Menu

Em tratamento para esquizofrenia há mais de 20 anos, Evani passou por seis internações psiquiátricas compulsórias que lhe deixaram marcas no corpo e na alma. Kleidson teve uma infância difícil, sofreu abusos e negligências, que mais tarde refletiram em seus relacionamentos e culminaram em seis anos vivendo pelas ruas. Vanete tinha onde morar. Mas em uma difícil decisão, teve que renunciar ao seu teto e passou uma década sem endereço fixo. Foi quando passou a ser usuária de álcool e drogas.

Três histórias que se revelaram em momentos distintos da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingos Sávio (5ª CNSM), realizada em Brasília, de 11 a 14 de dezembro de 2023, e que se encontram nas páginas de Radis. Três trajetórias de luta, cada qual a seu modo, que demonstram na prática a importância do cuidado em liberdade na saúde mental e o poder transformador de estratégias no Sistema Único de Saúde (SUS), como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), para a recuperação dessas e de tantas outras vidas.

Os três personagens reais dessa história marcaram presença na 5ª CNSM, deixaram seus recados junto aos mais de 2,2 mil participantes e traduzem de maneira inequívoca a importância dos principais objetivos da Conferência: o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e da política nacional de saúde mental.

Negligenciada desde 2016, a política de saúde mental praticamente se resumiu nesses últimos anos ao financiamento de instituições de isolamento e com viés religioso (evangélico), as chamadas comunidades terapêuticas (CT). Incentivadas especialmente pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que logo no primeiro ano de seu mandato elevou o orçamento destinado a essas entidades em quase 170%. Entre as críticas, as CT são tidas por defensores dos direitos humanos e integrantes da Reforma Psiquiátrica como “novos manicômios” (Radis 220).

Os métodos adotados nessas instituições têm sido frequentemente questionados e denunciados pela imprensa e movimentos sociais voltados à luta antimanicomial em relação a violações de direitos e até mesmo morte de internos. Não por acaso, foram justamente elas os principais alvos de protestos durante os quatro dias da 5ª CNSM, sob gritos de “Fora CT” entoados em diversas ocasiões. Vanete denuncia que essas instituições não têm nada a oferecer em suas internações: “A não ser aleluia e oração”, critica, em referência à falta de cuidado especializado nas unidades.

“Essas comunidades nem são comunitárias nem terapêuticas”, alertou a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) no discurso de relançamento da Frente Parlamentar Mista pela Reforma Psiquiátrica e Defesa da Luta Antimanicomial. Uma das primeiras privações impostas pelas CTs é justamente a da liberdade. Direito humano e requisito fundamental para o tratamento psíquico, como destacou a diretora do Departamento de Saúde Mental, Álcool e outros Drogas, Sônia Barros, em sua fala na primeira mesa da 5ª CNSM [Leia a entrevista clicando aqui].

Foi em busca dessa liberdade e de um tratamento humanizado, digno e eficaz que Evani, Kleidson e Vanete mudaram o rumo de suas jornadas. Mas até encontrarem com siglas poderosas — como o SUS, a Raps e o Caps — a vida dos três não foi nada fácil.

Evani e a redescoberta da liberdade

Evani posa com seu certificado de integrante da Academia de Ciências e Letras de Ouro Branco (MG) e um de seus livros de poesias: Louco é quem me diz. — Foto: Glauber Tiburtino.
Evani posa com seu certificado de integrante da Academia de Ciências e Letras de Ouro Branco (MG) e um de seus livros de poesias: Louco é quem me diz. — Foto: Glauber Tiburtino.

Evani Cristina Teixeira tem 45 anos, nasceu e cresceu em São João Evangelista, município no interior de Minas Gerais. Hoje usuária do Caps, ela conta que teve uma infância feliz, até seus 11 anos, ao lado dos pais e de seus 11 irmãos. Mais tarde, mudaria de endereço algumas vezes, passando por outras cidades de Minas e até mesmo trocando de estado: morou um tempo em São Paulo, mas diz não ter se adaptado e retornado ao berço mineiro.

Até 2001, por volta de seus 23 anos, residia em Ipatinga (MG), onde trabalhava como técnica em nutrição em um restaurante industrial, no Vale do Aço. Foi nessa época que recebeu o diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia — um transtorno que, de acordo com ela, também foi identificado em um tio e um de seus irmãos. O acompanhamento médico envolvia muitas medicações. Mais do que se pode contar nos dedos das mãos: “Uns 12 ou 13”, pelo que se recorda.

Evani conta que passou a ter dificuldades em se alimentar e a apresentar outros distúrbios e sofrimentos. Sem muitos esclarecimentos da família à época, logo viriam as internações em hospitais e clínicas psiquiátricas. Ela contabiliza seis, com duração aproximada de um mês cada, em três instituições diferentes. Todas particulares. E quase sempre com um roteiro parecido: “No início até era bom, mas depois ia piorando”, revela.

Conforme seus relatos e lembranças, as internações começaram naquele mesmo ano, em 2001, justamente quando foi promulgada a Lei no 10.216/2001, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Apesar da legislação, levou-se um tempo para que os manicômios fossem desativados e ainda hoje há hospitais psiquiátricos que atuam nos moldes dos antigos hospícios. Além, claro, das próprias comunidades terapêuticas e seus métodos controversos.

Foi durante essas internações que Evani percebeu o que mais sentia falta: a liberdade. Em uma das primeiras internações, descobriu que estava grávida. Em conversa com Radis, ela recorda um episódio marcante, em um momento de desespero, vivenciado no quinto mês de gestação. Certo dia, ao avistar um vitrô entreaberto, ela se aproveitou de uma distração dos médicos e enfermeiros que a desataram da cama em que era mantida presa, correu e se lançou do segundo andar do prédio pela fresta.

Evani levanta a barra de sua calça jeans e mostra a cicatriz dos pontos que recebeu no joelho direito, como uma marca do episódio. “Eu não pulei para me suicidar, eu queria a liberdade”, explica. “Eu queria fugir. Dormia amarrada, braço, perna, barriga, tudo amarrado”. Ela revela ainda que, apesar da queda, não perdeu seu bebê: “Ele estava chupando o dedinho no exame de ultrassom”.

Samuel Henrique nasceu após os 9 meses de gestação, mas faleceu duas horas após o nascimento, segundo Evani, devido a complicações por conta das fortes medicações que ela tomava. Hoje, Samuel vive em sua memória, no seu coração e em seus poemas, como fonte de inspiração.

Da tortura ao Caps

Foi no Caps que a vida de Evani mudou. Mas até chegar lá, ela vivenciou traumas em internações que ainda carrega consigo. À Radis, ela conta ter levado chineladas no rosto de uma faxineira, uma enfermeira e duas outras pacientes, em uma antiga clínica, hoje desativada, em Barbacena (MG). “Lembro que gritava por socorro, até que chegou uma enfermeira que era boa e mandou elas pararem com aquilo”.

“Porque eu queria chegar em algum lugar, queria chegar em um lugar que tivesse liberdade”

Evani Cristina Teixeira

Em outra situação, em que estava amarrada e deitada em um dos cantos do quarto, conseguiu arrastar a cama com o impulso do próprio corpo até a porta. “Porque eu queria chegar em algum lugar, queria chegar em um lugar que tivesse liberdade”, afirma.
Evani diz ter encontrado finalmente a tão sonhada liberdade no Caps de Ouro Branco (MG), cidade onde vive há mais de 20 anos. Após o tempo de sofrimento, foi levada a uma unidade do serviço de atenção à saúde mental do SUS por uma de suas irmãs – a quem chama de Dorinha. “Ela não sabia mais o que fazer comigo, porque eu já tinha saído da clínica e precisava ficar em algum lugar, porque ela trabalhava”. Evani passou a frequentar a unidade de sua cidade, onde se tornou um símbolo da luta antimanicomial. O envolvimento de familiares nos tratamentos é outro aspecto fundamental da Rede de Atenção Psicossocial e foi abordado durante as discussões da 5ª CNSM.

“No Caps, eu falei: ‘Meu sonho é escrever um livro’”, conta, recordando que uma terapeuta chamada Gisele se dispôs a ajudá-la nesse intuito. Foi ela que digitou as poesias ditadas por Evani e publicadas em seu primeiro livro. Evani passou a se expressar por meio da arte e não parou mais. Hoje é poetisa, escritora e compositora. Já escreveu e publicou de forma independente dez livros e, graças à sua produção literária, desde maio de 2022 ocupa a cadeira de número 21 da Academia de Ciências e Letras de Ouro Branco (Aclob). Tudo isso sendo assistida em liberdade.

Nas internações, ela lembra de que não tinha a seu dispor sequer uma folha para desenhar. Hoje, entende que a arte é a melhor forma de terapia. “Amo escrever, é a minha vida”. Do Caps, diz só ter memórias agradáveis e conta boas histórias: “Eu agradeço a todos de lá. Uma vez fiz um bolo desse tamanho assim (abrindo os braços) e uma torta de peito de frango e chamei todo mundo para tomar café lá em casa. Fiz um pudim de pão grandão, aí foram os psiquiatras, os psicólogos, as enfermeiras, todo mundo foi tomar café lá em casa, a kombi encheu”, relembra.

Evani orgulha-se de sua trajetória: “Já saí em outdoor, todo mundo na minha cidade me conhece”, diz, referindo-se a uma campanha em que foi fotografada, no Dia de Luta Antimanicomial (18/10), em Ouro Branco. Após tantas batalhas, ela diz que aprendeu a viver o presente. “A gente não pode deixar o sonho para depois, pois eles podem perder o sentido”, versa, já no fim da entrevista. E brinca: “Gostei disso, acho que vou escrever”.

Sujeitos capazes

Evani não se deixou resumir a uma condição médica e encontrou apoio para perseguir seus sonhos. Em conversa com Radis, Cristiane Stracke, médica psiquiatra e coordenadora da Atenção à Saúde Mental de Porto Alegre (RS), que também participou da 5ª CNSM, abordou esse tema da capacidade produtiva de pessoas em acompanhamento psiquiátrico em seu município.

A prefeitura da capital gaúcha mantém há 20 anos uma oficina de geração de renda intitulada Geração POA. Os oficineiros, como são chamados os frequentadores do espaço, desenvolvem atividades artísticas como parte do tratamento. “A ideia da iniciativa é tirar um pouco o estigma de que essas pessoas são improdutivas. Muito pelo contrário, a gente estimula essa produção e várias já saíram inclusive da nossa oficina e foram desenvolver suas habilidades e ter sua própria renda, com resultados excelentes”, afirma Cristiane, lembrando ainda que esse serviço integra as ações previstas na Raps.

A 5ª CNSM reservou um espaço para o funcionamento de uma Feira de Economia Solidária. No local, diversos usuários e equipes multidisciplinares de Caps de diversas partes do Brasil expuseram e comercializaram os trabalhos que realizam, desenvolvendo as mais diversas habilidades de artesanato. Desde a confecção de panos de prato, bolsas, pulseiras e camisas até a arte em pirografia, que consiste em uma técnica de desenho em madeira com uma ponta de metal aquecida, como a que é desenvolvida por usuários do Caps de Ji-Paraná, em Rondônia.

Kleidson, um sobrevivente

Kleidson superou o vício e tem grandes objetivos em mente: "Já sonhei muito, agora tenho metas para cumprir”.
— Foto: Glauber Tiburtino.
Kleidson superou o vício e tem grandes objetivos em mente: “Já sonhei muito, agora tenho metas para cumprir”.
— Foto: Glauber Tiburtino.

Kleidson de Oliveira Beserra mora em Sobradinho (DF) e integra o Movimento Nacional da População de Rua. Durante seis anos, ele viveu em situação de rua, após sair de casa muito cedo por causa de um abuso e se envolver com álcool e drogas. Diferente de Evani, ele não guarda boas lembranças da infância: “Não tive o direito de ser criança”.

Nascido em 1o de janeiro de 1978, foi o primeiro filho de sua mãe, que havia se mudado para o Distrito Federal para estudar. Kleidson foi levado para ser criado com o avô materno, no Maranhão. Quando tinha 8 anos, seu avô faleceu e ele voltou a ser cuidado pela mãe, mas a aproximação gerou problemas e traumas, por conta de alguns relacionamentos.

Foi a partir de uma denúncia negligenciada por sua mãe que Kleidson saiu de casa. “Quando falei para ela que meu padrasto estava com uma ‘sem-vergonhice’, ela não acreditou, levei uma surra, como muitas mães fazem, e depois entendi que isso é um comportamento padrão”, lamenta, em tom de alerta. Dali ele iria embora de casa, ainda criança, para se livrar dos abusos e viver uma vida de sobrevivências. No plural.

Kleidson conta que foi acolhido por parentes, mas logo passou a viver de casa em casa, “aprendendo a sobreviver desde pequeno”. Cresceu já familiarizado com a realidade das ruas e, na juventude, tornou-se usuário abusivo de álcool e drogas. A infância desestruturada rendeu-lhe também dificuldades em seus primeiros relacionamentos. “Trouxe para a vida adulta toda aquela carga de uma infância violenta e de violação de direitos”, descreve.
Visivelmente envergonhado, ele conta à Radis as suas inseguranças da época, tendo sido — em suas próprias palavras — “machista, preconceituoso e violento” com a ex-companheira, com quem teve seu primeiro relacionamento duradouro e uma filha, hoje com 23 anos, mas que não acompanhou o crescimento. “Perdi a mãe da minha filha e toda a minha rede de apoio”, narra. “As pessoas me hostilizavam por ser usuário de drogas, estar sem emprego, sempre caindo”. É quando diz que “deu a louca” e resolveu ir para Belo Horizonte, onde começou a viver em situação de rua. Bem longe de olhos conhecidos.

“Quando passei a viver na rua, não queria ficar aqui [no DF] para minha família não ver”, relembra. Até que se cansou do vício das drogas e buscou ajuda, antes do SUS, em uma comunidade terapêutica: a CT Leão de Judá, entre as cidades mineiras de Ipatinga e Coronel Fabriciano. “Passei 18 dias lá para nunca mais”.

Ele conta que passou a ser coagido a trabalhos forçados e depois foi levado para uma obra na casa do pastor, líder da comunidade. Em ambas as ocasiões, diz ter perguntado se haveria pagamento de diárias. Após receber respostas negativas, recusou-se a executar os serviços, entrando em rota de tensão com a liderança do local.

Kleidson conta que o pastor dizia que ele teria que permanecer internado por no mínimo nove meses e que ali “ninguém ficava à toa”. A situação piorava conforme também se recusava a participar dos cultos noturnos. Até que veio a fuga. “Quando eles deram um vacilo, consegui fugir. Depois disso, nunca mais confiei numa kombi de igreja”, afirma.

Um dia para viver

Antes de buscar ajuda na CT, Kleidson quase perdeu a vida por conta de uma dívida com um traficante. Conta que apanhou do bando e teve uma parte do dedo decepada, mas ainda assim conseguiu fugir a nado pelo ribeirão Arrudas, na região metropolitana de Belo Horizonte. Após escapar dos criminosos que o perseguiam, passou pela segunda vez por uma quase morte: tentou tirar a própria vida ao entrar na frente de um caminhão. O condutor conseguiu desviar e evitar o atropelamento, mas num misto de susto e indignação, desceu da boleia e o agrediu. Aquele não era um dia para morrer. “O caminhoneiro me deu uma surra com ripas de madeira e na hora pensei: nem pra morrer eu dou sorte”.

Pouco depois desses acontecimentos, Kleidson ouviu falar no Centro Especializado de Referência em Saúde Mental (Cersam), a estratégia de atenção psicossocial do município de Belo Horizonte. As consultas no Caps o sustentaram “sem remédio”, enfatiza. Conseguiu ficar 30 dias sem usar “a porcaria da pedra”, como se refere ao crack.

Foram então 30 dias vigiando carros na rua e juntando dinheiro. “Sem o uso do crack, com a oxigenação do cérebro, você volta a ter sonhos. Em três dias sem usar nada, o indivíduo já passa a querer trabalhar, passa a ter sonho e fica inquieto, ansioso”, descreve. Essa é a hora de ter cuidado. “Então o Caps me ajudou a controlar a ansiedade e consegui manter esses 30 dias”, diz.

Com o apoio psicológico e o auxílio recebido pela política de acolhimento do Caps, Kleidson conta que começou a se reerguer. Usou o dinheiro que havia acumulado para o pagamento de dívidas. Com o que recebeu por outros serviços, comprou uma moto e iniciou sua própria estratégia de recuperação: “Pensei, agora eu vou me mandar daqui, senão vou recair”. Equipou-se e passou a viajar sobre duas rodas.

Cruzou o Brasil do Sul ao Nordeste, até que decidiu voltar para Minas Gerais e no retorno acidentou-se passando por Sobradinho, onde mora até hoje. Durante a recuperação, recebeu uma oferta de emprego da pessoa que o socorreu na estrada. Enquanto aguardava melhora para poder aceitar a proposta, voltou a viver mais um tempo nas ruas, quando conheceu sua atual companheira, que morava na região. E encontrou naquela relação mais um motivo para recomeçar.

A vida após o Caps

Foi quando Kleidson chegou ao Caps do Guará, no DF, onde totalizou seis anos de acompanhamento. Ele conta que a estratégia de cuidado foi fundamental para a sua recuperação. “Na redução de danos, voltei a usar maconha para conseguir ficar longe do crack”, revela, abordando um dos temas presentes na 5ª CNSM.

No Caps, ele diz ter reaprendido a viver em sociedade. Falou também sobre a importância do cuidado com equipes multidisciplinares, profissionais capacitados e técnicas eficazes. O que não ocorre nas comunidades terapêuticas, onde normalmente os internos mais antigos acompanham os novos pacientes e o tratamento ofertado consiste basicamente em imposição religiosa. “As pessoas acabam levando para o lado místico, o que dificulta o cuidado desses indivíduos”, pontua.

Além de cuidar da saúde mental, ele ressalta que recebeu ajuda no Caps para concluir o ensino fundamental e médio, além de uma oportunidade de emprego. Integrado àquela rotina, Kleidson — que já estava acostumado a batalhar pela vida — viu-se também envolvido na luta por direitos sociais quando as políticas de desfinanciamento e desmonte da saúde mental foram implementadas nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, especialmente com a política antidrogas do então ministro das Cidades de Bolsonaro, Osmar Terra.

Hoje, ele é conselheiro de saúde no DF, integra a coordenação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), é vice-presidente do Coletivo de Luta Antimanicomial (CLAM), faz parte da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), dentre outros movimentos. Ele busca a oportunidade de cursar psicologia para, em suas palavras, retribuir um pouco do muito que fizeram por ele. “Eu assumi o controle da minha vida”, orgulha-se.

E a vida, recentemente, deu a ele um presente. Na madrugada daquele 13 de dezembro de 2023, horas antes de nossa entrevista, nascia a alguns quilômetros do Centro Internacional de Convenções do Brasil — onde ocorreu a 5ª CNSM — Kleidson Matheus, medindo 46 centímetros e pesando 2,405 quilos. Kleidson Oliveira virou pai novamente. De seu primeiro menino. E como ele mesmo disse à reportagem: “O primeiro que fui sujeito homem e acompanhei tudo de perto, até o nascimento”.

“Já sonhei muito, agora tenho metas para cumprir.”

Kleidson de Oliveira Beserra

Hoje, ele se arrepende dos rumos do passado, diz ter contato com a primeira filha, já adulta, mas vê também em seu caçula uma chance de recomeçar. Chance de poder ser pai. Antes de retornar à maternidade, Kleidson responde à pergunta sobre o que almeja para o futuro. “Quero ser presidente do Brasil. Se não, pelo menos governador do DF”, diz, sem hesitar. “Estou falando sério. Não é sonho, é uma meta. Já sonhei muito, agora tenho metas para cumprir”, conclui.

Sujeitos políticos

A maior parte dos protestos durante a 5ª CNSM se voltaram para o tema das comunidades terapêuticas. E mais especificamente, contra o financiamento público dessas instituições, que foram incluídas na estratégia de saúde pública para reabilitação de usuários de álcool e outras drogas no governo Dilma, em 2011, e foram incentivadas nos governos Temer e Bolsonaro. Agora, mesmo com o novo mandato de Lula, ainda há destinação de recursos para essas iniciativas, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, ressaltou à Radis que as reivindicações feitas na Conferência já vinham sendo abordadas pelo próprio Conselho e sinalizou a importância desse posicionamento. “Várias questões ligadas principalmente à contrariedade nossa, reafirmada por várias vezes em recomendações do Conselho, pelo fim do financiamento público das comunidades terapêuticas, a defesa do cuidado em liberdade, o fortalecimento cada vez maior da participação das pessoas usuárias e seus familiares, estiveram presentes nesta grande conferência nacional de saúde mental”, declarou.

Vanete: uma década nas ruas

Vanete cedeu seu teto à sua filha e, após viver em situação de rua, hoje luta por melhorias nos Caps, em Goiás.
— Foto: Glauber Tiburtino.
Vanete cedeu seu teto à sua filha e, após viver em situação de rua, hoje luta por melhorias nos Caps, em Goiás.
— Foto: Glauber Tiburtino.

Vanete Resende conheceu o vício em álcool e drogas quando passou a viver em situação de rua, por volta de seus 30 anos. Hoje, aos 55 anos, ela coordena a comissão dos usuários de saúde mental do Conselho Municipal de Saúde de Goiânia e preside a Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental em Goiás (Aussm-GO). Frequenta um Caps AD III (álcool e drogas, com funcionamento de 24 horas) e esteve na 5ª CNSM como delegada pelo segmento de usuários.

Nas ruas, ela viveu por uma década. Por mais incrível que pareça, o que a levou para lá foi um gesto altruísta, uma difícil decisão de uma mãe que não tinha escolha a não ser seguir o próprio coração. Ela tinha um teto, morava em um quarto na casa de sua mãe, mas cedeu o cômodo à filha quando o genro ficou desempregado e ambos ficaram desabrigados. Não vendo saída e sem condições de acolher a todos naquele cômodo, Vanete decidiu que sairia.

“Ela tinha uma criança pequena e dei meu quarto para eles morarem”, recorda. “Fui pra rua por amor à minha filha. Foi quando começou meu sofrimento”, relembra. “Tudo o que não presta, as pessoas te oferecem. É complicado viver em situação de rua. E lá eu viciei no álcool e na droga”.

Vanete conta que, se você “entra no poço” acompanhado, muitas vezes precisa sair dele sozinho: “Meu primeiro passo foi deixar o marido. Daí fui deixando também de beber e largando o vício. A primeira coisa foi me afastar de pessoas que me faziam mal”, conta. Depois disso, ao decidir de fato buscar ajuda, encontrou no Caps a acolhida que precisava para se levantar e passou a ser usuária do serviço desde 2017.

CAPS EM NÚMEROS

2.886
unidades de Caps estavam habilitadas para funcionamento no início de 2024

Pelo fortalecimento dos Caps

“O adicto não precisa só de medicação, mas de carinho e atenção. O Caps é a porta que nos faz sentir bem e voltar a ser ‘alguém’”, afirma. Vanete conta que passava os dias no Caps e ia embora à noite, quando a unidade fechava. No outro dia, estava lá novamente. “Lá eu dormia e descansava, mas aprendi muitas coisas boas, como a lutar pela saúde mental”. Hoje ela afirma que o Caps é “sua casa e sua família”.

Para Vanete, além de ofertar atividades terapêuticas e o cuidado aos assistidos, o Caps devolve a cidadania às pessoas. “O Caps me ensinou a ir ao teatro, a cuidar de outras pessoas com o mesmo problema que tive no passado, a lutar e resistir em voltar para a rua. Tem que lutar contra o vício todo dia. A gente vai lembrando do sofrimento lá atrás e recebe o apoio dos referentes do Caps [profissionais dedicados ao acompanhamento individual de pacientes]”, descreve.

Na 5ª CNSM, Vanete cobrou e defendeu mais apoio e investimento aos Caps com recursos que têm sido empregados em comunidades terapêuticas (assista ao vídeo publicado no Instagram de Radis @radisfiocruz). Na entrevista, ela relatou algumas dificuldades enfrentadas em sua cidade de origem, a capital goiana: “A maioria dos Caps lá em Goiânia são alugados. Só dois possuem sede própria”, disse, ressaltando o problema de incertezas quanto à localização e ao funcionamento da sede para os usuários.

“Ficamos quase um ano sem lanche num Caps de internação”, contou, referindo-se ao Caps AD III do Ipê, o qual frequenta, cobrando, por fim, a ampliação das unidades. “Em Goiás tem lugar que não tem Caps. Goiânia mesmo, na Região Norte, precisa de um”, defendeu.

Ainda em busca de um lar

Vanilson Torres, conselheiro nacional de saúde e liderança do MNPR, conversou com Radis e falou sobre ações necessárias para o cuidado em saúde mental de pessoas em situação de rua, como foi o caso de Vanete. Para ele, é preciso garantir políticas públicas estruturantes, como a expansão da Raps. “Trazer para o foco central a moradia digna como um direito, além de trabalho, emprego e renda e o cuidado em liberdade”, afirmou. “Para termos saúde mental garantida, inclusive em meio e no pós pandemia, precisamos que o artigo 6o da Constituição [dos direitos sociais] seja para todas, todos e todes. Que assegure os direitos lá escritos, mas ainda não foram garantidos”.

Atualmente, Vanete ainda sonha com seu lar. Nem mesmo o Minha Casa Minha Vida (MCMV), criado em 2009 e que já subsidiou 1,5 milhões de casas, além de ter financiado outras 5,8 milhões de unidades residenciais por meio do FGTS, foi capaz de contemplá-la. “Casa eu ainda não tenho, fiz inscrição no Minha Casa Minha Vida, mas nunca ganhei uma”, revela. “Moradia mesmo só está na promessa, até hoje. Todo ano eu renovo [a inscrição no programa], mas nunca me chamaram para me dar um cantinho para morar”, desabafa.

O MCMV foi retomado pelo governo federal em fevereiro de 2023, com a meta de entregar mais 2 milhões de moradias até 2026. Embora não tenha ainda um lar para chamar de seu, Vanete hoje tem abrigo. Ela mora provisoriamente em um alojamento do Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Único de Saúde de Goiás (Sindsaúde-GO). “Eles queriam me levar para um assentamento, mas me abrigaram lá”. Desse abrigo, espera só sair para sua própria casa, quando finalmente conseguir ser contemplada pela política pública de habitação.

Saiba o que é a Raps (Rede de Atenção Psicossocial)

A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) é constituída por um conjunto articulado de diferentes pontos de atenção à saúde, com a proposta de acolher pessoas com sofrimento psíquico e necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. A assistência em saúde mental no Brasil envolve municípios, estados e governo federal. No Ministério da Saúde, a gestão cabe ao Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (Desmad), vinculado à Secretaria da Atenção Especializada. As ações intersetoriais buscam garantir a integralidade do cuidado.

Além dos Caps, as Unidades Básicas de Saúde da Estratégia de Saúde da Família e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) são as principais portas de entradas desses usuários no sistema de atenção psicossocial. A Raps abrange ainda Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Programa de Volta para Casa (PVC), Centro de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento (UA). Está integrada ainda a serviços de atendimento, como hospitais gerais e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Saiba mais em: https://bit.ly/saudementalraps.


Saiba mais

Após 13 anos de espera, Fernando Pigatto, presidente do CNS, resumiu o sentimento de finalmente voltar a realizar uma conferência nacional de saúde mental: “Esta foi uma conquista do povo brasileiro”. Confira a cobertura completa sobre a 5ª CNSM clicando aqui.

Os deputados federais Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) estiveram na 5ª CNSM para o relançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. — Foto: Glauber Tiburtino.
Os deputados federais Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) estiveram na 5ª CNSM para o relançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. — Foto: Glauber Tiburtino.

As pessoas reagiram a este conteúdo
Comentários para: Cuidado sem amarras

Escreva uma resposta

Seu endereço de e-mail não será divulgado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis