A

Menu

A

Para iniciar esta reflexão utilizarei alguns versos do cancioneiro popular brasileiro. Nos anos 1980/1990 os poetas já descreviam um cenário que não pertence mais somente às letras de músicas. Nos versos de Saga da Amazônia, de Vital Farias, ele canta: “Era uma vez na Amazônia, a mais bonita floresta. Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta. No fundo d’água as Iaras, caboclos, lendas e mágoas; e os rios puxando as águas. Papagaios, periquitos cuidavam de suas cores, os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores. Sorria o jurupari, o uirapuru, seu porvir. Era flora, fauna, frutos e flores”. 

Já nos versos da toada Lamento de Raça, do poeta Emerson Maia, para o Boi Bumbá Garantido, os versos dizem: “O índio chorou, o branco chorou, todo mundo está chorando. A Amazônia está queimando, ai, ai, que dor, ai, ai, que horror… Lá se vai a saracura correndo dessa quentura, e não vai mais voltar; lá se vai onça pintada fugindo dessa queimada, e não vai mais voltar; lá se vai a macacada junto com a passarada, pra nunca mais voltar, pra nunca mais, nunca mais voltar…”. 

Posso citar, finalmente, o poeta Nilson Chaves, na canção O Sonho do Xamã, que reproduz o conhecimento de Davi Kopenawa e diz assim: “Um xamã Yanomami sonhou que a fumaça da civilização abriria um buraco no céu e o céu cairia no chão. O xamã resolveu avisar o que o sonho queria dizer, mas ninguém parou pra escutar; pouca gente tentou entender. Muito tempo depois desse sonho, a ciência pôde então descobrir que o buraco na camada de ozônio é por onde o céu pode cair…”

– Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao longo dos últimos anos, a quantidade de vidas perdidas no Brasil foi enorme, mas no Amazonas foi muito pior. Ainda nem nos recuperamos das perdas pela covid-19, que também deixou os moradores de Manaus com sequelas das mais diversas. Em 2023, tivemos dias muito difíceis ocasionados pelas queimadas e excesso de fumaça. Perdemos mais uma vez! Estamos morrendo aos poucos. Se foi difícil no ano passado, que ficamos sob a fumaça entre setembro e novembro, este ano indica que será pior, pois as queimadas começaram intensas já no mês de julho!

Associada à fumaça, vem no mesmo pacote uma infinidade de consequências. Aumento de casos de doenças respiratórias, doenças transmitidas por vetores se espalhando em todos os lugares, fome e sede. Imaginemos a população que recebe atendimento à saúde por meio de unidades fluviais de saúde e que não têm mais o acesso durante todo o ano porque a navegabilidade está comprometida — ou pela falta de água ou pelo excesso de fumaça; às vezes os dois juntos. 

Corumbá (MS), 28/06/2024 – Ribeirinho observa fumaça de queimadas nos arredores de Corumbá-MS. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Pouco se fala das pessoas que estão sendo impactadas. Parece que existe uma torcida dos gestores para que o caos se estabeleça e assim possam ter acesso a mais recursos, que não se transformam em prevenção ou solução dos problemas gerados pela fumaça da civilização, como disse o xamã Davi Kopenawa. 

Imaginar os rios Solimões, Negro, Madeira, Juruá e Purus, que compõem a Bacia Amazônica, com seus leitos rachados de tão secos, é difícil acreditar. Ainda assim, o fenômeno da seca não acontece de maneira simultânea em todas as calhas de rio. Com um pouco mais de programação responsável para o gerenciamento da crise, seria possível amenizar os impactos. No entanto, a ganância, a irresponsabilidade e a desvalorização da vida estão nos matando aos poucos. Os poetas e o Xamã Davi talvez tivessem razão. Parece que 2050 está mais perto do que parece. Até quando suportaremos?

■ Sully Sampaio é cientista social, amazonense, Instituto Leônidas e Maria Deane – ILMD/Amazônia, sócio do Boi Bumbá Garantido e conhecedor do cancioneiro popular brasileiro.

As pessoas reagiram a este conteúdo
Comentários para: Até quando suportaremos?
  • 12 de setembro de 2024

    Desde a Antiguidade a ambição desenfreada já era condenada. Por exemplo, no Dao De Jing (escrito 500 anos antes de Cristo), capítulo 46, lemos: “A maior tragédia está em não conhecer o que é suficiente. A maior falta está no desejo do ganho.” O Capitalismo prospera na destruição ambiental, mas dizem que errado está quem critica…

    Responder
  • 12 de setembro de 2024

    Isso aí Sully. O mundo é administrado por gente inconsequente. Temos que ir a luta e tomar as rédeas.

    Responder

Escreva uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

Próximo

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis