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Ninguém conseguia dormir. Debaixo de barracas construídas com estacas de madeira e lona preta, famílias acampadas com o objetivo de conseguir um pedaço de terra para plantar eram assustadas na madrugada com tiros e carros arrastando correntes pesadas na estrada de terra. O ano era 1981, em plena ditadura militar no Brasil, com a efervescência dos movimentos populares e dos protestos pelo fim do regime ditatorial. O local do acampamento foi decretado área de segurança nacional e sofreu intervenção da brigada militar gaúcha.

A violência contra os acampados era cometida por policiais a mando de pessoas que concentravam grandes quantidades de terras na época, segundo informaram os entrevistados por Radis. Alguns chegavam a ficar horas presos dentro da barraca montada pelos policiais sob tortura física e psicológica para que desistissem da luta pela terra.

Esse acampamento ocorreu na Encruzilhada Natalino, localizada no município de Sarandi (RS), uma das mais memoráveis ocupações no período que antecedeu a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dentre as várias que aconteceram entre os anos de 1970 e 1980 no Rio Grande do Sul, a exemplo da ocupação das granjas Macali e Brilhante, na mesma região. Os trabalhadores e trabalhadoras sem terra recebiam apoio da Igreja Católica, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e de parte da população da região.

As mais de 500 famílias, cerca de duas mil pessoas, estavam ali pela esperança “da terra para quem quer plantar” — essa promessa remonta ao dia 13 de março de 1964, quando o presidente João Goulart defendeu as reformas de base, dentre elas a reforma agrária, em um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Jango afirmou que o objetivo seria “tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável”. Esse comício foi o estopim para o golpe de 31 de março de 64, que completou 60 anos em 2024 (Radis 259).

Dado o caráter religioso de grande parte das pessoas que estavam ali na luta pela terra, os acampados fizeram uma romaria, após a intervenção militar, e mudaram-se para Nova Ronda Alta, no município de Ronda Alta. Apenas em 1983, as famílias acampadas da Encruzilhada Natalino foram assentadas definitivamente nesse outro município. Para aquelas pessoas, a luta não tinha acabado ali, pois ainda existiam milhares de outros sem terra por todo o Brasil lutando pela reforma agrária.

Em janeiro de 1984, no primeiro Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Paraná, foi oficialmente fundado o MST, com o objetivo de que a luta precisava continuar e, principalmente, de forma organizada. Com a redemocratização do país, no contexto da década de 1980, esse era um momento de esperança e de muitas promessas.

A primeira grande ação do MST como movimento organizado foi a ocupação da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, em 29 de outubro de 1985 — acampamento próximo da icônica Encruzilhada Natalino. A ação se tornou o maior acampamento sem terra do país com 1.500 famílias de camponeses. A fazenda era objeto de disputa judicial entre a família Annoni e o Estado, que havia desapropriado as terras de mais de 9 mil hectares que hoje fazem parte dos municípios de Pontão e Sarandi. 

O movimento que começou com pouco mais de 100 pessoas atualmente conta com cerca de 400 mil famílias assentadas e outras 70 mil acampadas. Organizado em 24 estados do Brasil, é o maior movimento popular da América Latina e conta com 185 cooperativas, 1,9 mil associações e 120 agroindústrias, segundo dados do MST.No aniversário de 40 anos do MST, Radis visitou a Encruzilhada Natalino e as terras que correspondem à antiga Fazenda Annoni para conversar com os assentados e contar um pouco da trajetória e do presente desse movimento, que foi construído à base de muita luta.

Quem estava debaixo das lonas?

Na madrugada do dia 29 de outubro de 1985, um jovem de apenas 22 anos cortou a cerca de arame farpado que demarcava os limites das vastas terras da Fazenda Annoni. À luz da lua cheia e sem lanternas para não chamar atenção dos policiais, a porteira foi derrubada na subida de uma colina e deu passagem à multidão. Naquela madrugada, 150 caminhões e ônibus lotados levavam as mais de 7 mil pessoas de 33 municípios, prontas para iniciar a ocupação, entrando nas terras demarcadas para a reforma agrária. Naquele primeiro momento, as pessoas deitaram no chão, tendo o mato como cama, antes mesmo que qualquer barraca de lona pudesse ser montada.

Não foi possível reprimir aquela quantidade de pessoas e as autoridades foram obrigadas a conversar. O jovem que ficou conhecido por ter cortado a cerca era Isaías Vedovatto, filho de agricultor assentado antes do golpe militar no país, em uma área desapropriada por Leonel Brizola (ex-governador do RS). Por viver nesse contexto, desde sempre Isaías sabia que era injusto que somente uma pessoa concentrasse uma quantidade enorme de terras sem produzir, enquanto existiam tantas pessoas passando fome e sem ter onde ou como trabalhar. 

Hoje, com mais de 60 anos, ele relembra a luta pelo tão sonhado pedaço de terra: “Nessa região tem um processo de luta histórica muito importante, tanto pela saúde, quanto pela terra. Aqui perto também surge o MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], o MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens]. Esse é o contexto histórico da região e eu sou filho dessa luta”, afirma Isaías sobre a efervescência dos movimentos populares no final da ditadura e início da redemocratização. “Para mim foi muito natural cortar a cerca quando entramos na Fazenda Annoni”, conta.

A ditadura havia perseguido e desarticulado os movimentos sociais e as organizações políticas. Por esse motivo, a Comissão Pastoral da Terra se tornou uma importante aliada dos camponeses na luta pela terra. Ocorriam reuniões nas comunidades rurais nas quais a leitura de dois textos era imprescindível: a Bíblia e o Estatuto da Terra, lei de 1964 que regula as relações fundiárias no Brasil. Este último diz que a Reforma Agrária é “o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”, de acordo com o artigo 1º.

A partir desses encontros, nos quais os agricultores sem terra podiam debater e estudar temáticas importantes para uma tomada de consciência social, foi se organizando a primeira grande ocupação do MST, a da Fazenda Annoni. Além disso, a própria discriminação contra as ocupações reacendia o sentimento de injustiça nessas pessoas. 

Isaías conta que “o processo de embate contra nós, [de chamar] de vagabundo… a própria imprensa, o jeito que tratava e trata até hoje os acampamentos, é uma discriminação muito forte”, desabafa, cansado. “Então tu te ver nesse processo já ajuda na formação de consciência, se te falam coisas que não é verdade, que te machucam, tu acaba aprendendo”, completa.

Como a Igreja Católica estava muito envolvida nessa luta, foi assim que Lúcia Vedovatto se tornou uma sem terra, hoje assentada e coordenadora do Instituto Educar do MST. Ela trabalhava na casa paroquial do Padre Anildo — importante nome na luta pela terra, na época — em Ronda Alta, depois de precisar trabalhar como empregada doméstica na cidade para conseguir terminar os estudos. A primeira vez que visitou um acampamento, achou um absurdo crianças e mulheres vivendo naquela situação precária. 

Após conhecer mais o movimento e se perceber também como uma sem terra por ter vindo de uma família numerosa de agricultores, Lúcia foi uma das pessoas que ocuparam e resistiram nas terras da Fazenda Annoni com mais dois irmãos. Ainda acampada, conheceu Isaías, com quem casou e teve dois filhos.

Mário Lill se descobriu sem terra pelo mesmo motivo de quase todos que estavam ali. Vinha de uma família numerosa de agricultores e não tinha terra para todos plantarem. Hoje é assentado, sócio fundador e presidente da Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata (Cooptar). Ainda solteiro, viu na ocupação uma oportunidade de não ter que ir para a cidade ou passar fome. Mas não foi fácil. 

“Foi perigoso por causa da guarnição da brigada militar paga pelo Estado para proteger a Annoni. A ocupação só foi possível pela quantidade de pessoas”, relata. Foi a partir daí que eles começaram a ter noção de que o “problema no Brasil não é terra”. “O problema é que ela está concentrada”, completa, e isso incentivava o ingresso na luta.

Ocupar para produzir

Nos dois anos que antecederam a ocupação da Annoni, os militantes do recém-formado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra andavam com bandeira nas costas “procurando gente que pensava como nós e queria um pedaço de terra”, afirma Darci Maschio, assentado e presidente da Cooperativa Agropecuária e Laticínios de Pontão (Cooperlat). “Para podermos nos instalar e nos manter como organização — mesmo que aqui seja a região tida como o berço do MST — teve muita briga”, conta. 

A região norte do Rio Grande do Sul, além de ser o lugar onde nasceram muitos movimentos sociais, é um território tomado pelo agronegócio voltado para a monocultura e com grandes proprietários de terras. “A ideia que os governantes tinham era de que os colonos não podiam pensar, não podiam contestar, tinham que ser burros”, desabafa Darci. “Em relação aos direitos básicos do cidadão, o movimento, na nossa época, fez uma revolução”, afirma, ao mencionar direitos como saúde, educação, moradia, trabalho, renda, entre outros, que foram se tornando prioridade para o movimento.

“Por que ocupar? Por que trancar a estrada? Pra que ocupar prédio público? Pra que ocupar terra dos outros?”, essas eram as perguntas que todos faziam, segundo relata Darci. E eles respondiam que “essa era a única forma, a única voz que os governos ouviam. Porque a gente ia lá, mandava documento, ofício e nada!”. “Muita gente morreu, sofreu, foi humilhada e torturada. É um histórico bonito que nós construímos com sangue”, afirma.

Fazenda Annoni, em foto histórica, em ocupação na década de 80. — Foto: Brasil de Fato.

Fazenda Annoni

Quem caminha pelos assentamentos na região da antiga Fazenda Annoni se surpreende pelo nível de qualidade de vida. Alguns foram construídos em formato de agrovila, com uma rua principal e as casas dispostas lado a lado. Cada qual com seu estilo arquitetônico, o que mais se vê são cores, seja das casas bem pintadas ou das flores que crescem em abundância pelos jardins. 

A maioria dos assentamentos também conta com área de lazer, algumas com quadras poliesportivas, academia ao ar livre e campos de futebol, além de centros de convivência onde são organizados jantares para toda a comunidade. Por ter muitas árvores frutíferas, o canto dos pássaros é o som mais presente, quando as máquinas das agroindústrias não estão em funcionamento.

Se o objetivo dos primeiros acampados da antiga Fazenda Annoni era ter seu pedaço de terra para plantar e conquistar dignidade de vida, digamos que a empreitada foi um verdadeiro sucesso: a qualidade de vida é inegável. Porém, a visão de dignidade mudou para a maioria dessas pessoas. O sonho que no início era individualista se tornou coletivo.

“Uma terra só pra mim, sem ter que dar metade para o dono? Vou enricar”, pensava Darci Maschio. Já Mário Lill relembra: “Eu com a quantidade de terra que meu pai tem, solteirão, pensava: ‘vou enriquecer’, era o sonho de jovem”. A maioria das pessoas que foram ocupar a Fazenda Annoni tinha o objetivo de fugir da pobreza. “A questão principal era resolver o problema econômico. Estamos falando de um período de crise econômica, muitos jovens da minha época iam para São Paulo e Rio de Janeiro trabalhar em restaurante, ou para Porto Alegre trabalhar nas fábricas de sapato. Havia muito êxodo rural porque na agricultura não dava mais”, desabafa Isaías Vedovatto.

Quem queria ser agricultor e era “pobre” tinha que acampar para tentar conquistar sua terra. Contudo, só a terra não bastava. “A organização [do MST] foi necessária para a gente ir atrás de outros direitos que a gente nem sabia que tinha”, completa Darci. O objetivo era transformar aquelas pessoas em cidadãos: “Deixar de ser objeto de uso dos ricos e se tornar um cidadão que começa a pensar”, acrescenta.

Foi com essa proposta que o MST buscou formações para a sua base, ainda que precisasse mandar militantes para outros países para aprender com as práticas de outros movimentos. O MST não surgiu do nada e nem “inventou a roda”, pois bebeu na fonte de diversos pensadores e movimentos sociais da América Latina. Dessa forma, implementou a disciplina, a educação, a cooperação, o respeito às diferenças e às individualidades e, até mesmo, a luta feminista dentro dos acampamentos e assentamentos. “Hoje eu sou o que sou e sei o que sei, graças ao MST e a seu processo de organização”, afirma Isaías.

Luta também pela educação

O município de Pontão (RS), hoje com cerca de 3,2 mil habitantes, surge e é emancipado por causa dos assentamentos. Nessa região, é construído um hospital, além da escola, que vai da educação infantil ao ensino fundamental II em tempo integral. Uma escola diferente, na qual os alunos aprendem não apenas o que está na grade curricular, mas também sobre a luta de seus pais e avós pela terra em que estão assentados, assim como sobre agroecologia e como podem ajudar a cooperar com um mundo mais justo.

A região também conta com o Instituto Educar, uma escola de formação do MST que oferece cursos de graduação. Salete Campigotto, professora, assentada e fundadora do Educar, lembra que “no nosso acampamento [na Encruzilhada Natalino], quase 60% das pessoas eram analfabetas e as crianças não tinham escola. Então, começamos a pensar a educação no acampamento”.

Como professora, ela sempre atuou na área da educação no MST e se sentia incomodada com a falta de acesso ao estudo para quem era agricultor. Porém, não existia um método que correspondesse àquela realidade. “Começamos a pensar em [como] trabalhar a educação com essas crianças e adultos. Então, fomos buscar uma assessoria com Paulo Freire, que recém tinha chegado do exílio”, narra. O diálogo com o método revolucionário do educador marcou o início da educação como base do MST.

O movimento instituiu a educação como um dos princípios, por acreditarem ser ela uma ferramenta de mudança. Várias escolas foram criadas pelo MST, como a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em São Paulo, uma das maiores e mais referenciadas do país. Algumas pessoas do movimento foram estudar fora do Brasil, em colaboração com outros movimentos da América Latina, para se capacitar, como foi o caso da filha de Salete, Andreia Campigotto, que cursou medicina em Cuba.

Marcha Estadual pela Reforma Agrária (BA). Foto: Jonas Santos.

Cooperação e Economia Solidária

No início, em 1984, o MST tinha um único objetivo: fazer o latifúndio improdutivo produzir. Contudo, “a gente via, pela experiência de nossos pais, a pequena agricultura sumir, ser engolida pelos bancos, pelos grandes produtores e nós na contramão lutando para redistribuir a terra. A cooperação entrou nesse contexto. A única forma de nos tornarmos competitivos frente ao capital seria se nós juntássemos forças”, lembra Mário.

Após mais de 7 anos embaixo de barracas de lona para conseguir a terra, os recém assentados começaram o monocultivo de grãos, em sua maioria. Era a única experiência que conheciam na região. “Logo nos demos conta de que reproduzir o modelo tradicional não funcionaria. A mecanização expulsou as pessoas da roça”, conta Mário. Naquele período, existia um grande excedente de mão de obra, já que o agronegócio cada vez mais reduzia a quantidade de trabalhadores na terra.

Também foi constatado que a estrutura de monocultivo não servia para agricultores pequenos. Foram formadas, então, cooperativas como a Cooptar, que conta com frigorífico, produção de embutidos, carne suína e leite, além de agricultura. Esta última com o cultivo de verduras, hortaliças e grãos como feijão para consumo próprio do assentamento e para doação, além da produção de grãos para ração dos suínos e bovinos. 

Outro exemplo é a Cooperlat, que produz hortaliças, verduras, frutas, suco natural e feijão para venda, além de produtos lácteos como leite, manteiga, iogurte, queijos e nata.

“Estamos bem! Não estamos ricos, aquele sonho lá já abandonei há muito tempo!”, relembra, rindo, Mário. “A gente conseguiu estabelecer um padrão de vida bom. O que a gente tem aqui, qualquer pessoa do país gostaria de morar em um lugar desses, onde você tem trabalho, renda, lazer, convivência, preservação do meio ambiente, comunicação, acesso para chegar… o que você imagina para uma pessoa viver com dignidade”.

O campo planta, a cidade janta 

Milhares de grãos caem da máquina de debulhar feijão em uma segunda-feira comum em uma das sete comunidades que constituem a área que um dia foi a Fazenda Annoni, que conta hoje com 433 famílias. Essa é a nova frente que o MST no Norte do Rio Grande do Sul quer investir: a produção de feijão. A ideia do movimento é cultivar alimentos utilizados na cesta básica do brasileiro. O Sul gaúcho já é reconhecido pela produção do arroz orgânico; agora, o Norte do estado tem buscado aumentar a produção de feijão.

A maior dúvida para quem defende a agroecologia é se esta seria uma solução viável em larga escala. O MST esbarrou nesse problema: como ser competitivo e produzir em grande quantidade com a redistribuição de terras? A resposta encontrada foi a economia solidária e o cooperativismo. “Logo que a gente foi assentado, tinha clareza de que cooperar era uma forma de valorizar o produto que a gente tinha pra vender”, relembra Darci Maschio. “Se não se coopera, o agricultor será mais um a ser engolido [pelo agronegócio]”.

O que ocorria é que os pequenos agricultores não conseguiam vender nem ter crédito, então acabavam abandonando a Zona Rural. “Não conseguiam se sustentar e vendiam a terra por qualquer troco. Assim, iam embora tentar qualquer emprego na cidade”, reforça Darci. Ele e outras 140 famílias são sócios da Cooperlat, reconhecida na região pela qualidade do produto entregue. Atualmente, a cooperativa atende escolas e empresas, vende em feiras e até para o Exército. 

Darci reforça que todos os produtos do MST carregam a bandeira do movimento: “Temos orgulho de dizer quem somos: somos assentados do MST!”. E se emociona: “Aqui e em qualquer lugar, nós somos o MST. Somos os mesmos que andamos com bandeiras nas costas”.

A emoção de Darci é sobre a nova forma como o preconceito contra o movimento é demonstrado na região. Se antes as pessoas tinham medo e os chamavam de ladrões, hoje torcem o nariz e contestam cada conquista, como se quem é do MST não pudesse ter carro, celular, vestir-se bem ou, então, ter a produção otimizada por máquinas.

Para que o projeto de cooperativismo desse certo, eles decidiram buscar referências em outros países da América Latina. Atualmente, os associados recebem um valor mensal de acordo com os produtos que entregam e no final do ano são distribuídas as sobras proporcionalmente à produção de cada associado. O objetivo da Cooperlat, assim como de outras cooperativas do MST, não é o acúmulo de capital, mas a distribuição de forma horizontalizada, diferente das outras cooperativas da região.

Uma vizinha da Cooperlat é a Cooptar, que está se tornando referência na região na criação de suínos e na produção do frigorífico. Diferente da Cooperlat, essa é uma cooperativa na qual os sócios são todos de um mesmo assentamento e, além da distribuição horizontal, tem-se o propósito de que tudo seja dividido por igual. Por exemplo, a remuneração por hora trabalhada é igual desde a gestão até para quem trabalha diretamente com o gado. 

Outra diferença é a Ciranda, espaço que funciona como creche para as crianças pequenas: pessoas do próprio assentamento trabalham neste espaço e são pagas pela cooperativa. O mesmo acontece com as cozinheiras, com as pessoas que trabalham com a plantação de árvores e no cuidado com a roça — tudo é feito em regime de cooperação.

A cooperativa também busca minimizar os impactos ambientais, fazendo o tratamento da água utilizada na criação de suínos ou no frigorífico, para que ela retorne para a lagoa de forma limpa. Utiliza energia solar para uso do maquinário, além de plantar milho que é transformado em ração para os animais. Cada vez mais, os assentados buscam encontrar estratégias para que o sistema produtivo seja retroalimentado.

Em todo o país, as cadeias produtivas mais consolidadas nos assentamentos do MST, nas mais de 180 cooperativas, são do arroz, leite, carne, café, cacau, sementes e mudas, mandioca e cana-de-açúcar. Porém, existe, ainda, produção de feijão, mel, castanhas, milho, ovos, tomates, açaí, pimenta e condimentos, entre outras. Além de diversificar a produção e automatizar as agroindústrias, o objetivo central dessa organização para cada vez produzir mais, em larga escala, é fazer frente ao modelo do agronegócio, que não é voltado para alimentar os próprios brasileiros, mas sim para a exportação.

Marcha Estadual pelaReforma Agrária (BA). Foto: Jonas Santos.

Reforma agrária popular vai além da terra

A luta do MST não é apenas sobre a terra. Muito além da região Sul do país, o movimento fincou raízes com estacas de barracas de lona em todo o Brasil. Após 40 anos de luta, há quem pergunte: “Ainda tem sem terra no Brasil?” ou “Ainda tem terra pela qual lutar?”. O MST responde com 70 mil famílias acampadas atualmente. O movimento caracterizado pela bandeira vermelha ocupa o assento central na discussão pela Reforma Agrária, que todos parecem ser a favor, apenas com a condicionante de que cada um quer um tipo diferente de reforma. Radis buscou saber qual a Reforma Agrária pautada pelo movimento.

A terra para quem nela trabalha foi o primeiro objetivo do MST. “Depois fomos compreendendo, em um debate nacional, que não basta apenas distribuir a terra e colocar para produzir, tem que debater qual o modelo de produção. Não basta virar um agronegócio pequenininho”, afirma Isaías Vedovatto. 

Em contrapartida ao modelo tradicional de agronegócio, no início dos anos 2000, o movimento começa a pensar a agroecologia (Saiba mais sobre o tema na Radis 255). Posteriormente, outras discussões também foram se tornando centrais, como as questões ambientais, a educação e a saúde. “Esse foi um aprendizado construído nesses 40 anos de movimento”, completa Isaías.

A agroecologia como bandeira de luta surge no contexto em que o país e o mundo enfrentam um processo crescente de fome, desemprego, violência e exclusão econômica e social. O adjetivo “popular” após “reforma agrária” tem o objetivo de demarcar que esse é um processo que toda a população precisa que aconteça, segundo o movimento. Não é apenas quem está acampado que necessita da redistribuição de terras, mas quem está nas cidades e é impactado pela fome, pela desnutrição impulsionada pelos desertos alimentares, pela falta de alimentos sem agrotóxicos e pela alta oferta de transgênicos.

Outra bandeira de luta que o movimento adotou, que não poderia ser mais oportuna, é a preocupação com os impactos que causamos no meio ambiente. Uma meta lançada pelo MST em 2020 pretende plantar mais de 100 milhões de árvores até 2030 no Brasil. O objetivo é conscientizar a população sobre a crise climática e ambiental em que vivemos, mas, também, contribuir para o projeto de mundo mais justo que o movimento prega em suas bases.

Nos assentamentos, o plantio de árvores serve para preservar a cultura local, com a utilização de espécies nativas, além de criar áreas verdes utilizadas como pomar, para proteção térmica e até como objeto de estudo. As mudas de árvores criadas pelo MST estão auxiliando, inclusive, no reflorestamento de áreas que sofreram desastres ambientais, como o mais recente na região metropolitana do Rio Grande do Sul. Grupos de alunos formados em agronomia pelo MST, com habilitação em agroecologia, também auxiliam na recuperação de áreas afetadas pelo rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.

Outra base forte do movimento é a cooperação. Aí se incluem as experiências das cozinhas comunitárias e de distribuição de alimentos e refeições em situações de calamidade, como ocorreu no Sul do estado gaúcho, após centenas de famílias ficarem desabrigadas por conta das enchentes. Ou durante a pandemia, quando o MST distribuiu alimentos para pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade social. Iniciativas como essas acontecem de um lado a outro do país.

Existe grande expectativa por parte de quem acompanha o movimento sobre as próximas diretrizes, que seriam decididas no VII Congresso Nacional, em 2024. Porém, o encontro foi adiado para 2025 em solidariedade à tragédia que ocorreu no Rio Grande do Sul.

Educação como base

Um exemplo prático dessas estratégias do movimento ocorre no município de Pontão, nas terras desapropriadas da Fazenda Annoni: o Instituto Educar. Para capacitar os assentados para trabalhar com a agroecologia, foram criados cursos técnicos em agropecuária com ênfase em agroecologia. A primeira turma surgiu em 2005, em uma parceria com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em 2013, por meio da mesma parceria e com apoio da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), iniciaram os cursos de graduação em agronomia, com habilitação em agroecologia. 

Por falta de orçamento, o curso técnico foi descontinuado em 2016, ano do impeachment que destituiu a presidenta Dilma Rousseff. Entretanto, 10 turmas finalizaram os estudos no Educar, com mais de 350 profissionais formados. O curso de graduação continuou, apesar dos cortes na educação (que afetaram todo o país): atualmente, já está se encaminhando para a abertura do processo seletivo da 5ª turma, que começará os estudos em janeiro de 2025. Mais de 100 estudantes já concluíram o curso, contando com a turma que está se formando em 2024. Somente de alunos da graduação, o Educar já recebeu pessoas de mais de 20 estados brasileiros.

Os estudantes frequentam uma parte do curso no campus da UFFS, porém a maioria do aprendizado acontece no assentamento, em período integral: o Instituto Educar possui alojamentos para que os alunos possam cumprir o “tempo estudo” e o “tempo trabalho”, como é dividida a prática e a teoria. Seguindo a forma de organização do próprio MST, os estudantes são divididos em núcleos de base (NBs) — pequenos grupos para debate de textos e divisão de trabalhos — além da coordenação da turma, em que sempre são escolhidas duas pessoas com paridade de gênero.

“A faculdade para nós é a possibilidade de formar agrônomos e agrônomas com outra visão de sociedade, de produção de alimentos. A gente não quer produzir commodities, a formação nossa vem em contraponto a isso, com outra perspectiva”, relata Douglas Grasselli, egresso da primeira turma do curso de agronomia no Educar e coordenador estadual do MST/RS. Ele faz parte da segunda geração das famílias assentadas na Annoni, cresceu e estudou nessas terras, onde já tem sua casa e toca um projeto de produção de feijão com os primos e os irmãos.

O Instituto também está construindo um sementário com grande variedade de sementes de diversas regiões do país. Tem um horto medicinal, com plantas que podem ser usadas no tratamento de doenças. E conta ainda com um viveiro de mudas de árvores que leva o nome de um companheiro do MST, Zecão. Na área da alimentação, o Educar promove jantares na região para conscientização sobre as plantas comestíveis não convencionais (Pancs), estimulando uma alimentação mais diversificada.

“O método que trabalhamos aqui não dá direito só a uma faculdade, mas a duas: que é a formação profissional e a vivência coletiva. Mais do que profissionais, a gente busca a formação como humano e a formação política”, ressalta Salete, acompanhada da companheira de trabalho no Educar, Lúcia Vedovatto, que complementa: “Você vê a alegria dos filhos e dos pais, o fato de criar aqui o curso de agronomia, no qual o filho pode ficar no assentamento, vai para a faculdade e volta para casa. É uma grandiosidade não precisar se mudar para a cidade ou para outro estado para o filho se formar”.

  • 400 mil famílias assentadas
  • 70 mil famílias acampadas
  • Presente em 24 estados do Brasil
  • 185 cooperativas
  • 1,9 mil associações 
  • 120 agroindústrias
  • 16 mil toneladas de arroz orgânico produzidas na última colheita
  • 7 milhões de litros de leite produzidos por dia
  • Mais de 50 mil famílias têm produção completamente agroecológica
  • 60% das ocupações por terra no Brasil são do MST atualmente
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