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O abraço de Dona Chica é como colo de vó. Quem chega vai se deixando ficar, no embalo da sua reza, pode até cochilar. Há quem chore de emoção, outros observam, contemplativos. Dona Chica, miudinha, orienta os presentes a formarem um corredor, em que todo mundo cuida de todo mundo. No final do túnel humano, lá está ela, calma, com um sorriso leve, feito uma ancestral encarnada.

Assim funciona o Corredor de Saúde, método que Dona Chica utiliza em hospitais e unidades de saúde de Sergipe e outros estados. “O Corredor de Saúde é para cuidar do cuidador. Se o médico cuida de você, alguém tem que cuidar dele”, conta. Apoiada por algumas facilitadoras, Dona Chica organiza o Corredor numa tarde abafada de julho, 17ª Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, na Tenda Simone Leite e Wanderley Gomes: a melodia suave da canção e o convite ao abraço são uma pausa em meio ao burburinho de vozes de um encontro como esse.

“Desde o tempo em que nasci/ Logo aprendi a lição/ Cuidar do outro é cuidar de mim/ Cuidar de mim é cuidar do outro”, diz a cantiga entoada por uma das facilitadoras, como se fosse o mergulho em outra dimensão. Uma senhora desmaia, de emoção ou calor: Dona Chica, tranquila, aproxima-se dela e aplica o que seria um passe. Pelo estalar de dedos e balbuciar dos lábios, logo se percebem as influências africanas e indígenas. Estamos diante de uma legítima benzedeira.

“Sou rezadeira. Chica parteira, Chica benzedeira, Chica curandeira”, afirma.
— Foto: Eduardo de Oliveira.
“Sou rezadeira. Chica parteira, Chica benzedeira, Chica curandeira”, afirma.
— Foto: Eduardo de Oliveira.

Depois de quase uma hora de atividade (em que o tempo parece passar de outra maneira), peço para conversar com Dona Chica. Ela aceita, de pronto. A primeira pergunta só podia ser sobre sua origem. “Meu filho, eu sou de um monte de lugar”, começa a responder, para em seguida fazer uma pausa brusca: “Já está gravando? Ave Maria!” 

Dali em diante, conhecemos a história da maranhense de 81 anos que reside em Cristinápolis, cidade de Sergipe próxima à divisa com a Bahia. “Eu nasci no Maranhão. Sou uma Ka’apor. Com a ditadura, eu me espalhei, fugida, corrida. Andei aqui na Bahia. Ajudei muita gente”, narra. Ela define parte de sua vida como uma tempestade — até que, levada pelos ventos, foi parar em Sergipe. Hoje é assentada da reforma agrária e atua no Movimento Popular de Saúde (MOPS) do estado de Sergipe.

“Sou rezadeira. Meu nome hoje é Chica. Chica parteira, Chica benzedeira, Chica curandeira. Chica Pereira das Neves Silva”. São muitas definições, nenhuma delas capaz de descrever em palavras a nobreza dos gestos, a firmeza da fala, a clareza de pensamento e a generosidade no olhar daquela que conta ter trazido ao mundo mais de 780 bebês. “Tive 23 filhos em Sergipe. São meus aqui da barriga. E sou mãe ‘adotada’ de 22”, completa.

“Sou rezadeira. Meu nome hoje é Chica. Chica parteira, Chica benzedeira, Chica curandeira. Chica Pereira das Neves Silva”

O dom da raiz

Dona Chica alia saberes tradicionais com as práticas em educação popular no SUS.
— Foto: Eduardo de Oliveira.
Dona Chica alia saberes tradicionais com as práticas em educação popular no SUS.
— Foto: Eduardo de Oliveira.

“De onde vem a sua sabedoria?”, pergunto. Dona Chica faz uma pausa para refletir. “Todos têm um dom. Independente de onde vem a raiz dele, que vai diferenciar um do outro”, responde, enquanto o vento parece balançar os brincos de penas amarelas. Ela mais uma vez reforça sua raiz indígena. “Eu sou uma Ka’apor. Eu vim com o meu dom: o dom da raiz”.

O registro de nascimento data dos anos 1960, mas Dona Chica conta que nasceu em 1942. Expulsa de sua região por conflitos territoriais, durante a ditadura civil-militar, ela percorreu o mundo. “Por causa da ditadura, eu vivi na rua. Vim morando, passei por muitos estados”, recorda. “Hoje eu falo porque não tenho mais medo, já estou velha. A ditadura não foi brincadeira. Existiam os coronéis que tomavam as nossas terras, a gente teve que sair da nossa casa”.

Se uma parte dos seus saberes vieram dos povos originários, como o conhecimento sobre as ervas, outra parcela é herança de África. “Minha mãe conheceu um africano que deu amparo a ela, não casaram, mas tiveram cinco filhos. Meu nome é Angorê Caxumucá”, cita a forma como é conhecida dentro das tradições Congo-Angola.

Por onde passa, Dona Chica leva seus galhinhos de ervas, suas folhas e sementes. “Lá na minha cidade, sou coordenadora das PICs [Práticas Integrativas e Complementares]. Sou educadora da saúde popular”, enumera mais uma de suas atribuições. Ela atua no SUS com conhecimentos tradicionais. “Trabalho com ervas medicinais. Todas as ervas são curadoras”, ressalta.

Participantes da 17ª CNS conhecem a experiência do Corredor da Saúde, na Tenda Simone Leite e Wanderley Gomes, voltada para iniciativas de arte e educação popular em saúde. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Participantes da 17ª CNS conhecem a experiência do Corredor da Saúde, na Tenda Simone Leite e Wanderley Gomes, voltada para iniciativas de arte e educação popular em saúde. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Mãos de parteira

Dona Chica não somente viu o SUS nascer, como pode ser considerada uma de suas parteiras. Ela integra o MOPS de Sergipe desde o tempo em que saúde ainda não era definida como direito de todos e dever do Estado, na Constituição Federal de 1988. “Desde 1978, a gente já estava brigando. Foi muito difícil. Primeiro, a gente começou com reuniões como essa aqui. Depois das reuniões, vieram os seminários. Hoje nós estamos na Conferência”, relembra.

Em Sergipe, ela testemunhou o embrião das lutas pelo direito à saúde, organizadas por camponeses e trabalhadores urbanos. “Aquele povo que vinha dos interiores para fazer a fila, receber remédio, passava mais de 24 horas esperando. Eu pedia água e comida para alimentar o povo”, narra. “Lá, a gente se uniu, eu era da rua e a juventude apoiava a gente”.

Dona Chica relembra o papel que teve Simone Leite, enfermeira formada pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), que ajudou a organizar os movimentos populares de saúde em Aracaju e no interior do estado. Falecida em 2021, aos 64 anos, Simone deu nome à tenda erguida durante a Conferência Nacional de Saúde para abrigar experiências de arte e educação popular em saúde — local onde Dona Chica organizou seu Corredor de Cuidado. 

Nada é por acaso. A benzedeira e a enfermeira eram companheiras de luta. “Ela era uma estudante muito inteligente. Tinha sonhos de mudanças na saúde. Ela juntou alguns amigos e eu juntei alguns da rua e começamos a trabalhar”, relembra.

Há décadas, Dona Chica exerce o ofício de parteira. “Fazia parto na rua, nas roças, nos interiores. O povo mandava me chamar, eu ia”, descreve. Também trabalha com fitoterapia e desenvolve estratégias de cuidado para profissionais de saúde. “Uma enfermeira cuida de uma ferida, dá banho, mas ela precisa também ser cuidada”.

Depois de cruzar o mundo, Dona Chica fincou raiz em Cristinápolis, que ela conta já ter se chamado “Chapada dos Índios”. Ali, ergueu o mastro com a bandeira branca da nação Angola e tornou-se guardiã de conhecimentos ancestrais. “Hoje eu tenho a minha casa, tenho os meus filhos, o meu terreiro, o meu mastro. Não pude ter na minha aldeia, mas hoje tenho na minha casa”.

Sobre um passado de perseguições ainda presente na memória, ela conta que já foi proibida de exercer o seu principal ofício, que era levar bênçãos às pessoas. “Antigamente, a gente não podia nem vestir uma saia comprida, porque eles rasgavam. Chamavam a gente de macumbeiro, feiticeiro, mandingueiro”. Agora, todo esse conhecimento está presente nas práticas que ela emprega na saúde. 

“Hoje aceitaram”, resume, antes de completar: “Você está vendo esse menino?”, aponta para um rapaz indígena. “Esse menino é indígena, ele tem a fé dele. A crença nos astros”. Sorri. “A fé é para todos. O astro é único. Deus é único”. Em seus olhos calmos, parece morar alguma coisa infinita que poderíamos chamar de paz.

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