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Reunião de pais de uma tradicional escola da Zona Sul do Rio de Janeiro. Na pauta, entre outros assuntos, a alimentação dos alunos fora do colégio. A preocupação é com o entorno, já que nas cantinas internas o cardápio está devidamente regularizado — os alimentos ultraprocessados foram totalmente banidos. No pátio do recreio, inclusive, há uma cantina vegana!

Do outro lado da cidade, nas comunidades periféricas, a realidade é bem diferente. Apesar do esforço em se fazer cumprir a recente Lei Municipal que proíbe a “venda ou oferta” de alimentos e bebidas ultraprocessados nas cantinas e refeitórios das escolas localizadas em todo o município, produtos com adição excessiva de sal, açúcar e gorduras fazem parte do cotidiano desses alunos fora dos muros.

A dificuldade de ter acesso a alimentos mais saudáveis é apenas mais uma demonstração da segregação social da nossa sociedade. Na periferia, há menos feiras e supermercados que comercializem alimentos frescos, frutas e verduras. Em contrapartida, a oferta de refrigerantes, doces e biscoitos está na calçada de qualquer rua.

Para alguns pesquisadores, isso tem nome: racismo alimentar. “Uma forma de discriminação que se manifesta na disponibilidade, acessibilidade e qualidade dos alimentos”, define Wanessa Marinho, nutricionista e tecnologista em saúde pública, liderança do Núcleo de Alimentação, Saúde e Ambiente da Coordenação de Saúde do Trabalhador da Fiocruz. “A ausência de supermercados e mercados de alimentos frescos em áreas predominantemente negras, conhecidos como desertos alimentares, limita o acesso a opções saudáveis”, completa.

“O racismo alimentar trata-se de um conceito que entende que a comida pode ser utilizada para agravar desigualdades sociais e estigmatizar, excluir e até dizimar grupos de pessoas”, diz Ellen Cocino, nutricionista pós-graduada em Nutrição Clínica pelo CCE/PE.

Especializada em Transtorno Alimentar no Ambulim IPQ/USP, ela ressalta que pessoas negras e indígenas são as mais afetadas pela má alimentação. “Ter acesso a uma alimentação saudável, infelizmente, ainda é um privilégio de poucos. E alguns grupos, como de pessoas negras e indígenas, estão ainda mais vulneráveis”. Isso significa que o chamado racismo estrutural, presente na sociedade, é um fator determinante que dificulta o acesso de uma parcela da população à alimentação saudável.

Alimentação não é questão de escolha

Ellen cita pesquisa publicada em 2022 que permite entender melhor o que se entende por racismo alimentar. De acordo com estudo assinado por Mariana Fagundes Grillo, Caroline de Menezes e Ana Carla Duran, e divulgado há dois anos, em locais onde há predominância de pessoas pretas e pardas com renda inferior às de comunidades majoritariamente compostas por brancos, os estabelecimentos oferecem menos opções de alimentos in natura. “Isso quer dizer que uma parcela da população é obrigada a consumir mais produtos ultraprocessados ou de baixa qualidade”, constata.

Ela lembra que o Terceiro Mundo também sofre desse “preconceito alimentar”. “Um relatório publicado este ano pela Public Eye mostrou que a Nestlé envia para o Brasil e outros países da América do Sul, África e Ásia produtos com qualidade nutricional inferior aos dos mesmos produtos vendidos nos Estados Unidos, Europa e outros locais de maior renda”.

Por isso, a nutricionista ressalta que “comer bem ou de forma saudável” não é só uma questão de escolha. “Esse tipo de narrativa só reforça injustiças e causa dores e transtornos físicos e emocionais. Precisamos observar a comida como um elemento fundamental das nossas dinâmicas sociais, e garantir que todos possam ter acesso à segurança alimentar”.

Aline Alves Ferreira, nutricionista e professora do Programa de Pós-Graduação em Nutrição Humana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também reflete sobre as diferenças sociais na alimentação. “Estamos falando sobre núcleos populacionais que normalmente têm muita dificuldade financeira, que vivem em locais sem qualquer acesso a alimentos in natura e que só podem consumir ultraprocessados, bem mais baratos”.

Ela foi uma das coordenadoras de um estudo que mapeou a insegurança alimentar na capital fluminense: o Mapa da Fome revelou que quase 2 milhões de pessoas no Rio de Janeiro convivem com algum nível de insegurança alimentar e que a desigualdade social também está presente nas refeições — lares chefiados por mulheres e/ou pessoas negras comem menos e pior. De acordo com a pesquisa, a insegurança alimentar grave é maior nas casas com pessoas da raça/cor preta e parda (9,5%).

Desta forma, podemos mensurar as desigualdades raciais na alimentação, destaca Aline. “Quando a gente olha especialmente para a questão racial, vemos que os domicílios chefiados por pessoas negras estão numa condição muito pior, quase duas vezes mais do que as casas chefiadas por brancos”, afirma.

O estudo — o primeiro a avaliar o cenário da alimentação da população carioca — foi uma iniciativa da Frente Parlamentar contra a Fome e a Miséria no Município do Rio de Janeiro e coordenado por pesquisadores do Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ (INJC/UFRJ), em parceria com outras instituições de ensino superior do estado.

“O perfil da pessoa que passa fome no Rio acompanha as desigualdades nacionais. As famílias que têm insegurança alimentar grave são aquelas com chefia feminina, pessoa preta ou parda, menor escolaridade, desempregado e com menor renda, inferior a um quarto do salário mínimo per capita”, declara Rosana Salles-Costa, professora e pesquisadora do INJC/UFRJ.

Um problema nacional

A questão da desigualdade racial na alimentação não se restringe ao território fluminense. Em todo o país, o mapeamento é similar. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, divulgado em junho de 2022, uma em cada cinco famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas ou pretas no Brasil sofre com a fome (17% e 20,6% respectivamente) — o dobro em comparação aos lares chefiados por pessoas brancas (10,6%). Essa situação foi ainda mais agravada com a pandemia de covid-19 e o desmonte de políticas de combate à fome, como Radis mostrou na edição 225 (junho de 2021).

O racismo alimentar é ainda mais grave quando se leva em conta o gênero: 22% dos lares chefiados por mulheres autodeclaradas pardas ou pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação a famílias comandadas por mulheres brancas (13,5%). Os dados são da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). 
“A falta de alimentos e a fome são maiores entre as famílias chefiadas por pessoas negras. Precisamos urgentemente reconhecer a interseção entre o racismo e o sexismo na formação estrutural da sociedade brasileira, implementar e qualificar as políticas públicas tornando-as promotoras da equidade e do acesso amplo, irrestrito e igualitário à alimentação”, afirma a professora Sandra Chaves, coordenadora da Rede Penssan. Acesse todos os dados da pesquisa em  https://olheparaafome.com.br.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) encontrou resultados bem parecidos — a insegurança alimentar atinge mais a população negra, nordestina e rural. O levantamento, feito em 2020, revelou ainda que um em cada três domicílios com pessoas de referência negra (29,8%) estava em insegurança alimentar. Os lares referenciados em brancos, na mesma situação, eram praticamente a metade (14,4%).

Essa realidade tem seu diagnóstico reforçado por outro estudo: a Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), correspondente a 2017 e 2018, aponta que os domicílios com maiores níveis de insegurança alimentar nesses anos eram formados pela população parda (acima de 50%). E que 15,8% do total de domicílios com insegurança alimentar grave tinha como referência uma pessoa preta. Nos domicílios com segurança alimentar, esse percentual é de 10%.

Em artigo publicado em 2020, Franciléia Paula de Castro, pesquisadora em saúde e ambiente e educadora da Fase em Mato Grosso, descreveu como o racismo no Brasil tem distanciado a população negra do acesso à terra e a alimentos de qualidade. “A alta no preço dos alimentos nos últimos anos tem levado a mudanças de hábitos alimentares em famílias de baixa renda, com abandono de culturas alimentares e aumento elevado do consumo de ultraprocessados. E não é uma opção ou escolha”.

Fran Paula, como é conhecida, observou, em texto publicado no Pós-Tudo de Radis, em setembro de 2022, que comer bem é um privilégio de classe e raça no Brasil. “Infelizmente, o acesso à alimentação saudável, na maioria das vezes, está condicionado ao poder econômico das famílias. É só observarmos em que bairros das cidades estão localizadas as feiras e restaurantes orgânicos no país. A segregação alimentar existe e persiste”.

Classificação alimentar

Segurança Alimentar: Quando a família tem acesso regular e permanente a alimentos em qualidade e quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais.

Insegurança Alimentar leve: Quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro. 

Insegurança Alimentar moderada: Quando há reduções quantitativas de alimentos entre os adultos e/ou modificações nos padrões de alimentação, resultado da falta de alimentos entre os adultos.

Insegurança Alimentar grave: Quando há redução quantitativa de alimentos, tanto para a alimentação de adultos como para a de crianças que residem no domicílio. Nesta situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.

Veja também:

Leia a entrevista completa com a nutricionista Wanessa Marinho clicando aqui.

Estratégias para combater as desigualdades

O Mapa da Fome do Rio de Janeiro sugere a urgência de formulação, concretização e aperfeiçoamento de projetos de leis, políticas públicas, estratégias e ações que possam enfrentar a questão de forma estrutural e estruturante, assim como a implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). É urgente a necessidade de ampliação do número de cozinhas comunitárias e restaurantes populares, que são responsáveis pela distribuição de refeições saudáveis, gratuitas ou com preços acessíveis, em todo o município do Rio de Janeiro.

Por serem poucos e não estarem inseridos dentro dos territórios, o acesso mais amplo da população é um desafio, pelo custo de deslocamento com transporte. A pesquisa revelou o percentual dos que acessaram as cozinhas comunitárias ou o “Prato Feito Carioca” nos três meses anteriores: apenas 2,1%.

“Temos dois equipamentos públicos (restaurantes populares e cozinhas comunitárias) que poderiam estar mais bem distribuídos, em maior quantidade e em locais de dificuldades de acesso à alimentação mais saudável”, ressalta Aline.

Podemos falar em nutricídio?

Termo cunhado na década de 1990 pelo médico e nutricionista Llaila Afrika, o nutricídio se refere à má alimentação e ao impacto na saúde da população pobre, preta e periférica. Ele é autor do livro Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race [Nutricídio: A Destruição nutricional da Raça Preta], que se tornou uma referência em saúde e nutrição.

De acordo com Llaila, a cultura alimentar e a dieta nutritiva dos povos africanos e afro-americanos foram afetadas pela colonização. Os europeus deslocaram a cultura alimentar desses povos, que era baseada em vegetais frescos e preparos caseiros, homogeneizando o consumo de alimentos que geram diversos problemas de saúde, como açúcar, farinha branca e sal.

“Mesmo tendo o povo negro responsabilidade histórica no trabalho agrícola do país, estes foram privados do acesso à terra e seguem sendo expulsos de seus territórios, impossibilitados de produzirem seu próprio alimento. A morosidade nos processos de titularização e regularização dos territórios quilombolas explicita a permanente violação de direitos — racismo institucionalizado na política de Estado”, escreveu Fran Paula, que também é engenheira agrônoma e quilombola.

Aline Ferreira considera que deveria haver de fato uma política nacional de alimentação mais saudável, que incentivasse realmente os pequenos agricultores e a distribuição de alimentos naturais. “O que vemos, infelizmente, é que os alimentos ultraprocessados estão ficando cada vez mais baratos quando comparados aos in natura. E os agricultores menores, com dificuldades para competir e continuar suas produções”, resume a professora do Programa de Pós-Graduação em Nutrição Humana da UFRJ.

Para garantir o direito à alimentação

Conheça alguns exemplos de políticas de combate à fome e à insegurança alimentar no RJ

Prato Feito

Criado em 2022, o Prato Feito Carioca tem como objetivo atenuar os efeitos das crises econômicas sobre a população mais vulnerabilizada da cidade.

Este programa é composto pelo projeto Cozinhas Comunitárias Cariocas, responsável por produzir diariamente refeições gratuitas, direcionadas, prioritariamente, a indivíduos e famílias em situação de extrema pobreza. As Cozinhas Comunitárias funcionam de segunda a sexta-feira e oferecem 280 refeições. Cada refeição tem 560 gramas, sendo 100g de feijão, 200g de arroz, 130g de legumes, 130g de carne e uma fruta com 160g. Até novembro de 2023, foram servidas 1.714.715 refeições.

Restaurantes Populares

Diferentemente das Cozinhas Comunitárias Cariocas, o público que frequenta os Restaurantes Populares precisa ter dinheiro para utilizar o serviço, dado que as refeições oferecidas são cobradas, ainda que a baixo custo.

Os Restaurantes Populares foram criados em 2010, para dar acesso a refeições adequadas e saudáveis. Eles são prioritariamente destinados a indivíduos e famílias em vulnerabilidade e risco de insegurança alimentar. São oferecidos desjejum (das 6h às 9h), por R$ 0,50, e almoço (das 10h às 15h), por R$ 2,00.

Programa Hortas Cariocas

As hortas são implantadas em áreas públicas que não estejam sendo utilizadas e que sejam próximas a comunidades de baixa renda, como terrenos em encostas, baixadas ou em áreas internas de escolas, creches e terrenos sujeitos à invasão desordenada. Atualmente, são 56 hortas (29 em comunidades e 27 em escolas). O programa dialoga com quatro temas transversais: meio ambiente; criação de postos de trabalho; combate à fome; e ocupação do próprio município. Metade dos alimentos produzidos são doados para as comunidades, creches e escolas, e os outros 50% são vendidos. Em 2023, foram produzidas em torno de 74 toneladas de alimentos. Ao longo de 16 anos, o programa já produziu cerca de mil toneladas de alimentos, beneficiando aproximadamente 60 mil famílias.

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