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“A benção, vô”. Uma criança de oito anos vem tomar a benção de Dileudo Guimarães, 54 anos, assim que ele entra na Escola Municipal São Pedro, no Quilombo Bom Jardim. O estudante é seu neto Diogo, filho de Dilena, servente da escola. A cena se repete por onde ele passa — seja na localidade onde nasceu, nas proximidades do Lago do Maicá, em Santarém, no Oeste do Pará, ou nas comunidades vizinhas, entre os Rios Amazonas e Tapajós. Além de seus netos e afilhados, são conhecidos que guardam o costume, por respeito, de tomar a benção dos mais velhos. Na trilha pela mata, que corta o quilombo, Dileudo rememora histórias da terra onde nasceram seus antepassados e narra a luta, no presente, para impedir o avanço da soja e a construção de um complexo portuário nas terras quilombolas.

“Não fomos consultados. Não respeitam nossos direitos”, sentencia em relação ao projeto da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps) para o Lago do Maicá, área até então considerada de preservação ambiental, onde vivem populações quilombolas, indígenas e pescadoras. Dileudo preside há dez anos a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), instituição que reúne as 12 comunidades existentes no município: seis delas na várzea, em áreas que margeiam os rios; cinco no Planalto Santareno; e uma urbana. A obra faz parte de um conjunto de empreendimentos na região de Santarém voltados para o escoamento de grãos e minério. O estudo ambiental apresentado pela empresa, em 2013, à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) afirma que não foram encontradas “populações tradicionais legalmente reconhecidas” na área.

Nenhuma das 12 comunidades quilombolas de Santarém foi consultada — parte delas tem suas terras às margens do lago e utilizam a pesca como uma de suas principais fontes de sustento. “A comunidade tem que saber o que se pretende fazer dentro dela. Quem vive aqui no quilombo é quem sabe o que é bom para nós e o que não é”, afirma o líder quilombola. Radis visitou quatro dessas comunidades no fim de março. “Até hoje nós não temos nenhuma comunidade titulada. É um direito que está na Constituição, mas que ainda não saiu do papel”, constata Dileudo.

A construção do Porto do Maicá tornou-se um símbolo da resistência das comunidades remanescentes de quilombos em Santarém. Depois que a FOQS questionou o estudo ambiental da Embraps, que não respeitou o direito à consulta das comunidades tradicionais, o Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPE-PA) ingressaram com uma ação civil pública na Justiça pedindo a suspensão do licenciamento do complexo portuário. Em abril de 2016, a Justiça Federal concedeu liminar que suspendeu a obra até que fosse promovida consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas e povos tradicionais da região. “Quem eles consultaram? Quem deu essa autorização para eles?”, questiona Claudiana Lírio, representante dos quilombolas no Conselho Municipal de Saúde.

Assim nasceu a luta dos quilombos de Santarém para serem ouvidos e respeitados em qualquer decisão que envolva seus direitos ou que afete suas vidas e suas terras. “As populações não são inseridas no debate, desde o início até o fim das obras. A ideia é que, antes de pensar os grandes empreendimentos ou qualquer medida que possa afetá-los, eles sejam escutados”, aponta Ciro Brito, advogado popular da Terra de Direitos, organização de direitos humanos que presta assessoria jurídica aos quilombolas. “Fomos de comunidade em comunidade, ouvindo o nosso povo, falando do porto e sobre os prejuízos que ele vai trazer para nós”, afirma Dileudo. Na contramão da decisão da Justiça de ouvir as comunidades, a Câmara Municipal de Santarém aprovou e o prefeito Nélio Aguiar (DEM) assinou, em dezembro de 2018, o novo Plano Diretor do município, que ignora a participação das comunidades tradicionais e converte a região do Maicá em área de exploração portuária. Esse é mais um episódio que mostra o avanço do agronegócio, da mineração e de grandes empreendimentos sobre os quilombos — o que coloca em xeque não apenas os direitos e a identidade dessas populações, mas ameaça também a preservação ambiental. Uma frase de Dileudo Guimarães sintetiza a luta dos quilombolas pela liberdade de viver em suas terras: “Nós precisamos ter nossos direitos respeitados.”

“Precisamos ser consultados”, afirma Dileudo Guimarães, do Quilombo Bom Jardim (Santarém), sobre as obras portuárias no Lago do Maicá. — Foto: Eduardo de Oliveira.
“Precisamos ser consultados”, afirma Dileudo Guimarães, do Quilombo Bom Jardim (Santarém), sobre as obras portuárias no Lago do Maicá. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Quilombos têm voz

“Repare se você vê alguma árvore em pé onde se planta soja”. A frase de Dileudo é uma constatação que descreve a paisagem no percurso de Santarém até o Quilombo Bom Jardim — a cerca de 22 quilômetros da cidade. Da estrada, o que se avista são campos e mais campos de soja, que se expandem pelo Planalto Santareno. O entorno começa a mudar nas proximidades dos quilombos: áreas de floresta, igarapés, casas simples na beira da estrada, plantio de hortaliças, crianças, campos de futebol. “Quem acaba com a mata é o sojeiro [plantador de soja]”, aponta o líder quilombola, ao ressaltar que o modo de vida dos povos tradicionais respeita e coexiste com a floresta.

A fonte de sustento dos quilombos vem da natureza: o pescado no Lago do Maicá, o extrativismo, como o cupuaçu e o cumaru, e a agricultura familiar, com o cultivo de milho, mandioca, jerimum (abóbora), melancia, banana. “Nós temos a terra como mãe. Tudo que a gente precisa para sobreviver se tira dela. A terra é vida”, ressalta. Como habitam em áreas ainda preservadas, com abundância de água, os quilombolas precisam resistir aos interesses cada vez mais presentes do agronegócio. O líder conta que denunciaram à Justiça a queima da castanheira pelos sojeiros. “Por que a Justiça até hoje não fez nada? Não valorizam nossos territórios e a nossa luta”, critica.

Cansados de esperar pela atenção do poder público, os quilombos de Santarém decidiram se organizar e, por meio da federação que reúne as 12 comunidades, construíram o chamado Protocolo de Consulta Quilombola, um documento que mostra como eles devem ser consultados, para qualquer projeto ou atividade que ocorra em seus territórios. “Quem tem que lutar por nós somos nós mesmos, porque nós é que conhecemos a nossa luta”, resume Dileudo. O Protocolo de Consulta, construído por representantes de todas as comunidades, pretende “mostrar que nós existimos e que não aceitamos qualquer empreendimento sem que sejamos previamente consultados”, diz o texto. O documento se baseia no direito à consulta prévia, livre e informada, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil assina.

Com base nessa mesma convenção foi que a Justiça Federal concedeu liminar, em 2016, a pedido do MPF e do MPE-PA, suspendendo o licenciamento das obras do Porto do Maicá, até que as comunidades fossem consultadas e tivessem sua decisão respeitada. “O Protocolo de Consulta não serve só para essa questão do porto, mas para qualquer coisa que se pense em fazer em nossas comunidades. A consulta é importante porque é a própria comunidade quem toma suas decisões”, explica o presidente da FOQS. Ameaçados pelo avanço do agronegócio e dos grandes empreendimentos, o Protocolo de Consulta foi um instrumento que os quilombos encontraram para ter sua voz respeitada, ressalta Dileudo.

Essa forma de resistência no presente relembra a luta dos negros escravizados para resistir à escravidão, que deu origem aos quilombos. “Ser quilombola é entender que nós é que trabalhamos pelo crescimento desse país. Em momento algum fomos remunerados. Esse país tem uma dívida histórica conosco”, afirma o líder. A definição legal de “quilombola” encontra respaldo no artigo 68 da Constituição Federal, que reconhece o direito à propriedade definitiva de suas terras aos remanescentes das comunidades de quilombos. Já o Decreto 4.887 de 2003 define que quilombolas são grupos étnico-raciais, segundo critério de autoatribuição, com trajetória histórica ligada à ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão.

O Quilombo Bom Jardim possui mais de 200 anos de história — localiza-se no Planalto Santareno, próximo a outros quilombos, como Tiningu e Murumuru. Surgiu da doação de uma área de terras pelo antigo senhor de escravos, por vontade de sua esposa falecida, como rememora Dileudo. Além das comunidades formadas como forma de resistência à escravidão, outras se constituíram por meio da doação de terras em razão de serviços prestados — seja de trabalho braçal, religioso ou de guerra — e foram chamadas de “terras de preto”, “mocambos” ou “terras de santo”, como explica o Guia de Políticas Públicas para Populações Quilombolas, de 2013.

Pai de sete filhos e avô de 6 netos, Dileudo faz o percurso de uma comunidade a outra de bicicleta, aos domingos, quando joga bola com conhecidos de outros quilombos. “Nosso time, o Santo Antonio, tem uma história de bons jogadores”. Ele também é catequista há 45 anos na pequena igreja da comunidade, cujo padroeiro é São Pedro. Mesmo com sua história reconhecida, o Quilombo Bom Jardim ainda aguarda a titulação definitiva de suas terras: teve a Portaria de Reconhecimento publicada em 2011, mas até hoje o título não veio.

Líder do Quilombo Tiningu, Benedito Mota conta que seus familiares temem as ameaças de morte que recebeu por lutar pela titulação das terras. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Líder do Quilombo Tiningu, Benedito Mota conta que seus familiares temem as ameaças de morte que recebeu por lutar pela titulação das terras. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Luta pela titulação

Sem o título das terras, os quilombolas vivem um cenário de insegurança jurídica e passam a disputar o chão com posseiros, grileiros, fazendeiros, mineradoras e construtoras. “Como ainda não recebemos os títulos, todo tipo de conflito vem para dentro dessas comunidades, como venda de terra, plantio de soja, aluguel e arrendamento”, explica o presidente da FOQS. Embora não tenham o título outorgado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), todos os 12 quilombos de Santarém são reconhecidos pelo Estado brasileiro, por meio da certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP), atualmente ligada ao Ministério da Cidadania: essa certidão reconhece o direito internacional à autoidentificação dos povos, como determina a Convenção 169 da OIT.

Os quilombolas de Santarém não são um caso à parte entre as 3.271 comunidades remanescentes de quilombos do Brasil, segundo levantamento da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Aproximadamente 83% delas (2.729) já foram certificadas pela Palmares, mas apenas 241 dispõem do título definitivo concedido pelo Incra. Nas margens do Lago do Maicá, em Santarém, o Quilombo Tiningu — com cerca de 85 famílias — recebeu, em outubro de 2018, a Portaria de Reconhecimento que delimita as terras da comunidade. A próxima etapa é a assinatura do Decreto de Desapropriação, pelo presidente da República, que determina o pagamento de indenização para outras pessoas que vivam na área dos quilombolas, mas que não se reconheçam como tal.

“Nós dependemos agora do Bolsonaro assinar [o Decreto]”, declara o presidente da Associação Comunitária do Quilombo Tiningu, Benedito Mota, também coordenador na região do Baixo Amazonas das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu). Ele relata que o passo importante que deram na obtenção do título aumentou a pressão externa sobre os quilombolas. “As ameaças vem de todos os lados. Da própria soja, do agronegócio, do porto, dos fazendeiros que estão dentro [das áreas quilombolas]. Já recebemos até ameaça de morte”, conta. Em setembro de 2018, um quilombola do Tiningu foi assassinado, com golpe de chaves de fenda, pelo caseiro de um fazendeiro da região.

À Radis, o Incra informou que o direito à propriedade das terras que ocupam, assegurado pela Constituição, é motivado pelos próprios remanescentes de quilombos, que solicitam a formalização do processo de regularização junto à autarquia — órgãos estaduais e municipais também têm essa atribuição e a atuação do Incra se restringe às comunidades certificadas pela Palmares. Atualmente, segundo o órgão, existem 1.755 processos abertos em todas as Superintendências Regionais, exceto Roraima, Marabá (PA) e Acre. De acordo com o Incra, diversos fatores — como localização e complexidade das relações sociais, entre outros — influenciam o andamento de cada processo, dificultando estimar prazos.

Pressões do agronegócio

No Planalto Santareno, o Lago do Maicá é considerado um santuário ecológico para populações quilombolas, indígenas e pescadoras que vivem às suas margens. Suas águas se comunicam com o Rio Ituqui, afluente do Amazonas. Para os quilombos, é fonte de água e peixes, além de via de transporte. Por isso, Benedito Mota, 59 anos, líder do Quilombo Tiningu, alerta que a presença de um porto graneleiro com capacidade para atracar grandes embarcações mudaria completamente a rotina dos moradores — e traria poluição e degradação ambiental. “Nós dependemos desse lago. Quando eles fizeram uma pesquisa e disseram que só existiam três espécies de peixes, nós contestamos, porque sabemos que estamos numa área rica em biodiversidade”, aponta o líder também conhecido como Bena.

Um estudo técnico da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, de 2018, coordenado pela professora Izaura Pereira Costa, constatou “fragilidades metodológicas” no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado pela Embraps — empresa que pretende construir o porto — ao órgão responsável pelo licenciamento ambiental. Segundo a pesquisa, os dados fornecidos pela empresa não permitem mensurar o impacto na economia, nem estimar as consequências para os ecossistemas locais. O estudo também ressalta que as comunidades tradicionais não foram consultadas. Bena destaca que a preocupação maior é com a poluição e os impactos para a saúde. “Queremos ser consultados. O rio é um bem de todos”, pontua.

Para ele, os quilombolas enxergam a terra como fonte de subsistência e não visam a degradação da natureza. “Enquanto o agronegócio está acabando com a floresta, nós queremos reflorestar mais, porque precisamos e vivemos do extrativismo”, aponta. Uma das fontes de renda da comunidade é a extração da semente aromática do cumaru, usada desde a culinária até a fabricação de cosméticos. Ele ressalta que a titulação é um passo necessário para garantir a sobrevivência dos quilombos. “Queremos que o povo possa tirar os produtos da própria terra. Não queremos terra para mim, ou para qualquer liderança, mas para uma população que vive dela. São as nossas raízes, aqui viveram nossos antepassados”, afirma.

O agronegócio está cada vez mais próximo dos quilombos — o que representa uma ameaça tanto para a floresta quanto para os próprios quilombolas. “Com essa publicação no Diário Oficial [Portaria de Reconhecimento], vieram situações complicadas pra cima da gente. Mulher, filhos, ninguém quer ver um pai ameaçado”, relata. Bena denuncia que os moradores do Tiningu também sofrem questionamentos se são “de fato quilombolas”, por terem a pele mais clara, resultado da miscigenação. “Aqui no Tiningu você vê uma pele mais clara. Mas se procurar nossas raízes, mãe, pai, avó, todos eram negros”, afirma. Bena pontua que as pressões dos ruralistas e dos grandes empreendimentos sobre os quilombos de Santarém é a mesma que ocorre em outros municípios do Oeste do Pará. “Além do agronegócio, tem barragem, garimpo, rodovias, tanta coisa que afeta as populações quilombolas, mas estamos na luta”, conclui.

— Foto: Eduardo de Oliveira.

“Tenho espírito de gente livre e de luta, não consigo me conformar com as injustiças que a gente vê com nosso povo”

Claudiana Lírio

Sangue de quilombola

Claudiana Lírio tem orgulho de falar como aprendeu com o pai a lutar pelos direitos quilombolas. Seu pai, João Vieira Martins, era uma liderança do movimento no Pará e, desde menina, ela se metia com ele nas reuniões — a princípio para “vigiá-lo”, a pedido da mãe. “Meu pai sempre colocou na cabeça da gente: vocês são pretos, precisam assumir a identidade de vocês. Ele dizia que a gente precisava lutar para ser livre”, relembra. Livre — do medo, do racismo, da pobreza e da morte. “Mesmo que a gente não estivesse mais no período da escravidão, na visão dele a gente continuava prisioneiro”, se emociona ao narrar.

Oriunda da região de Nova Jacundá, no Sudeste Paraense, a família de Claudiana foi abalada pelo assassinato do irmão, em 2001. Então o pai decidiu mudar com a família para Santarém, no Oeste do estado, a cerca de 900 quilômetros. Do exemplo paterno, ela tirou o que chama de “lições de vida”. Hoje ela representa a população quilombola no Conselho Municipal de Saúde e cursa Bacharelado Interdisciplinar em Ciências e Tecnologias na Ufopa. “Nós somos 16 filhos e fui a única que consegui concluir o ensino médio e entrar numa universidade”, destaca. Como mulher quilombola, ela ressalta ainda que aprendeu a “nunca ser submissa”. “Tenho espírito de gente livre e de luta, não consigo me conformar com as injustiças que a gente vê com nosso povo”, afirma.

“Já fui ameaçada por sojeiros, mas não abandonei a causa”, pontua. Claudiana conta que recebeu a ameaça de um representante da empresa que quer instalar o porto no Maicá. “Ele não me ameaçou escondido, foi no meio de todo mundo, por isso entrei com uma ação no Ministério Público”, relata. Ela aponta que a empresa promete emprego aos quilombolas em troca de apoio. “Eles vendem uma ilusão para a população. Chegam com um documento técnico, dão para as lideranças e começam a convencer as comunidades: ‘Vamos trazer benefícios pra vocês’”, afirma. Junto com integrantes da Pastoral Social, ela ajudou a “traduzir” os impactos do empreendimento para que os moradores pudessem entender como a obra iria afetar o seu cotidiano. “Um estacionamento para 950 carretas requer uma área muito grande a ser desmatada. Prometem emprego para 750 pessoas, mas moramos num lugar onde a maior parte das pessoas não tem qualificação, não terminaram nem o ensino médio”, assinala, acrescentando que, na prática, não haveria benefícios para os quilombolas.

Claudiana também alerta que é preciso ter muito cuidado para não cair em “armadilhas” criadas pelos ruralistas. “Fazem reunião somente para legitimar as obras. Usam só linguagem técnica. Eu não assino documento nenhum em branco. Quem me garante que eles não vão anexar um texto em cima e depois dizer que concordei?”, questiona. Sobre as ameaças, ela diz que isso ocorre com quem atrapalha “os negócios deles” e lembra que os irmãos sempre a alertam para abandonar o movimento. Para não desistir, Claudiana afirma que se inspira no exemplo de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro em 2018 e que se tornou um símbolo da luta pelos direitos humanos.

Considerado um santuário natural para quilombolas e indígenas, o Lago do Maicá, em Santarém, é alvo do interesse de megaempreendimentos. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Considerado um santuário natural para quilombolas e indígenas, o Lago do Maicá, em Santarém, é alvo do interesse de megaempreendimentos. — Foto: Eduardo de Oliveira.

No alvo e na rota

O capítulo mais recente no embate sobre a construção do Porto do Maicá ocorreu com a aprovação do novo Plano Diretor de Santarém, em dezembro de 2018. Com a medida, a região do Maicá passou a ser considerada área portuária — o que contraria a decisão da Justiça de interromper o licenciamento do porto até que as comunidades tradicionais fossem consultadas, como explica Ciro Brito, advogado popular da Terra de Direitos. “A região do Maicá é rica em biodiversidade, em diversas espécies de plantas e animais, das quais as populações se beneficiam. São pescadores artesanais e extrativistas. Eles não foram consultados”, aponta.

Sem consulta prévia e informada, a decisão do poder público vai contra a vontade de quilombolas, indígenas e ribeirinhos que vivem na região. “Em todas as discussões em que os povos tradicionais foram ouvidos, eles foram muito claros na posição de que essa área deveria continuar sendo de proteção ambiental”, constata Ciro. Para a indígena Vandria Borari, que também atua na Terra de Direitos, o avanço do agronegócio e da mineração sobre os territórios de comunidades tradicionais ocorre porque não há segurança jurídica para esses povos. “Na Amazônia, as áreas que ainda estão preservadas são aquelas ocupadas pelas populações tradicionais. Eles são os maiores guardiões da floresta. São áreas que interessam ao grande capital, pois têm minério, floresta e água. Os povos são vistos como impasse ao desenvolvimento”, explica Vandria, que concluiu em 2019 o curso de Direito na Ufopa.

Como seu modo de vida ajuda na conservação do meio ambiente, os quilombos ocupam terras que despertam o interesse de madeireiros, mineradoras e latifundiários. “Os quilombolas não estão somente no alvo, mas na rota dos grandes empreendimentos, que na região [do Oeste do Pará] se focam na mineração e nas usinas hidrelétricas”, explica Ciro. Para o advogado, nesse modelo de desenvolvimento “não cabem” as comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas, vistas como entraves ao crescimento econômico: “O objetivo é explorar bastante o que tem na terra e as populações permanecem aquém e super empobrecidas”, analisa, ele que estudou os conflitos pelo reconhecimento territorial de povos tradicionais em seu mestrado na Universidade Federal do Pará (UFPA).

O advogado explica que o direito à consulta é reconhecido pela Convenção 169, que passou a vigorar no Brasil em 2004. “Desde então os povos vêm se apropriando desse direito e tentando fazê-lo valer”, pontua. O caso emblemático que mobilizou os quilombolas do Rio Tapajós em torno do Porto do Maicá, segundo Ciro, diz muito sobre a luta dessas comunidades para sobreviver em suas terras. “Não é um porto apenas, mas uma região integrada em diversos portos para escoar a produção de soja, que nos últimos anos vem crescendo exponencialmente nos territórios das populações tradicionais”, afirma. Os quilombos são cada vez mais “espremidos” pelo avanço do agronegócio e vivem algo que, para o advogado, assemelha-se a uma “contagem regressiva”: “Quanto mais tempo as titulações demoram, mais direitos os quilombolas perdem, porque a soja e os empreendimentos avançam sobre suas terras e o acesso à flora e a fauna é perdida”, expõe.

“As gerações futuras não terão mais território”, constata Vandria. Para ela, a terra é uma forma de garantir a existência dos povos. “A vida dos povos tradicionais está interligada com a terra: seus costumes, tradições, dinâmica de trabalho e organização social. O povo tira o sustento da terra, constrói suas casas, planta seus alimentos, toma banho no igarapé”, ressalta a indígena. Ciro acrescenta que o avanço do agronegócio é um processo “muito violento” — além de ameaças, envolve também cooptação. “Às vezes [os produtores de soja] conseguem pessoas da própria comunidade para trabalhar para eles, em troca de diária, e isso acaba enfraquecendo a comunidade”, avalia. Além disso, o agronegócio também se expande de forma precária do ponto de vista jurídico: “São títulos de terras que são comprados e vendidos sem que sejam regularizados do jeito que a lei diz que deveria ser”, completa o advogado.

Para Dileudo, o longo percurso que os quilombos têm pela frente é fazer com que seus direitos saiam do papel. “Aqueles que estão no poder pensam muito em melhorar a economia do país sem dar oportunidades para o povo. Muitos falam que a escravidão acabou, mas nós não temos nem nossas terras para trabalhar”, afirma. A luta dos quilombolas por terra é também um esforço para que sua cultura e tradições continuem a existir. “Como os filhos vão voltar para a comunidade se não existem oportunidades dentro dos quilombos?”, indaga.

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