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Naquele domingo, José não iria assistir ao chorinho na praça do parque. Embora pareça um evento pequeno, cancelar o programa pelo qual ele espera a semana inteira é bem inesperado para o meu pai. Aos 77 e com restrições motoras causadas por uma condição de saúde que exige cuidados de enfermagem por 24 horas, o “Carinhoso” do domingo, tocado informalmente, é melhor que qualquer show de grande porte. Mas o dia amanheceu estranho, até para pior das secas já sentidas na capital do país. Às seis da manhã, ouvi a enfermeira fechar as janelas todas do apartamento. “Deve ter um incêndio aqui perto, seu Zé. Olha só, tem fuligem”, ouvi do quarto. 

No telefone, grupos de Whatsapp do condomínio e da região pipocavam mensagens. “Nunca vi tanta fumaça”; “Acordei de madrugada pensando que era fogo no prédio”; “Deve ser incêndio na reserva”. A especulação me impressionou. Embora a paisagem fosse de ficção científica e da varanda já fosse possível ver que a fumaça tomava toda a cidade, ninguém levantou a possibilidade dos incêndios nas outras regiões do país. Ninguém sequer se lembrou disso.

A manhã seguiu esquisita naquele domingo. A mensagem do médico do meu pai orientava que seria melhor não sair. “Melhor ficar em casa, fechem as janelas”. Fechamos. Naquele dia, José não quis nem ver a vista da varanda. “Dá tristeza demais”, me disse. “Nunca vi assim”. Parentes e amigos enviavam notícias das cidades vizinhas. A fumaça também percorria as ruazinhas do interior onde nasci. Por lá, não havia mais vista para a serra, famosa em fotografias.

“Foi incêndio em Goiás”, escreveu meu tio. Mas o Brasil arde em queimadas, respondi. Naquele dia precisei procurar atendimento em emergência — porque além da fumaça, agosto trouxe também infecções por rotavírus. No caminho para o hospital, ruas desertas. Não era o mesmo domingo em Brasília. Um ou outro arriscou os pulmões para correr no Eixo, tão lotado em outros domingos.

O lago sumiu em meio à fumaça. Mal se via a ponte ou a água. Emergência lotada, muita gente tossindo. Na triagem, o enfermeiro de plantão quis saber: “E tá essa fumaça toda aí fora?”. Tá pior, respondi. Brasília seguiu em névoa por quase três dias. Na Esplanada, de manhã, não se via a sombra de quem caminhava para chegar nos ministérios. 

Claro que, embora triste, foi mais fácil assistir à paisagem para quem consegue fechar janelas do apartamento ou ir de carro para o trabalho. Em nossa rotina, foi tranquilo realizar as adaptações. José foi da sala para o quarto. Eu deixei de participar dos treinos de corrida ao ar livre. Embora no grupo houvesse quem insistentemente dissesse que “estava tudo normal”.

Um novo normal, que vem se revelando a cada ano.

Na terça-feira daquela semana ouvi uma frase que impressionou: “Se seguir desse jeito a gente vai viver uma emergência climática”, disse o colega de trabalho, no elevador. Impressionante o despreparo. O quanto andamos na rotina dos dias que não reconhecemos os impactos que o mundo já mostra. A gente é que não vê que a emergência climática já está aqui nem quando a fumaça faz sumir o Congresso Nacional.

Viver o extremo desses dias foi triste. Triste ver a paisagem bizarra da cidade tomada de fumaça, pulmão doendo de respirar. E mais triste que isso: A fumaça seguiu para fazer seus cenários em outras cidades, e tudo voltou ao “normal” na Capital, com seus 13% de umidade [que ainda chegaria ao recorde de 7%, no dia 3/9] e outras ondas de calor. Vida que segue igual – para quem pode se cercar de ar-condicionado e umidificador.

■ Bruna Viana, jornalista, assessora de comunicação no Ministério da Saúde.

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