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— Foto: Fernanda Oliveira.

“[…] a mudança vem, ou a gente correndo atrás dela ou ela atropelando a gente com tudo, sem pedir pra sair do meio. E é bom que venha mesmo, que o fim certo é que é bom, é o fim certo que empurra a gente, não fosse a certeza do fim, a gente ia viver igual todo santo dia?”  

Uma carta guardada por 50 anos sela um amor proibido entre dois adolescentes.

Intitulado A Palavra que Resta, o romance de estreia do autor cearense de 44 anos, Stenio Gardel, lançado em abril de 2021, conta a história de Raimundo, um homem de 71 anos de idade que, motivado pela carta deixada por seu grande amor, Cícero, — guardada em uma caixa de sapato e escondida embaixo de sua cama por 50 anos —, decide ir em busca da alfabetização.

É emocionante a maneira como o autor construiu a caracterização do protagonista: forte e determinado. Mesmo considerando tardia a decisão de ingressar nos estudos, Raimundo revelou-se empenhado e dedicado ao processo de aprendizado. Cada conquista do personagem é reconhecida e valorizada, como, por exemplo, quando consegue substituir a designação “não alfabetizado” marcada em fonte padrão em seu RG pela sua própria assinatura. 

Livro A palavra que resta, de Stênio Gardel

Já a escrita, por sua vez, foge dos padrões, inicialmente causando certa estranheza, mas se torna dinâmica e envolvente à medida que um ritmo de leitura é estabelecido pelo leitor. A Palavra Que Resta é capaz de tocar o público com maestria, com palavras poéticas e uma escrita não-convencional: o romance descreve altos e baixos, representando a realidade de grande parte da comunidade LGBTQIA+, desde a violência ao amor, da exclusão à aceitação. 

A obra desenrola-se em uma pequena cidade interiorana, perpassando diversos episódios de homofobia e transfobia sofridos pelos personagens. Com Raimundo, o autor dá voz a uma infinidade de brasileiros que se identificam com o personagem de origem pobre que nunca foi incentivado pela família a estudar, já que precisava trabalhar para ajudar a trazer alimento e sustento para casa. Aos 71 anos, quando resolve aprender a ler e escrever, Raimundo se depara com outros idosos das mais variadas origens e realidades, que assim como ele nunca tiveram os estudos em primeiro plano.

Para além disso, a obra tornou-se tornou mundialmente conhecida ao vencer o National Book Award, um dos mais importantes prêmios literários dos Estados Unidos, na categoria de melhor obra traduzida de literatura, em novembro de 2023. 

Em seu discurso de agradecimento, o autor disse: “Ao crescer como um garoto gay no interior do Nordeste do Brasil, era impossível pensar ou sonhar em tamanha honra. Mas ao estar aqui nesta noite, como um homem gay, recebendo este prêmio por um romance sobre a história da jornada de outro homem gay rumo à autoaceitação, eu gostaria de dizer a todos que já se sentiram errados a respeito de si mesmos, que o coração e o desejo de vocês são reais, e vocês são merecedores, como todos os outros, de uma vida plena e de alcançar sonhos impossíveis”. O romance também foi indicado ao prestigiado Prêmio Literário Internacional de Dublin. Apesar de se tratar de uma obra fictícia, A Palavra que Resta dialoga de forma perspicaz com a realidade do Sertão brasileiro, onde as gerações mais velhas não tinham tempo para estudar, pois eram o sustento de suas casas; as pessoas que fugiam do padrão heteronormativo de se relacionar eram julgadas e segregadas; e as discussões familiares acabavam em violência. O livro defende a mudança como algo essencial, especialmente nesses casos. Raimundo deixa a lição de que nunca é tarde para mudar — ou para se aceitar. 

* Estágio supervisionado

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