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Eu sou mulher, eu sou guerreira, luto para resistir / Pra levantar nossa bandeira

“Alô, Caps Torquato Neto! Chegou a hooooora!”. Com essa sílaba em suspenso, o grito de guerra de Flávia Cris ressoou por toda a extensão da Avenida Pasteur no dia 4 de fevereiro. O fôlego é proporcional à emoção de cantar a música que compôs diante de uma multidão empolgada para mais um desfile do bloco Tá Pirando, Pirado, Pirou. Se é possível eleger, “eu acho que esse foi o ano mais marcante”, ressalta o musicoterapeuta e profissional de referência de Flávia, Diogo Tapler. “Primeira vez que ela canta em cima do trio elétrico”, relembra.

“Eu cantei no trio elétrico! Aí!”, diz Flávia, animada. “Todo mundo vibrando e eu não enxergava ninguém. Eu virava, não via ninguém, mas eu fiquei feliz”, brinca ela, que também é cega, sobre sua deficiência visual. “Sentia a energia! Eles gritando ‘Flávia! Flávia’, ‘Aplausos, aplausos pra Flávia’. Todo mundo cantando a minha e as outras músicas do Tá Pirando. Os outros usuários dos outros hospitais cantando. Foi ótimo!”

Flávia é compositora, cantora de mão cheia e usuária do Caps Torquato Neto, em Del Castilho, bairro da Zona Norte do Rio. Já foi trabalhadora doméstica e radialista. Além de música, escrevia poesia. Hoje é integrante do coral que Diogo coordena no Torquato Neto e é conhecida de outros carnavais, como os que venceu pelo Loucura Suburbana. Flavinha, como é gentilmente apelidada por Diogo, tem uma veia para o samba.

Antes mesmo de iniciar a entrevista, os dois ensaiavam despretensiosamente na sala do bloco no Instituto Municipal Philippe Pinel, em Botafogo. Logo mais, Flavinha sugeria uma mudança na forma de cantar uma nota da letra de “Mulher guerreira, levanta a bandeira para resistir”, que escreveram juntos e foi a campeã desse ano. “Ih, ficou incrível”, elogiou Diogo. 

Os blocos da saúde mental cumprem anualmente a tradição de realizar uma competição de sambas. Funciona assim, explica Paulo Amarante, psiquiatra, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Fiocruz) e autor do enredo vencedor de 2024: Com o tema escolhido — também democraticamente, com chamada pública, votação de júri e defesa da ideia por seus criadores — chega o momento de escolher a canção que vai embalar o desfile daquele ano. As composições precisam necessariamente mencionar o nome do bloco e seguir o tema. Assim, com uma reunião no casarão e casa de show RioScenarium, no Centro do Rio, todos os competidores se apresentam e são avaliados. Sai dali um vencedor — esse ano o “Loucas, divinas e maravilhosas: mulheres que mudaram o mundo” de Amarante — e o embalo para o cortejo que se aproxima.

Blocos da saúde mental carregam os lemas da luta antimanicomial ao garantir autonomia e respeito aos usuários. — Foto: Luíza Zauza.
Blocos da saúde mental carregam os lemas da luta antimanicomial ao garantir autonomia e respeito aos usuários. — Foto: Luíza Zauza.

Infinitos carnavais

Maria do Socorro, Rita Lee, Nise da Silveira, Dona Ivone Lara, Estamira, Jovelina, Lilith / Que mudaram o mundo, com a sua história

Na avenida, era possível se perder no mar de estandartes coloridos e ornamentados que homenageavam as mulheres dos versos de Diogo e Flávia. Um em especial honrava a memória de figuras cruciais para o bloco, fundadores que se foram durante a pandemia de covid-19. Os “encantados presentes”, como são celebrados na bandeira, são Tantinho da Mangueira, padrinho do bloco; Luís Carlos Pinto, artista e usuário dos serviços de saúde mental; Elizete Cardeal, parceira e familiar atuante, casada com um usuário do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o João Batista, conhecido como Palhaço Pirulito; e Gilson Secundino, artista que se tratava no Pinel e foi o responsável por uma das emblemáticas e míticas histórias de origem do bloco.

“Foi [Secundino] quem disse: ‘Se é para fazer carnaval, não vamos fazer só para quem já pirou e está internado, vamos para rua brincar com quem ainda está pirando. Nós que aqui estamos, por vós esperamos. Tá todo mundo junto; tá pirando, pirado, pirou!”, conta Alexandre Wanderley, psicanalista, cofundador e coordenador do Coletivo Carnavalesco e Ponto de Cultura Tá Pirando, Pirado, Pirou! Folia, Arte e Cidadania. “Esse é o nome completo e formal”, brinca. 

Alexandre faz questão de sublinhar o aspecto coletivo presente no nome. “Essa ideia, inclusive, tomamos de empréstimo da psicoterapia institucional francesa de Jean Oury. Ela diz que o coletivo é um dispositivo simbólico capaz de acolher imediatamente o estranho que chega”, revela. Nascido em 2004, no rastro da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da segunda onda de revitalização do carnaval de rua carioca, o Tá Pirando, Pirado, Pirou!, na verdade, surge de um acaso. No pátio do Instituto Pinel, durante uma festa de carnaval dos internos, iniciou-se um cortejo espontâneo pelo ambulatório, enfermarias e setores do Instituto. 

Mas das pegadas desse improviso saiu uma gafe: “Fomos parar em frente à unidade de tratamento alcoolista. Só depois que nos demos conta que ficamos parados ali cantando “Se você pensa que cachaça é água…””, descreve Alexandre. Desde essa primeira movimentação até o primeiro desfile na Rua Lauro Muller — “uma ruazinha apertada, fomos com um carro dos sindicalistas da Petrobras. Botamos uma caixa de som no porta-malas, uma coisa bem despretensiosa” — e a tomada definitiva da Avenida Pasteur, vinte anos se passaram. Nesse meio tempo, o Tá Pirando forjou parcerias institucionais, ganhou a simpatia dos moradores do entorno do Pinel e se tornou um marco do carnaval da cidade.

“É a essência do nosso trabalho: fazer frente à exclusão violenta e histórica da Psiquiatria e ocupar a cidade e os territórios”, sustenta Alexandre. Inclusive, em 2023, o bloco foi convidado a integrar a Sebastiana, principal liga de blocos de rua do Centro e da Zona Sul do Rio de Janeiro. Uma chancela importante e honrosa, afirma o psicanalista, já que apenas 13 dos blocos mais tradicionais da região fazem parte, como Monobloco, Sovaco do Cristo, Simpatia É Quase Amor e Bloco do Barbas. “Conseguimos extrapolar o campo da saúde mental e fazer parte dessa agenda carioca”, enfatiza. Antes de qualquer reconhecimento externo, porém, segundo Alexandre, Gilson Secundino ficaria muito feliz com essa notícia. 

Tá Pirando, Pirado, Pirou desfila pela Avenida Pasteur até o pé do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. — Foto: Luíza Zauza.
Tá Pirando, Pirado, Pirou desfila pela Avenida Pasteur até o pé do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. — Foto: Luíza Zauza.

Projeto de vida e cidade

Tá pirando, tá pirado, pirou ô ô ô ô / Samba na ponta do pé é é é é

Guiando uma imensidão de pessoas até o pé do Pão de Açúcar — “a nossa Apoteose”, caracteriza Alexandre —, onde, dali, seguem até as areias da Praia Vermelha, o Tá Pirando cria um percurso político e simbólico. Na Avenida Pasteur, onde hoje reside o campus da Praia Vermelha da UFRJ, em 1852, Dom Pedro II fundou o primeiro hospício do Brasil. “Fazermos um trajeto que parte dali e vai para o mar traz essa imagem de liberdade”, afirma o psicanalista. 

Para sair do status de Hospício Pedro II e se chamar Instituto Phillipe Pinel, foram e são necessárias iniciativas como as do Tá Pirando, que não se resumem às comemorações de fevereiro, mas sustentam um trabalho contínuo ao longo do ano. Em 18 de maio, o Movimento da Luta Antimanicomial ressalta a luta pelos direitos das pessoas com sofrimento mental, no Dia Nacional da Luta Antimanicomial (leia box). 

As oficinas de Composição Musical e Registro fonográfico, de Artes Plásticas, e de Percussão, além das rodas de samba mensais realizadas no Caps Franco Basaglia, em Botafogo, fazem parte desse projeto ampliado do bloco que, inclusive, também garante remuneração e gera renda para músicos, intérpretes, oficineiros e colaboradores, sejam usuários ou não. 

“Como disse Franco Basaglia, presente no panteão dos grandes que transformaram a assistência psiquiátrica em Saúde Mental, é preciso colocar entre parênteses o diagnóstico”, diz Alexandre. “Retirar as lentes da psicopatologia para olhar aquela pessoa”. E não faltam retornos e depoimentos que mostram que essa é a atuação padrão nos Caps e projetos da rede de saúde mental de hoje, como o Tá Pirando, Loucura Suburbana e muitos outros. Só Alexandre enumera uns quatro, como a de Enéas Elpídio, violinista e coordenador da oficina de composição, que um dia disse “Eles não me veem como usuário, eu sou uma pessoa”; e a de André Poesia, intérprete do bloco que, sempre ao final do desfile, pergunta “Mas esse bloco não vai acabar, não, né?”. 

Já Flávia Cristina faz questão de repetir que, quando chegava o carnaval no Instituto Nise da Silveira, onde ela mesma passou algum tempo de sua vida, “[os usuários] ficavam muito felizes, pulando, sem nenhuma violência. Todo mundo brincava, se divertia, era muito bom”. À essa fala de Flávia, Diogo Tapler acrescenta: “Carnaval é um remédio, né?”.

Para Paulo Amarante, os resultados dessas ações integradas com arte e cultura vão além dos efeitos terapêuticos. “Basaglia disse: nem arte como terapia, nem como entretenimento. Mas como reinvenção de vida, como outra forma de pensar e reconstruir o sujeito”, considera. 

Alexandre aponta um caminho parecido. “Embora nosso projeto não tenha propriamente a intenção de ter um efeito terapêutico, como é, por exemplo, um tratamento mais stricto sensu, psicofarmacológico e psicoterápico, nosso trabalho é de intervenção na cultura. É de modificar o imaginário social sobre a loucura, de cortar certas representações estigmatizantes e estereotipadas que veem o louco como uma figura perigosa ou [alguém] que não cria, com quem não se pode conviver, que não produz”, avalia. 

Ao chegar perto da concentração do Tá Pirando naquele domingo do dia 4 de fevereiro, via-se na prática o motivo de tantos relatos apaixonados e de tanta energia e luta dispendidas para fazer essa festa acontecer. Essas respostas estão nos detalhes que trazem vida, cor e legado ao bloco. Como na mensagem que Madame Bondão, escultura de isopor de dois metros criada pelo ilustrador oficial do bloco, Samy Chagas, carrega, “Nenhum passo atrás, Manicômio nunca mais”. Ou nos versos de um dos antigos sambas-enredo, “Na Avenida Pasteur, eu sou mais um, eu sou mais um cidadão”.

O Dia Nacional da Luta Antimanicomial é celebrado em 18 de maio como fruto das mobilizações e conquistas da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Aprovada em 2001 através da Lei 10.216, a reforma redirecionou o modelo de atenção à saúde mental para um que protege e defende os direitos e a liberdade das pessoas em tratamento psiquiátrico. O Movimento da Luta Antimanicomial, entretanto, começou a ser construído anos antes, no final da década de 70, em um momento de efervescência política: a campanha das Diretas Já, a criação do SUS na 8ª Conferência de Saúde, e o empenho coletivo dos profissionais da saúde mental em torno do II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental em dezembro de 1987 na cidade de Bauru (SP) – onde se formava o lema Por uma Sociedade Sem Manicômios e se firmava o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

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