A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), completou 10 anos em 2025. Ela representa um marco legal para cerca de 14,4 milhões de brasileiros e brasileiras com algum tipo de deficiência, segundo o Censo de 2022.
A LBI nasceu da mobilização social e da ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) e busca assegurar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiência (PcD). De acordo com Hisaac de Oliveira, advogado e servidor da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, as duas principais conquistas da legislação estão nas áreas da capacidade laboral e da capacidade civil.
De acordo com o artigo 6º da LBI, “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. Ou seja, a PcD tem os mesmos direitos que qualquer outra, inclusive o de trabalhar e de ser reconhecida como capaz para o trabalho, salvo se houver outros impedimentos legais — como, por exemplo, inscrição irregular em um conselho de classe; mas não pela deficiência em si.

Hisaac conta que, antes, pessoas com deficiência intelectual eram colocadas sob tutela de outras. Quanto maior a dependência, maior era a interferência de terceiros na capacidade de decidir sobre aspectos da vida, como constituir família, ter filhos e adotar. E a lei vem para garantir que o desejo da pessoa com deficiência seja respeitado.
Ele explica que em alternativa à curatela, utilizada quando a pessoa não consegue mais tomar nenhuma decisão sobre si, a LBI traz a decisão apoiada, um instituto jurídico que permite à pessoa com deficiência tomar decisões com o apoio formal de até duas pessoas de sua confiança, para ajudá-la no seu cotidiano, como durante a assinatura de contratos, decisões médicas e questões patrimoniais.
Vale ressaltar que o juiz avalia se esses apoiadores têm algum tipo de interesse particular e se vão agir em benefício da pessoa com deficiência. Assim, ela não perde sua capacidade civil. O juiz pode, inclusive, anular decisões, caso fique comprovado que houve abuso, negligência ou má-fé dos apoiadores.
Avaliação biopsicossocial
Hisaac coordenou o grupo de trabalho da avaliação biopsicossocial unificada da deficiência, ainda não regulamentada no Brasil, cujo relatório final propõe uma metodologia que vai além do modelo médico tradicional, reconhecendo a deficiência como uma interação complexa entre fatores biológicos, psicológicos e sociais. A intenção foi alinhar a análise realizada pelo grupo com os princípios da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da LBI.
“Temos uma mudança substancial na forma de enxergar o que é deficiência. A pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento de longo prazo, seja de natureza física, mental, intelectual ou sensorial”, afirma. Além disso, o advogado explica que é necessário observar se aquela pessoa realmente enfrenta barreiras que a excluem da plena participação na sociedade.
Historicamente, o modelo médico e individual tem sido predominante na avaliação e comprovação da condição de deficiência, focando principalmente nas limitações e alterações do corpo consideradas como desvio do padrão de “normalidade”. Já o modelo biopsicossocial, introduzido pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e apoiado pela Convenção Internacional, oferece uma perspectiva multidimensional, alcançando o equilíbrio entre o modelo médico e social da deficiência.
Esse modelo reconhece que a deficiência resulta da interação entre as condições de saúde da pessoa e os fatores pessoais e ambientais. Portanto, a deficiência não é uma limitação inerente, mas uma consequência de barreiras sociais e ambientais que restringem a participação plena na sociedade.
A avaliação biopsicossocial da deficiência foi instituída pela LBI e deve ser padrão para o reconhecimento da condição de pessoa com deficiência no acesso às políticas públicas e na concessão de direitos. Atualmente, no Brasil, há dois instrumentos de avaliação biopsicossocial utilizados para concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e da aposentadoria especial à PcD. Entretanto, o grupo de trabalho busca padronizar toda avaliação biopsicossocial do país, através da utilização do Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M), o mais aperfeiçoado para essa avaliação atualmente, que deve ser aplicado de forma multiprofissional e interdisciplinar, por pelo menos dois profissionais de diferentes formações.
Diferenças entre a avaliação biomédico e biopsicossocial
Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado
O relatório elaborado por Hisaac de Oliveira, Jonathas Rodrigo Bitencourt Duarte e Maria da Conceição dos Santos destaca a importância da regulamentação do Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M), um modelo de avaliação biopsicossocial unificado da deficiência. A implementação permitirá, segundo o documento, uma avaliação mais justa e inclusiva, reduzindo a burocracia e melhorando a eficiência da administração pública.
O IFBr-M avalia a deficiência de forma ampla, considerando não apenas o diagnóstico médico, mas o impacto real na vida da pessoa em quatro dimensões principais:
- Funções do corpo (como dor, funções neurológicas e psicológicas)
- Estruturas do corpo (como ausência ou alteração de membros e órgãos)
- Atividades e participação (capacidade de realizar tarefas cotidianas e participar da vida social, como mobilidade, comunicação e trabalho) e
- Fatores ambientais (como barreiras arquitetônicas, apoio social, tecnologias assistivas e atitudes da sociedade)
O objetivo do IFBr-M é mensurar, de maneira padronizada e objetiva, como a deficiência afeta a funcionalidade da pessoa em seu contexto de vida, servindo como base para acesso a direitos e políticas públicas inclusivas.
Os próximos passos, como mostra o relatório, incluem a regulamentação e normatização da avaliação, a capacitação das equipes avaliadoras e a implantação gradual do Sistema Nacional de Avaliação da Deficiência (Sisnadef), assegurando que todas as etapas do processo sejam otimizadas antes de sua aplicação em escala nacional.
Mais de 300 avaliações de teste já foram realizadas em projetos-piloto nos estados do Piauí e da Bahia, e um protótipo da plataforma digital para aplicação nacional do Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M) está em desenvolvimento.
Para Hisaac, que é uma pessoa com deficiência visual, as maiores barreiras que as PcD enfrentam atualmente estão no “acesso à saúde, à educação de qualidade e ao trabalho, três pontos fundamentais na vida de uma pessoa”. Mas, segundo ele, a pior barreira é a atitude, “que é o comportamento de outro ser humano, que gera todas as outras”.
Ele argumenta que, mesmo que um local de trabalho tenha todo o mobiliário adaptado, isso não é suficiente se os colegas forem preconceituosos. “Não adianta eu estar numa unidade onde tudo é acessível, mas que eu não possa me desenvolver na carreira, porque as pessoas que estão ao meu redor acham que sou um coitado, que não tenho condições de assumir uma função de maior responsabilidade, porque tenho uma deficiência visual”, exemplifica.
Pessoas indígenas com deficiência
Sol Terena, artesã e servidora da secretaria de cultura de Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul, reforça a necessidade de acesso à saúde, à educação e ao mercado de trabalho para pessoas com deficiência, especialmente as indígenas. “Hoje a nossa dificuldade é de autonomia. De estar falando, ocupando espaços. Dentro das aldeias temos dificuldade de ter profissionais da saúde que entendam as nossas vivências”, afirma. Sol foi picada por uma cobra aos seis anos e desenvolveu uma deficiência física no braço direito, o que adiou seu acesso à educação.
Ela conta que, na aldeia onde vive, há uma unidade de saúde que atende a 100 famílias. Dessas pessoas, 15 têm algum tipo de deficiência. “Hoje temos muitos indígenas com deficiência adquirida dentro da nossa comunidade, devido às nossas lutas em relação à demarcação de terra”, contextualiza.
Sol conta também que há profissionais indígenas na unidade, como fisioterapeutas e psicólogos, mas que os médicos ainda não são, o que dificulta o atendimento, porque, de acordo com ela, as pessoas de sua aldeia são mais observadoras e não se sentem confortáveis em falar dos seus sintomas logo num primeiro contato com um desconhecido. Ela ressalta ainda a dificuldade de comunicação, porque os profissionais muitas vezes não conhecem a língua materna do povo terena.
“Quando a gente mora na aldeia, a gente não vê essa necessidade de ficar falando que somos indígenas. A gente só vê essa necessidade de falar da luta, da vivência indígena quando você está fora, quando damos de cara com o preconceito, o racismo”, observa.
Por causa da deficiência no braço, Sol só conseguiu ir à escola aos 11 anos e precisou primeiro aprender a escrever com a mão esquerda. No início da idade adulta, ela mudou-se para Campinas (SP) para trabalhar de carteira assinada numa loja de construção. Antes, atuou como babá em Sidrolândia. Em 2014, quando começou a militar a favor da causa indígena, assumiu a função de técnica em Biblioteconomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde ficou até 2023, até retornar à sua terra natal.
Barreiras à inclusão
- Urbanísticas, presentes em espaços públicos, como calçadas e vias sem acessibilidade;
- Arquitetônicas, relativas a edificações e construções sem adaptação;
- Nos transportes, como veículos e sistemas não-acessíveis;
- Nas comunicações, como a ausência de Libras, legendas ou audiodescrição;
- Tecnológicas, com a incompatibilidade de sistemas com recursos assistivos;
- Atitudinais, que envolvem o preconceito, a desinformação e a exclusão social
Barreiras do Estado
A pesquisadora Laís Silveira Costa, doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenadora da organização Acolhe PcD, reafirma o que Hisaac e Sol defendem sobre as dificuldades de acesso para as pessoas com deficiência. “Olhando para o nosso SUS, a gente não se qualifica para atender essa pessoa na saúde perinatal. Para a questão da educação sexual, por exemplo, a gente pressupõe que ela não fala, que é uma eterna criança num corpo de adulto”, avalia.

Laís ainda menciona a não garantia de outros direitos, como trabalho, educação de qualidade e moradia. “À medida que a pessoa com deficiência deixa de ser criança e vira um adolescente, não há uma estrutura no Estado brasileiro que garanta a transição para a vida adulta de forma respeitosa”, destaca.
Antes de chegar à vida adulta, um outro direito, ainda mais básico, que é o direito à vida, acaba sendo infringido, como lembra a pesquisadora. “Existe uma política de aborto eugênico em vários países para impedir o nascimento, portanto, impedir o direito à vida de pessoas com síndrome de Down, dado que elas têm uma determinação genética que se consegue diagnosticar ainda na gestação”, diz.
Ela questiona a naturalização desse tipo de política e a falta de discussões sobre o tema nos espaços sociais. O interesse de Laís por essa luta veio por meio de uma experiência pessoal: sua filha de 11 anos nasceu com síndrome de Down. “Ela tem deficiência intelectual e há uma invisibilização muito peculiar e concreta na sociedade. Você não enxerga mesmo essas pessoas”, conta [Conheça a história de Laís e de sua filha, Camila, na Radis 232 sobre inclusão].
A pesquisadora explica que pessoas com esse tipo de deficiência e as que não se comunicam verbalmente costumam estar nos piores indicadores de participação social, além de mais vulneráveis a violências.
À Radis, Laís menciona uma pesquisa preocupante realizada com dados de internações de 825 hospitais dos Estados Unidos, entre 2019 e 2022. O estudo com informações de mais de 1,7 milhão de internações por covid-19 e/ou pneumonia mostrou que pacientes com síndrome de Down tiveram probabilidade seis mil vezes maior de receber um status de “não ressuscitar” na admissão hospitalar. A razão não estava associada ao risco de mortalidade, idade ou outras comorbidades, mas apenas ao diagnóstico da síndrome.
“Se é uma vida que a gente conclui que não vale a pena ser vivida, obviamente a gente não se organiza como Estado para a efetivação de todos os direitos que estão listados como fundamentais na LBI”, afirma.




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