, o barril vai ficar mais caro, vai subir a gasolina, vai ter inflação. É simples assim”, explica.

Brics do Oriente Médio

O presidente da Fepal chama atenção também para o uso político-militar de Israel por parte dos Estados Unidos por conta do ingresso de países do Oriente Médio nos Brics [grupo de cooperação econômica entre países emergentes, liderado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Interesse esse que ele aponta como “razão máxima da ação genocida do país norte-americano”. Ualid cita que Irã, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos já integram o grupo.

“Agora a Turquia pede oficialmente sua adesão ao bloco. Isso significa [ao todo] mais de 300 milhões de habitantes, quase 6,5 milhões de quilômetros quadrados de área, que dominam todas as conectividades terrestres e marítimas entre Europa, África e Ásia, perto de 7 trilhões de dólares de PIB somado, considerando o critério da paridade do poder de compra, e, claro, as maiores reservas de petróleo e gás do mundo”, comenta. “Temos ainda que considerar que estes países ‘Brics do Oriente Médio’ têm forças armadas poderosas, qualquer uma delas seria capaz de derrotar Israel em confronto em que a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] não socorra o lado israelense”.

Ualid lembra ainda que o “Ocidente” é quem promove o genocídio e impede que ele seja parado, especificamente os países do Norte. “As armas desse genocídio são dos Estados Unidos, em 80%, e o restante vem da Alemanha, o segundo maior fornecedor bélico de Israel, além de Inglaterra, França e outros em muito menor escala. Os vetos na ONU para impedir a condenação de Israel são dos Estados Unidos”, alega. Mas ele adverte também que a maior parte da comunidade internacional é pró-Palestina: “De Brasil à África do Sul, de China à Rússia, os países árabes e os de maioria muçulmana, a quase totalidade do restante do mundo, dizem não ao genocídio”.

Omissão (ou conivência) da imprensa ocidental na cobertura de Gaza

Os crimes praticados pelas forças militares israelenses no território palestino contam, sistematicamente, com o silêncio das principais organizações de comunicação do mundo ocidental. Quando muito, são minimizados por um discurso de resposta ao “terrorismo”. Para Marcos Feres, coordenador de Comunicação da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), a omissão (deixar de lado, esquecer, preterir, silenciar, não mencionar ou esquecer) ou conivência (atitude de tolerar ou consentir tacitamente a prática de um ato irregular ou ilícito praticado por terceiro) são estratégias deliberadas editorialmente por esses meios de informação e comunicação.

“O genocídio palestino é um ponto de inflexão na história do jornalismo ocidental, de modo geral, e brasileiro em particular. O expediente usado pela imprensa tradicional não é novo. Desumanização de povos não-ocidentais, envelopamento de propaganda e narrativa dos Estados Unidos e de Israel como ‘jornalismo’, de maneira acrítica e antiética. Não dar espaço ao contraditório e ao amplo debate e, por último, efetivamente mentir e distorcer fatos históricos e contemporâneos para servir à narrativa a qual estão subservientes.”

O espaço desigual das narrativas ganhou destaque na página da Fepal (www.fepal.com.br), com a divulgação de um estudo do jornalista Eduardo Vasco. Segundo constatou, no primeiro mês da cobertura do Jornal Nacional (TV Globo) — principal telejornal brasileiro — sobre o conflito na região, o programa concedeu três vezes mais espaço a declarações dos representantes do governo de Israel do que aos palestinos. “Os palestinos e aliados acusam diariamente Israel de ser criminoso, assassino, genocida e terrorista, mas não recebem nenhum espaço. As declarações de Israel e seus aliados são sempre contundentes”, escreveu Vasco.

Marcos conta que a Direção da Fepal faz um árduo trabalho para restabelecer a verdade sobre os fatos. “O presidente Ualid Rabah já percorreu boa parte do território nacional em palestras e debates. Concedeu entrevistas a dezenas de veículos de comunicação”. Radis foi um deles. Apesar disso, o diretor de comunicação da Fepal tece duras críticas à chamada grande mídia: “O principal desafio é justamente a postura criminosa da imprensa dita tradicional, que desde o primeiro dia do genocídio claramente escolheu um lado: a narrativa sionista, a repetição da propaganda israelense de maneira acrítica e a desumanização de palestinos para fabricar consentimento para o genocídio”, aponta.

— Foto: Reuters.

Censura e perseguição

Além da omissão de grande parte da mídia global, o relato diário do drama dos palestinos esbarra na censura e perseguição aos jornalistas, principalmente os autônomos ou de veículos independentes. De acordo com levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), só nos primeiros cinco meses (até março de 2024), 103 jornalistas foram mortos em Gaza por ataques israelenses — a grande maioria palestinos, que estavam em campo fazendo reportagens, claramente identificáveis.

“Esses 103 jornalistas não são números, são 103 vozes que Israel silenciou. 103 testemunhos a menos sobre a catástrofe que se desenrola na Palestina, 103 vidas aniquiladas. Se os números mostram alguma coisa é que, desde 7 de outubro, nenhum lugar em Gaza é seguro, nenhum jornalista em Gaza é poupado e o massacre não para”, declara o Secretário-geral da RSF, Christophe Deloire.

Em carta aberta, publicada em julho de 2024, mais de 60 veículos de imprensa internacional, incluindo BBC, CNN, AFP e o NY Times, exigem que Israel respeite os compromissos com a liberdade de imprensa e permita o acesso “imediato e independente a Gaza”. O documento diz ainda que é importante “aliviar os colegas jornalistas palestinos que cobrem a guerra desde o início, pagando caro com as suas vidas”.

Rede social como contraponto

As alternativas para contrapor a narrativa de Israel e seus aliados foram alguns dos temas de discussão do 11º Congresso da Federação Árabe Palestina do Brasil, realizado em São Paulo, no fim de setembro. Segundo Marcos Feres, o congresso no Brasil se tornou um marco relevante na luta pela verdade. O evento contou com 197 delegados eleitos, representando a comunidade brasileiro-palestina de todo o território nacional (60 mil imigrantes e refugiados e seus descendentes).

“Uma oportunidade dessa diáspora brasileiro-palestina fazer um balanço dos esforços até aqui e discutir estratégias e novas frente de atuação e mobilização da sociedade civil e dos órgãos públicos frente ao genocídio. O Brasil é um ator de peso no cenário internacional”, destaca. Marcos lembra que os próprios canais de comunicação da Fepal também têm sido fundamentais na divulgação sobre a realidade em Gaza.

“Nossa estrutura de comunicação é pequena, mas feita por gente muito dedicada e comprometida. De certa forma, o nosso trabalho se tornou cobrir o ‘vácuo’ que a imprensa deixou na cobertura do genocídio”, afirma.

Ele explica quais ferramentas foram utilizadas nessa ‘guerra de informações’: “Somos jornalistas e produtores de conteúdo brasileiro-palestinos. Com as ferramentas que temos, notadamente as redes sociais, oferecemos à sociedade brasileira um contraponto à narrativa hegemônica — e pró-genocídio — que a imprensa brasileira adotou como linha editorial”, diz.

“O genocídio palestino é o primeiro a ser transmitido ao vivo pelas próprias vítimas. Esse novo paradigma coloca em xeque a narrativa da imprensa tradicional”.

Marcos Feres,  coordenador de Comunicação da Federação Árabe Palestina do Brasil

“O genocídio palestino é o primeiro a ser transmitido ao vivo pelas próprias vítimas. Esse novo paradigma coloca em xeque a narrativa da imprensa tradicional, que agora não é capaz de monopolizar a informação e a narrativa”, constata Marcos. “É um trabalho de formiguinha, mas colhemos os frutos e vemos uma nova geração interessada e ativa na causa palestina e em frear o genocídio em curso”, conclui.

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