O que parece uma brincadeira de criança esconde um fundo de discriminação. Um vídeo viralizado nas redes sociais mostra adolescentes abaixando a calça de um estudante de 15 anos durante o intervalo em uma escola municipal em São Caetano, no ABC Paulista. O caso ocorreu em 2022 com o jovem que tem deficiência intelectual e, por isso, tornou-se alvo de bullying. Os agressores foram repreendidos ali mesmo, no pátio da escola, mas ainda assim o vídeo foi divulgado, repercutindo o ato.
A escola do adolescente de São Caetano não alertou os pais sobre o caso, a mãe só descobriu o que ocorreu quando recebeu o vídeo em um aplicativo de mensagens e reconheceu seu filho. Foi registrado boletim de ocorrência. A escola também foi procurada pela mãe e alegou estar ciente da situação e que estava tomando as medidas cabíveis.
Bullying é uma palavra com origem na língua inglesa, sem tradução no português, mas adotada pelos brasileiros para nomear atos que ocorrem no ambiente escolar quando alunos passam a agredir fisicamente, perseguir, humilhar, intimidar, apelidar de forma pejorativa, excluir, discriminar ou, como no caso apresentado, ridicularizar outro aluno.
O ato de achar engraçado a ridicularização de um colega não é um caso isolado, ainda mais quando se trata de pessoas com deficiência (PcD). Também em 2022, um menino que tem transtorno do espectro autista (TEA) de 10 anos tentou tirar a própria vida por conta de bullying sofrido na escola. Segundo relatos de pessoas que o atenderam na unidade de saúde, ele dizia: “Eu quero morrer, não aguento mais, não aguento mais a escola, ninguém gosta de mim, ninguém me ama”.
A tentativa de suicídio ocorreu quando a criança chegou da escola na cidade de Serra, na região metropolitana de Vitória (ES). Ele ingeriu uma dose excessiva do medicamento de que fazia uso e, em seguida, disse para a mãe: “Agora você pode descansar e eu também”, segundo relato dela para a CNN.
Radis procurou profissionais da educação e pessoas com deficiência para falar sobre situações de violência que ocorrem no ambiente escolar e quais caminhos precisam ser percorridos para acabar com essas ações.

Inclusão não existe sem acolhimento
A violência em ambiente escolar atinge duas vezes mais as pessoas com deficiência, estudo Global estimates of violence against children with disabilities [Estimativas globais de violência contra crianças com deficiência], publicado no periódico científico The Lancet Child & Adolescent Health. O trabalho revisou pesquisas realizadas entre 1990 e 2020, envolvendo mais de 16 milhões de indivíduos de 25 países, incluindo o Brasil. Os resultados mostraram que jovens e crianças com transtornos mentais e deficiências cognitivas ou de aprendizagem, como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e autismo, por exemplo, são especialmente mais propensos a sofrer violência.
O mesmo estudo indica que 291 milhões de crianças e adolescentes tenham epilepsia, deficiência intelectual, deficiência visual ou perda auditiva — representando cerca de 11% da população total de crianças e adolescentes em todo o mundo, além dos casos associados a outras deficiências físicas e mentais.
Essa é quase a mesma porcentagem indicada pelo ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que declarou, em 2021, que “nós não queremos o inclusivismo”, representando o pensamento de muitas pessoas que reproduzem o preconceito contra pessoas com deficiência. Em entrevista à TV Brasil, o ex-ministro de Jair Bolsonaro disse que as crianças com deficiência “atrapalham” as outras na classe e que 12% delas “têm um grau de deficiência que é impossível a convivência”.
A fala ocorreu após a publicação de polêmico decreto presidencial que instituiu a Política Nacional de Educação Especial, permitindo às escolas fazerem a separação de estudantes PcD em classes “especiais”. A publicação, no entanto, foi suspensa por medida do Supremo Tribunal Federal (STF), após mobilização da sociedade civil pelos direitos das pessoas com deficiência. O principal argumento era de que a segregação prejudicaria a socialização desse grupo e reforçaria o capacitismo [Veja glossário abaixo].
A inclusão de crianças e adolescentes com deficiência nas escolas é amparada pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) — Lei nº 13.146/2015, que conta com um capítulo sobre o direito da pessoa com deficiência à educação, obriga as escolas a não cobrarem por recursos de acessibilidade e proíbe a negativa de matrícula ou o seu encerramento em razão da deficiência.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece, nos artigos 16, 17 e 18, o direito à liberdade e ao respeito. O documento indica que é dever da escola zelar pela integridade física, psíquica e moral e a prevenção da imagem da criança e do adolescente, incluindo PcD. É obrigação da escola, ainda, garantir que os estudantes não sejam expostos a qualquer tratamento violento ou constrangedor.
Violência silenciosa
Além do aluno PcD ter o dobro de chance de sofrer violência no ambiente escolar, a falta de uma rede de apoio contribui para que ele se torne um alvo, segundo Lindisay Martins, psicóloga e pós-graduada em Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e em Neuropsicologia. “A pessoa já tem o estigma da deficiência, a gente já sabe que ela tem uma questão de baixa autoestima muitas vezes, e ela chega na escola e fica quietinha, isolada. Ela já tem a propensão pela deficiência, mas aumenta as chances pelo isolamento”, aponta.
Um dos principais indicativos de que uma criança com deficiência está sofrendo bullying na escola é o isolamento, afirma a psicóloga. “O aluno que sofre algum tipo de violência costuma se isolar e isso pode progredir para ansiedade ou começam a manifestar algum sintoma físico, como alergias, agitação, síndrome do pânico, crise nervosa, autolesão”, destaca.
Foi o que aconteceu com Patrícia de Melo, 28 anos, advogada e estudante de medicina, que sempre foi considerada uma garota “esquisita”, “estranha” e que era muito calada e quieta. O isolamento na escola foi inevitável, já que era excluída pelos colegas. Depois de adulta, Patrícia recebeu o diagnóstico tardio de TEA.
A escola, em São Luís do Maranhão, chegou a alertar a família sobre o isolamento. “A diretora disse para minha mãe que eu era muito calada, muito quietinha e que seria interessante avaliar isso, fazer acompanhamento psicológico. Só que a minha mãe, quando soube, achou que eu estava sendo elogiada, falando que eu era uma boa aluna”, desabafa Patrícia. A mãe considerou que se ela tinha boas notas e não dava trabalho aos professores, era algo positivo, mas não era esse o intuito. “Estavam falando uma questão comportamental que afetava as minhas relações interpessoais na escola”, completa.
Patrícia lembra que, na época do ensino fundamental, tinha muitas crises de ansiedade e meltdown [crise explosiva em que a pessoa pode ter comportamentos extremos, como gritos, choro, acesso de raiva, agressividade e outros]. Foi nessa mesma época que começou a realizar autolesão, machucando o braço. “Já teve vezes que eu estava com o braço machucado e vi gente sorrindo. Teve uma menina que apontou para o meu braço, começou a rir e falou assim: ‘você é louca, ninguém deveria andar com você’”, recorda.
A advogada estudava em uma escola católica e, mesmo aos 11 anos, já se reconhecia como lésbica, além disso possuía estereotipias do TEA e tinha os braços machucados por autolesões. Tudo isso contribuía para que os colegas de classe a estranhassem. “Teve um dia específico que uma menina começou a rir de mim com outro grupo de amigas. Elas estavam todas juntas apontando para mim e rindo porque eu não sabia jogar [vôlei] e eu era ‘esquisita’”, relata. “Lembro que fiquei tão nervosa que me urinei todinha e aí começaram a rir mais ainda”.
Patrícia não denunciava o bullying que sofria, pois não conseguia entender como violência, mas como consequência de também se ver como “estranha” e “inadequada”. “Eu era muito passiva e tinha um pouco de dificuldade de entender que isso poderia me prejudicar. Então acabava não fazendo nada”, explica.
Muitas vezes, principalmente com as PcD, a violência é silenciosa. A psicóloga Lindisay Martins relata que muitos casos assim chegam nos consultórios de psicoterapia: “Os pais trazem os filhos com depressão, com sintomas de isolamento, se machucando e é onde a gente percebe que o adolescente ou a criança está com problemas [na escola], ainda que não traga isso abertamente”, afirma.
Qualquer pessoa pode sofrer com o capacitismo
Em João Pessoa (PB), Cristiane Miranda, 37 anos, técnica de enfermagem, tem uma rotina corrida e complicada por ser mãe atípica. H., seu filho de 5 anos, é autista e isso mudou completamente a vida da família toda. “Depois que descobri o autismo [do meu filho], para mim tudo mudou. Muitas pessoas da família da parte do pai fazem festa e não chamam a gente. A gente nota a diferença”, desabafa.
Ter uma criança com TEA em casa também alterou a vida dos irmãos mais velhos, M. B., 12, e E., 17. A mãe conta que a filha pratica Jiu-jitsu, mas acaba sendo afetada pela rotina familiar. “Vários campeonatos que ela quer entrar eu não coloco, porque não tenho com quem eu deixar H.”, explica.
Contudo, o que mais afetou a família foi um episódio de bullying que M. B. sofreu na escola por ter um irmão com TEA. Durante o intervalo das aulas, esbarrou em outro colega acidentalmente. O menino, por sua vez, gritou: “‘Tá cega?’. Aí ela [respondeu]: ‘Não, por quê? Desculpa’. Ele falou: ‘Só pode ser cega mesmo, porque quem tem irmão autista é assim mesmo, termina ficando autista também’”, conta Cristiane.
Segundo relato da menina, as crianças próximas começaram a rir e ridicularizá-la. O irmão mais velho que estuda na mesma escola se envolveu também quando viu a situação que quase terminou em agressão física.
A escola não contactou os pais dos envolvidos, nem sequer trabalhou a questão da violência. “Quando eles chegaram em casa, fiquei sabendo por eles, porque nem a escola me procurou para falar sobre isso”, reclama a mãe, que descobriu que já tinham outras denúncias de alunos contra a mesma criança. Ela chegou a procurar o pai do menino que praticou o bullying e teve uma boa receptividade por parte dele.
Em teoria, a situação da violência estaria resolvida uma vez que, a partir do momento em que os pais foram envolvidos, não houve mais episódios de ridicularização na escola. Contudo, Cristiane percebeu que sua filha ficou acuada nas semanas seguintes, mais quieta e calada. A mãe diz que o que a ajudou foi o esporte, além do diálogo em casa. Ela fala para M. B.: “Você vai encontrar gente que vai gostar do seu irmão e gente que não vai gostar. Por isso, vai ter que saber lidar com essas duas situações, porque essa é a sociedade que a gente vive”.
Espectadores compactuam
“Só existe a piada se tiver alguém para rir”, afirma a psicóloga Lindsay Martins. O episódio que aconteceu entre a filha de Cristiane e um colega na escola expõe um terceiro elemento do bullying: os espectadores — aqueles que riem de quem está sendo ridicularizado.
Bethânia Lorençon, pedagoga e química, é diretora de uma escola particular de Vitória (ES) e tenta evitar situações de bullying dentro da unidade em que atua a partir de intenso acompanhamento dos alunos. Ela afirma que a situação de violência não é um ato isolado e que é preciso trabalhar com as três pontas: o alvo (vítima); o autor (quem pratica); e o espectador (quem está de fora). “Quando acontece uma violência no ambiente escolar, a gente não deveria trabalhar só com o alvo ou o autor, mas com todos”, afirma.
A educadora indica que quem assiste a uma violência e não intervém, está participando e, até, impulsionando esses atos. Ela defende que é função da escola trabalhar as diferenças com diálogo e respeito.
Contudo, a realidade de escolas públicas e particulares expõe como a desigualdade social influencia no combate ao bullying. Por atuar há 28 anos na educação tanto pública como privada, Bethânia avalia que o principal desafio da rede pública é a grande quantidade de alunos para poucos profissionais e que, dessa forma, não é possível identificar as diversas violências que podem ocorrer.
Ela cita a sobrecarga de professores que têm 10 turmas com 40 alunos, no ensino médio, e como isso afeta o olhar sobre as particularidades. Por isso, a educadora avalia que os espectadores são essenciais, também, para a denúncia nesses casos, já que a vítima pode não conseguir fazer isso. “Quem sofre bullying começa a duvidar de si mesmo. Acredita que o que o colega está falando é verdade e a sua autoimagem é destruída”, completa.
A avaliação da pedagoga combina muito com a da advogada Patrícia de Melo sobre o bullying que sofreu. Diferente da primeira graduação, na qual não tinha ainda seu diagnóstico de TEA, na segunda faculdade que está cursando, ela percebe o quanto o núcleo de acessibilidade da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) tem ajudado. Ocorreram conversas com colegas, professores e direção do curso sobre autismo, o que tem auxiliado na sua experiência.
Ainda que reconhecendo os avanços, Patrícia cita Poliana Gatinho, uma mãe atípica ativista dos direitos PcD, que tem uma intensa cobrança à gestão municipal para garantir estrutura e direitos para o seu filho na rede pública. E, também, o caso que ocorreu em 2023 da negativa de uma matrícula de criança autista por colégio privado em São Luís. “Ainda tem muita coisa para ajustar”, avalia.

Atenção, pais!
Características de crianças que podem estar sofrendo bullying:
- Rendimento escolar baixo
- Irritação ou agressividade
- Não gosta de ir para a escola
- Muito quieta ou isolada
- Falta de diálogo com os pais sobre os colegas
- Alteração no sono
- Mudança de rotina
- Ansiedade ou comportamento depressivo
- Sintomas físicos como irritação na pele
Fonte: Psicóloga Lindisay Martins
Bullying não é brincadeira, é crime!
O caso que ocorreu com os filhos de Cristiane demonstra a importância da família na intervenção em situações de violência no ambiente escolar, mas nem sempre os familiares estão abertos para essa temática. A psicóloga Lindisay Martins ressalta que a tratativa com os pais é o maior empecilho, pois muitos não aceitam. É comum ouvir frases como “na minha época não existia isso de bullying”, conta.
Há alguns anos, apenas não era tão ampla a discussão e não existiam as ferramentas que se têm atualmente, afirma a psicóloga. “O que as pessoas chamavam antigamente de ‘retardo mental’ tem um espectro muito grande. Essas pessoas ficavam escondidas debaixo de um véu preconceituoso, estigmatizado e eram vistas como párias na sociedade”, completa.
Lindisay trabalha como terapeuta em escolas estaduais de São Paulo, como parte do projeto de psicoeducação em saúde mental do Instituto de Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil (PENSI) da Fundação José Luiz Egydio Setúbal. São realizados grupos de conversa entre alunos sobre temáticas que os ajudam a desenvolver ferramentas emocionais para lidar com situações de saúde mental, entre elas o bullying.
“O conceito que eles têm de bullying é algo meio simplório”, relata Lindisay. “É muito mais uma agressão física”, acrescenta, ressaltando um dos principais problemas deste termo, que muitos associam apenas a bater e empurrar, entre outras ações de contato físico direto. Ou então, “é só uma brincadeira que na minha família é tolerada”, define a psicóloga. Ela acredita que trabalhar com essas crianças que aprendem dentro de casa que brincadeiras violentas são “comuns” é quebrar um ciclo de agressões.
Muitas crianças só percebem que já praticaram bullying quando se amplia a visão para as múltiplas violências, pois a sociedade tem uma cultura de banalização. É o caso de crianças que têm que suportar e conviver com apelidos pejorativos que os outros acham que é brincadeira.
Lindisay pondera que a humilhação é a principal característica do bullying, seja como exposição ou forma de deixar o outro desconfortável. Por esse motivo, o trabalho de prevenção tem sido desenvolver a empatia com os estudantes e o entendimento de que cada pessoa é única e diferente das outras. “Tem sido bastante desafiador desenvolver práticas de inclusão”, relata sobre a tratativa com os estudantes sobre o capacitismo. A terapeuta trabalha pautas com os alunos para que possam “entender as particularidades e necessidades do colega que tem deficiência”, afirma.
O projeto de que Lindisay faz parte é uma das muitas iniciativas que acontecem pelo país para trabalhar a saúde mental dos estudantes, com o crescimento expressivo de necessidades nessa área após a pandemia de covid-19. Recentemente, existem, inclusive, professores ou monitores preparados para manejar um aluno em crise de ansiedade — que se tornaram mais frequentes. Em 2022, 26 alunos de uma escola do ensino médio em Recife (PE) tiveram um surto coletivo de ansiedade e precisaram de atendimento de profissionais de saúde. O caso ocorreu com o retorno das aulas presenciais, após as restrições da pandemia.
Em São Paulo, por exemplo, um levantamento realizado pela Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Ayrton Senna apontou que 70% das crianças e adolescentes apresentaram sintomas de depressão e ansiedade — o que mostra a necessidade de discutir a pauta da saúde mental nas escolas.
Glossário
Acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida.
Adaptação: modificações necessárias para que pessoas com deficiência possam exercer os seus direitos humanos e liberdades fundamentais.
Capacitismo: ato de discriminação, preconceito ou opressão contra pessoa com deficiência.
Diversidade: multiplicidade de características que distinguem as pessoas.
Inclusão: processo de inserção na sociedade de cidadãos que dela foram excluídos, no sentido de terem sido privados do acesso a seus direitos fundamentais.
Pessoa com deficiência (PcD): terminologia correta e que se tornou consenso para se referir a pessoas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.
Fonte: Glossário de Acessibilidade da Câmara dos Deputados
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