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O título do texto faz alusão ao evento acadêmico-científico que organizamos em outubro de 2019, de abrangência regional, envolvendo escolas de Serviço Social da região Centro-Oeste, na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá. 

Naquele momento, a oficina da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss) partiu de uma provocação — “A ousadia de resistir no Cerrado em tempos de chamas” — para problematizar e debater os desafios impostos pelo conservadorismo ao processo formativo e de produção do conhecimento. 

Seria impossível analisar o rebatimento do conservadorismo no espaço acadêmico sem relacioná-lo à realidade local e regional, particularmente no estado de Mato Grosso, onde três biomas – Cerrado, Amazônia e Pantanal – sofrem ostensiva destruição articulada à lógica do agronegócio.

Sofremos há alguns anos o quadro climático cada vez mais dramático e seco entre os meses de agosto, setembro e outubro, agravado pelas queimadas que devastam a vegetação, as matas e animais, trazendo para o espaço urbano a poluição na forma de fumaça. Em consequência, temos um aumento considerável de adoecimento da população, abarrotando pronto-atendimentos e hospitais, públicos e privados, de pessoas com crises respiratórias e suas derivações. 

– Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Não se trata mais de um cenário acidental, mas de uma realidade concreta, um projeto de poder implementado ano a ano, especialmente nos meses destacados. Adentramos setembro com mais de 140 dias sem chuva ou chuva considerável em todo o estado. A capital, Cuiabá, nacionalmente conhecida como uma das cidades mais quentes do Brasil (como canta a banda mineira Skank: “é como não sentir calor em Cuiabá”), tem apresentado temperaturas que incomodam até quem nasceu e vive aqui. Um tempo que exige muita ousadia individual e coletiva para viver (ou sobreviver) num contexto de ampla destruição dos nossos biomas e da nossa saúde.

Ao refletir sobre este cenário, de 2019 aos dias atuais, é inquestionável perceber o quanto a situação tem se agravado, na mesma medida que o agronegócio avança e bate recordes: de colheita de grãos, de produção de carnes de corte e de exploração mineral; enquanto isso, a população da “capital do agro” sofre as consequências das transformações climáticas e do processo destrutivo do meio ambiente.

Sem a pretensão de transformar uma reflexão particular na expressão do cotidiano de toda a população mato-grossense — sabemos que a universalidade e as contradições são inerentes à sociabilidade capitalista — a resistência precisa ser reafirmada dia após dia, em cada amanhecer tomado pela fumaça que nos impossibilita de ver a cidade das nossas janelas, já que esta tem sido tomada por um cinza fúnebre que conota uma espécie de fim dos tempos, ou estágio avançado da barbárie. 

A esperança de novos dias, sem fumaça e com céu azul, tem sido constantemente bombardeada pela incerteza da crescente poluição, o que não é caso isolado de Mato Grosso, mas também acontece no Amazonas e no Pará, estados que ocupam as três primeiras posições com maiores focos de incêndio no território nacional.

Em Cuiabá, os termômetros estiveram acima dos 40 graus no decorrer da primeira semana de setembro, com previsões de manutenção da onda de calor. A cidade sofre não só com a fumaça que avança por todo o Brasil, mas também por conta do processo destrutivo da Chapada dos Guimarães, cujo parque nacional fica aproximadamente a 40 quilômetros da capital. 

Os vídeos e fotografias que circulam nas redes sociais e nos meios de comunicação chocam parte da sociedade que está antenada e preocupada com o futuro cada vez mais incerto das condições de vida de uma região cada vez mais inóspita.

– Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao Sul do estado, o Pantanal atravessa uma condição caótica, com estiagem histórica, demonstrando que os estudos sobre o aquecimento climático precisam urgentemente serem levados a sério e incorporados em nosso comportamento político, se quisermos construir outro planeta para aqueles que virão. 

Ao Norte, na Amazônia, o processo destrutivo também choca os não-negacionistas. A situação faz parte de um projeto maior, que consiste na expansão da velha e clássica expropriação de terras, que vitimiza os povos originários, e também inclui os impactos da implementação da Ferrogrão (projeto de ferrovia que pretende ligar Sinop, no Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará).  

No centro de nós, aqui dentro, naquele lugar que alguns chamam de espírito e outros chamam de alma, a dor é o sentimento reinante, quase sempre encobrindo a necessidade de resistir e continuar na luta. Por um lado, uma mãe internada há mais de 13 dias, com pneumonia e quadro infeccioso que não tem conseguido ser combatido pelos antibióticos, num contexto hospitalar de profissionais que não parecem ter o mínimo de humanidade e intervenção humanizante. 

Enquanto lutamos pela sua saúde, nosso pai luta contra o fogo e a destruição de tudo que conseguiu “plantar” ao longo de sua vida. Exatamente a 240 quilômetros de Cuiabá, num espaço rural de assentados e pequenos produtores, o fogo devastou em minutos plantações, pastos e sonhos, deixando a certeza de que estamos errando em nossas escolhas e agindo contra o futuro que está logo ali, num amanhã sem cores, sem ar, sem meio-ambiente e sem vida.

Sim, o poeta sempre esteve certo, dói muito viver sem esperança! 

■ Josiley Rafael é assistente social, mestre em Educação (UFMT) e doutor em Serviço Social (UFRJ). Professor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT (Cuiabá).

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