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O clima mudou para pior, como mostraram os termômetros que, em 2023, bateram recordes de temperatura. Mais calor trouxe secas prolongadas, incêndios florestais, chuvas intensas, alagamentos e inundações, apagão, queimadas, elevação do nível do mar e deslizamentos de terra em proporção inédita. Esses fenômenos, que impactam de diferentes formas e intensidade a vida das pessoas, não aconteceram só no Brasil. Em qualquer lugar, são as populações vulnerabilizadas e marginalizadas que mais sofrem as consequências da emergência climática. Especialistas apontam que a desigualdade está na raiz da crise e é necessário fazer uma transição energética que promova a justiça climática.

Crise climática e desigualdade não só se relacionam como se retroalimentam, diz relatório da organização Oxfam, divulgado em dezembro de 2023. O documento recomenda que “só por meio de uma redução radical da desigualdade, uma ação climática transformadora e uma mudança fundamental nos objetivos econômicos como sociedade podem salvar o planeta e garantir uma sociedade mais justa e solidária”. 

Carlos Machado Freitas, coordenador do Centro de Estudos para Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), observou à Radis que o enfrentamento pede um pacto global baseado na equidade entre os países. Segundo o pesquisador, só assim será possível alterar modelos de desenvolvimento sustentados em produções poluentes e geradoras de desigualdades sociais e ambientais.

Para Breno Bringel, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), crise climática e desigualdade “são dois lados de uma mesma moeda”. Em entrevista à Radis, durante o 12o Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), no Rio de Janeiro, em novembro de 2023, o professor reforçou que justiça social e climática são indissociáveis. “O mapa da pobreza e o da contaminação estão sobrepostos. Boa parte dos problemas sociais estão sobrepostos aos problemas ambientais. Não podemos imaginar uma forma de justiça social que não seja também uma forma de justiça climática”, observou.  

O pesquisador entende que a chamada agenda climática, que propõe medidas de adaptação e mitigação para a preservação do meio ambiente, reduz esse debate à métrica do carbono, pensa o combate de forma especializada e discute a crise sob o viés do clima. Dessa forma, segundo ele, a agenda deixa de lado os principais atores e sujeitos políticos que deveriam conduzir o debate. “O combate às mudanças climáticas não virá dos técnicos, dos especialistas ou de um grande programa. Vai vir também se a gente aterrissar em práticas concretas e alternativas, como a agroecologia e as comunidades energéticas, que dão respostas concretas para o enfrentamento às mudanças climáticas”, analisou. 

Experiências agroecológicas constroem alternativas
aos impactos das injustiças climáticas. — Foto: Rede Agroecológica Raízes da Mata.
Experiências agroecológicas constroem alternativas
aos impactos das injustiças climáticas

Transição ecossocial

A emergência climática é provocada principalmente pelo uso intensivo de combustíveis fósseis à base de carbono, como petróleo, carvão e gás. Quando queimados para gerar energia, em atividades industriais, na agropecuária e em outros usos, eles liberam poluentes responsáveis por 80% das emissões de gases do efeito estufa. Isso leva ao aquecimento global, provocando impactos ambientais, sociais e econômicos significativos a todo ambiente terrestre. 

Frente ao agravamento do problema ambiental, o documento final da 28ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP 28, realizada em Dubai, nos Emirados Árabes, reconheceu, pela primeira vez, a necessidade de o mundo fazer a transição energética dessa matriz poluente para uma baseada em fontes renováveis, com baixa ou zero emissões de carbono, para diminuir e deter o aquecimento do planeta. O encontro tentou, mais uma vez, buscar o consenso para evitar que o aquecimento global ultrapasse um aumento de 1,5°C até o final do século. 

Ativistas do Pacto Ecossocial e Intercultural do Sul, integrado por pesquisadores como Breno, além de agricultores e organizações da América Latina, defendem que, apesar da gravidade do problema, não interessa fazer uma transição qualquer, e sim uma transição fundada no saber das comunidades e no respeito à vida e às práticas tradicionais dos povos originários, o que não vem ocorrendo até agora. 

O Pacto foi formado no início de 2020 com o objetivo de se contrapor à agenda climática e aos acordos ditados pelos países do Norte. A plataforma busca promover, ampliar e sistematizar diversas experiências locais ligadas a temas como controle comunitário, autonomias territoriais, soberania alimentar, agroecologia, energia comunitária e ecofeminismos, oferecendo uma alternativa às propostas de transições e Pactos Verdes que surgiram nos últimos anos.

O coletivo entende que os discursos e programas de “transição” propostos são baseados em estratégias corporativistas, tecnocráticas, neocoloniais e até extrativistas que não postulam a transformação estrutural. Radis acompanhou uma reunião de integrantes do coletivo durante o 12o CBA e conversou com alguns ativistas após o encerramento. 

Para Maristella Svampa, pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), da Argentina, e uma das referências da ecologia política latino-americana, as injustiças ambientais às quais estão submetidos os povos do Sul devem ser levadas em conta na construção do modelo de transição. Segundo ela, os super-ricos, que são 1% da população global, emitem dióxido de carbono equivalente a 66% da população mundial.

“Não é só uma questão de emissão [de gases] Norte-Sul, mas também de desigualdade e classe social quando pensamos na transição ecossocial. Se não resolvermos o problema de injustiça climática, é impossível ter um horizonte de transição ecossocial que seja integrado e holístico para os povos do Sul”, salientou à Radis. A desigualdade e o racismo ambiental é que fazem com que crianças, idosos e as pessoas que moram em áreas vulnerabilizadas e marginalizadas, particularmente negras, sejam as mais afetadas pelas mudanças climáticas, como revelou estudo realizado pelo Instituto Iyaleta – Pesquisa, Ciências e Humanidades. 

Para Maristella, a economia verde é uma narrativa das sociedades capitalistas tecnocráticas que não questiona o modelo de desenvolvimento ou a ideologia do crescimento econômico. Ela disse à reportagem que é preciso mudar “os perfis metabólicos de nossa sociedade”. “Não só de extração e produção, mas de consumo e circulação. Sem isso, é impossível achar uma saída e fazer uma transição curta. O atual modelo é insustentável porque implica na mercantilização da natureza e na exacerbação da exploração de seus recursos naturais”, salientou. 

O que é justiça climática?

Ativistas e especialistas têm falado no conceito de justiça climática para se referir aos impactos desiguais do aquecimento global e das mudanças climáticas em diferentes populações. Em geral, pessoas mais pobres, pretas e indígenas sofrem mais os efeitos de fenômenos como aumento das temperaturas, secas e inundações. Segundo os especialistas, a desigualdade está na raiz da crise do clima e é necessário fazer uma transição energética que promova a justiça climática.

Capitalismo verde

Maristella observou que os países do Norte impõem uma visão dominante da “transição limpa”, que não muda o sistema de relações sociais e o modelo energético ao substituir a matriz de combustíveis fósseis por uma suposta matriz de energia renovável. A pesquisadora lembrou que esses países se apropriaram de recursos necessários para fazer a transição verde até para se reposicionarem politicamente. “É uma transição produtiva e neocolonial que implica que nosso território vai se converter novamente em área de sacrifício e de descarbonização. Só interessa ao Norte, sacrifica o território do Sul e não é sustentável”, disse. 

Maristella exemplificou que é ineficaz transformar automóveis à combustão em veículos elétricos sem mudar o sistema de transporte. “Se a medida vai quintuplicar a frota não haverá lítio ou minerais para fazer a transição. Temos de pensar nesses pontos se quisermos fazer uma transição energética justa e popular”, observou.

Carros elétricos utilizam baterias de lítio e a exploração desse mineral causa danos ambientais e coloca comunidades locais em risco. A América Latina tem cerca de 60% das reservas mundiais e, no Brasil, a extração está concentrada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. De acordo com o Movimento pela Soberania na Mineração (MAM), cada tonelada de lítio requer cerca de 2,1 milhões de litros de água, gerando a sobrecarga de ecossistemas locais. Esse total permite produzir baterias para apenas 80 carros. 

“O capitalismo verde chega com falsas soluções que não se endereçam à raiz da crise climática que a gente enfrenta, que é parte de uma crise ecológica mais ampla”, disse Sabrina Fernandes, integrante do Pacto Ecossocial. Para ela, a agroecologia é o caminho para se fazer a transição por ter uma pauta transversal e possibilitar o entendimento de questões como o papel dos fertilizantes e do desmatamento na crise climática ao mesmo tempo em que produz experiências geradas nos territórios. “São alternativas de soberania alimentar, orgânicas e comunitárias que ajudam a juntar as pessoas em outras formas de economia e que permitem que a gente construa afetos em uma possibilidade de um mundo realmente diferente”, afirmou.

Agroecologia é o caminho

Na visão de Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisador do clima, a agroecologia pode revolucionar o sistema alimentar global, garantir a erradicação da fome e reverter parte da perda de carbono do ecossistema. Segundo ele, muitas corporações falam em transição energética ao expandir o uso de energia renovável, mas não consideram questões socioambientais em relação aos impactos em ecossistemas ou comunidades. “Defendemos uma transição justa a partir das bases, das comunidades. Que elas sejam ouvidas e beneficiadas nesses processos e que sejam respeitados todos os condicionantes socioambientais a fim de minimizar os impactos”, salientou.   

O pesquisador lembrou que a produção de alimentos é a segunda maior fonte de emissões de carbono, perdendo apenas para a queima de combustíveis fósseis. “Leva ao desmatamento e envolve emissões muito elevadas de outros gases de efeito estufa, como o metano, especialmente a partir dos grandes rebanhos de ruminantes [gado], e do óxido nitroso, que é produto da decomposição de rejeitos, inclusive de fertilizantes sintéticos”, observou.

Narciso Barrera-Bassols, geógrafo e coordenador do Grupo de Trabalho (GT) Agroecologia e Política do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), avaliou também que a agroecologia pode resgatar a história de nossos povos. “Eles têm resguardado a diversidade. Reduzir a diversidade é reduzir a experiência humana e a não humana”, apontou à Radis. Segundo ele, a agroecologia tem papel fundamental para ampliar os modos e experiências de vida, “em um mundo que requer outros mundos como horizonte alternativo à crise que vivemos atualmente”. 

Pressão extrativista

Breno entende que a economia verde é parte do problema, já que esse modelo econômico surge a partir de um consenso capitalista que busca a legitimação social por meio da ideia da descarbonização e da mudança de matriz energética. “Claro que nós não somos contrários a mudar a matriz energética dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. Isso é importante, mas é insuficiente”, alertou. 

O pesquisador explicou que, se a matriz energética mesmo que supostamente limpa não mudar de mãos, haverá uma transição corporativa e uma matriz concentrada, antidemocrática e insustentável. “A transição energética para a economia verde aumenta a pressão extrativista no Brasil e na América Latina”, resumiu. Segundo ele, para que a China e boa parte da Europa tenham energia eólica, está sendo usado pau-de-Balsa, uma madeira mais leve e resistente, abundante na Amazônia. “Estamos devastando a Amazônia equatoriana para construir as pás dos aerogeradores da energia eólica. Toda a economia verde só agrava as desigualdades climáticas e os problemas nos territórios”, completou. 

Para Breno, é preciso pensar em alternativas de transição civilizatória que combinem saúde individual à saúde coletiva e do planeta. “Quando cuidamos dos territórios, das florestas e dos biomas, cuidamos também da nossa saúde. A gente não pode pensar simplesmente nessa lógica reativa e defensiva do cuidado individual”, ressaltou. “Hoje a principal forma de garantir a saúde e o futuro da humanidade é o cuidado com o planeta. Isso não vem com os créditos de carbono ou o capitalismo verde, mas com o fortalecimento das práticas e das alternativas concretas dos movimentos das comunidades que estão construindo isso no dia a dia”.

Mudanças climáticas

O que são?

As mudanças climáticas são transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima.

Riscos

  • Temperaturas mais altas e severas
  • Aumento da seca
  • Um oceano cada vez mais quente e maior
  • Perda de espécies
  • Mais riscos para a saúde
  • Pobreza e deslocamento migratório

Fonte: ONU

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