Você já deve ter ouvido falar que o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome. Entre 2022 e 2024, o número registrado de pessoas que sofreram com a subnutrição foi menor que 2,5% da população do país, segundo o relatório “Estado de Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2025 (Sofi 2025)”, divulgado em julho de 2025. Os dados sobre insegurança alimentar grave também revelam cenário positivo: houve redução de 6,6% entre 2021 e 2023 para 3,4% no último triênio.
“São quase 7 milhões de pessoas que deixaram essa situação”, informa Jorge Meza, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil, no artigo que escreveu para o jornal O Estado de S. Paulo (4/8/25). Jorge atribui a recuperação do país no combate à fome a três fatores: vontade política, participação social e coordenação entre esferas de governo.
Você também já deve ter escutado que a alimentação é um dos principais pilares da saúde. “Os alimentos são a maior e melhor fonte de nutrientes essenciais para o bom funcionamento do corpo e, consequentemente, contribuem para uma maior qualidade de vida e bem-estar”, orienta o Ministério da Saúde no “Guia alimentar para a população brasileira”, lançado há mais de 10 anos.
No documento, a orientação é clara: comida de qualidade é a base para a prevenção de doenças como hipertensão arterial, diabetes, obesidade e câncer, assim como traz benefícios que vão além da saúde. O guia reforça que compartilhar um bom prato de comida cria vínculos entre as pessoas, reforça culturas tradicionais e protege o meio ambiente.
Neste contexto de combate à insegurança alimentar, uma iniciativa que certamente contribui para que o Brasil possa garantir que sua população tenha acesso regular a alimentos suficientes para uma vida saudável é a articulação promovida pelas cozinhas solidárias. Essas experiências tiveram origem no seio dos movimentos sociais e hoje são reconhecidas como uma tecnologia social que traz amplas contribuições para o campo da saúde.
Em setembro de 2025, representantes de cozinhas solidárias, entidades gestoras e parceiros se reuniram na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), no Rio de Janeiro, onde aconteceu o 2º Encontro Nacional do Programa Cozinha Solidária (PCS). A ideia era avaliar a execução do programa, construir coletivamente uma proposta de formação para o setor e fortalecer redes de cooperação — entre as diferentes experiências territoriais, com iniciativas e instituições, e com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Mas que ensinamentos podem trazer as cozinhas solidárias para o campo da saúde? De que modo estas iniciativas populares, responsáveis pela construção de um programa de distribuição solidária de alimentos, podem contribuir para a construção de um país mais saudável e justo? Com estas questões em pauta, Radis participou do encontro na EPSJV e visitou uma experiência na capital carioca na busca de compreender como esta tecnologia social pode ajudar a melhorar a saúde da população brasileira.

“A gente quer saída (para qualquer parte)”
Mas o que são as cozinhas solidárias? Nascidas por iniciativa da sociedade civil — e potencializadas no contexto da pandemia de covid-19 —, as cozinhas solidárias são reconhecidas como uma importante tecnologia social de combate à fome e à insegurança alimentar e nutricional. Elas foram organizadas por pessoas, comunidades, coletivos e instituições, em diferentes lugares do país, que passaram a produzir e oferecer refeições gratuitas a pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica e insegurança alimentar, incluindo a população em situação de rua.
Grande parte das cozinhas nasceu e permanece funcionando de forma voluntária, com a mobilização direta da comunidade. Os recursos vêm de doações individuais e institucionais. Desde 2023, com a criação do Programa Cozinha Solidária (PCS), algumas delas passaram a contar também com apoio governamental complementar para ampliar a produção e a oferta de refeições.
Cada cozinha solidária possui gestão própria e costuma desenvolver, além da alimentação, atividades de interesse coletivo, como oficinas de capacitação, ações de educação alimentar e nutricional, entre outras. Localizadas em territórios vulnerabilizados, funcionam em pontos estratégicos para garantir acesso à comida a quem mais precisa, informa o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), responsável pelo programa e que organizou o encontro em parceria com a Fiocruz.
E a saúde? De que modo se beneficia desta tecnologia? Coordenador da Agenda de Saúde e Agroecologia da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, André Burigo, o Deco, contextualiza: Em primeiro lugar, as cozinhas solidárias trazem a luta pelo direito à alimentação adequada (e contra a fome) para o centro das instituições de saúde e do SUS. Ao colocar a fome em discussão, as cozinhas contribuem com a promoção da saúde, na medida em que viabilizam a garantia de um direito fundamental para aqueles que estão em situação de vulnerabilidade, diz à Radis.
Deco lembra ainda que, por serem iniciativas protagonizadas pelos movimentos sociais (que não perderam o protagonismo, mesmo após gerarem uma política pública), as cozinhas valorizam a diversidade e a experiência dos territórios — e, nesta medida, fortalecem o SUS. “O sistema público de saúde precisa de inspirações para poder se oxigenar e se reinventar com políticas que partam do território”, diz o pesquisador.

“O movimento nasceu muito em função da luta dos movimentos sociais. Eu diria que é uma das poucas políticas públicas no Brasil desde a Constituição de 1988 que surge a partir de um processo de mobilização social”, reforça Humberto Palmeira (Beto), coordenador do Movimento de Pequenos Agricultores (MAP), que está à frente da Raízes, cozinha solidária que semanalmente distribui 300 refeições a moradores de comunidades na região central do Rio de Janeiro.
Na entrevista que concedeu à Radis [Leia clicando aqui], ele classifica a cozinha como porta de entrada para o processo de mobilização social. “A cozinha não é só o alimento”, diz. A metáfora utilizada pelo gestor da Raízes é compartilhada por Deco, que também se refere às tecnologias sociais como portas de entrada para o acesso a outras políticas públicas. “É onde chegam as mães querendo educação para os filhos, pedindo remédio, onde a articulação acontece. As cozinhas solidárias são importantes para a gente trabalhar um conjunto de questões, como por exemplo aumentar a taxa de vacinação”, advoga.

“A gente quer a vida (como a vida quer)”
“A cozinha solidária é um motor”, acrescenta Vítor Lourenço. Coordenador do Fórum de Cozinhas Solidárias do Rio de Janeiro, que reúne 382 cozinhas solidárias no estado, ele reforça que é uma iniciativa de combate à fome, mas também promove saúde, direitos humanos e cidadania nos territórios. “Ela promove soberania alimentar”, afirma. “Não é só o prato de alimento para matar a fome, é um prato com alimento saudável, de qualidade, que promove a saúde das pessoas atendidas. É também um processo de cidadania, porque leva às pessoas o debate social sobre a fome, sobre a emergência climática, sobre a democracia”, diz o ativista à Radis.
Vítor explica que a cozinha solidária é uma tecnologia social ancestral. Existe nos quilombos, nos terreiros, nas igrejas, nos movimentos sociais, em organizações não governamentais; é também mundial, já que pode ser encontrada em diferentes países com nomes e formatos diversos, explica. Para ele, é mais que um ponto de distribuição de alimentos. “É um polo territorial de combate à fome e à desigualdade”.
Neste sentido, ele pondera que comer (e não comer) são atos políticos. “Quando a gente reúne nossa família e come, construímos processos políticos. Infelizmente parte da sociedade brasileira ainda está em um processo de insegurança alimentar. Então, não comer também é um ato político”, diz, argumentando que não são as pessoas que escolhem passar fome, mas sim “o capitalismo” que decide que elas não terão acesso à alimentação.
Neste sentido, ele enxerga o encontro nas cozinhas, por meio do alimento, como ato político. Um encontro que constrói oportunidades. “As cozinhas são espaços de cidadania, promovem a emancipação das pessoas e o desenvolvimento territorial”, defende, lembrando que são espaços de debate, de encontro, de construção e de formação. Muitas cozinhas hoje têm processos formativos de inclusão, de inserção no mercado de trabalho, de aprendizado sobre economia solidária e de formação tecnológica para jovens, explica o coordenador do fórum.
A fala de Vitor dialoga com a “ousadia criativa” sugerida por Deco, ao ser provocado pela Radis se haveria possibilidade de se estabelecer um elo entre a atuação dos profissionais das cozinhas solidárias com aqueles que atuam na atenção primária em saúde. “Numa livre associação, podemos tanto pensar em quem trabalha nas cozinhas como agentes comunitários de saúde — já que estão nas comunidades, trabalhando — assim como podemos imaginar a criação de agentes comunitários de alimentação, da cultura e da economia solidária. Acho que esse é um desafio que está à altura da conjuntura de hoje”, argumenta.

“A gente quer prazer (pra aliviar a dor)”
Além de espaços de alimentação, acolhimento e mobilização para outras conquistas sociais, as cozinhas também são lugares que resgatam as tradições sociais e culturais, como mostra Mãe Flávia Pinto. À frente do terreiro de Umbanda Casa do Perdão, em Seropédica, município da Baixada Fluminense, ela explica que a cozinha Vovó Joana de Angola, que mensalmente distribui cerca de 500 refeições, confirma que o compartilhamento de comida está na gênese dos terreiros: “O combate à fome é uma tecnologia ancestral que os terreiros desenvolveram como uma forma de sobrevivência a tudo aquilo que foi condenado ao povo preto, ao povo indígena neste país, que é a expropriação da sua terra. E ao expropriar a terra, retiraram de nós a segurança alimentar”, diz a matriarca.
Ela conta à Radis que o trabalho que realiza hoje descende de uma longa tradição de outras mulheres que, historicamente, se dedicaram a sanar os efeitos da fome. “Eu sou apenas mais uma”, ressalva, referindo-se a outras mulheres, como Mãe Beata de Iemanjá e Olga de Alaqueto, que já contribuíam com o processo de segurança alimentar, fosse por meio de rezas e rituais, fosse partilhando alimentos com a comunidade.
A prática solidária também resgata, segundo Mãe Flávia, a tradição das religiões de matriz africana de preservação do meio ambiente — na medida em que se preocupam com o compartilhamento de recursos e o não desperdício de alimentos — e a acolhida de todos. “Os terreiros preservam a tradição de dar comida para todos e todas, sem discriminar se é homoafetivo, se é preto, se é branco, se é homem, se é mulher. Quem chegar, sempre vai comer dentro de um terreiro”.

“A gente quer inteiro (e não pela metade)”
Como tecnologias sociais que tiveram sua origem nos movimentos da sociedade, e muito recentemente transformadas em políticas públicas, as cozinhas solidárias ainda enfrentam desafios, sinalizaram os participantes do encontro no Rio de Janeiro. Para além do reconhecimento oficial como política pública ou da capacidade de atuar em situações extremas — como a pandemia de covid-19 e as enchentes recentes no Rio Grande do Sul —, a reunião de experiências de todo o país expôs algumas necessidades comuns, como a demanda por qualificação profissional e a remoção de entraves burocráticos que impedem a inclusão de mais cozinhas no PCS.
Na escuta promovida às cozinhas e às instituições, também apareceram reivindicações relacionadas à necessidade de estruturação dessas iniciativas, ao aumento do investimento destinado ao Cozinha Solidária, a uma maior articulação com outras políticas públicas, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Nesse contexto, aparece a reivindicação pelo reconhecimento do trabalho realizado nas cozinhas como uma ação de cuidado.
“O trabalho que você faz nas cozinhas solidárias, para garantir a vida das pessoas, é um trabalho de cuidado”, argumenta Lurdes Santini, integrante do Movimento Brasil Popular (MBP) em Porto Alegre. Colaboradora de várias experiências no Rio Grande do Sul, ela chama atenção, em primeiro lugar, para o fato de que o trabalho “relevante e necessário” realizado nas cozinhas é, em sua grande maioria, realizado por mulheres. Em segundo lugar, este trabalho, delegado em sua maioria às mulheres, não é reconhecido, pontua.
“Ele não é reconhecido porque não se paga por ele. Ele não é valorizado do ponto de vista de ser um trabalho remunerado”, aponta Lurdes, lembrando que estas mulheres não fazem somente comida, mas atendem pessoas. “Elas ouvem demandas de outras mulheres que sofrem violências, que têm filhos com deficiências graves; acolhem pessoas que estão abandonadas no mundo, que estão na rua”, enumera, argumentando que este trabalho deve ser remunerado.
A ativista considera que as cozinhas solidárias representam, além da porta de entrada para uma série de outros cuidados que vão além da alimentação, “uma possibilidade de reconectar as pessoas com o direito, com a esperança de viver, de lutar pela vida”. “As cozinhas fazem mais do que comida. Cuidam da vida das pessoas”, diz.
Educadora popular, Lurdes conta que participa do encontro com o intuito de contribuir com o processo de sistematização de um plano piloto de formação, no âmbito do MDS. Segundo ela, a ideia é oferecer capacitação em todas as áreas, da gestão ao reconhecimento profissional das pessoas que atuam nas cozinhas, sem deixar de lado um programa de formação política. O plano, diz, está em análise e deve ser implementado em primeiro lugar no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Pernambuco, quando será avaliado sobre a viabilidade de ser replicado em outros estados. A expectativa é que esteja concluído em dezembro de 2025.
Você tem fome de quê?
O trabalho realizado por Lenina Aragão, no Pará, ilustra o cuidado com protagonismo feminino. Ela coordena a equipe da cozinha “Mão de Mulheres”, em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, e colabora com uma rede da qual participam outras 14 cozinhas, também localizadas no Maranhão, que integram o Movimento Camponês Popular. “Eu faço um pouquinho de tudo! Não tem como a gente exercer uma função só dentro da cozinha, né?”, brinca Lenina, que divide o tempo ainda como estudante de Pedagogia.
Ela explica que a cozinha se organiza de acordo com as demandas da comunidade. Como exemplo, cita as rodas de conversa promovidas pela “Mãos de mulheres”, em que esclarecem dúvidas sobre programas do SUS e abordam assuntos relacionados à saúde, como dignidade menstrual. “As mulheres não conseguem acessar todos os programas, seja por falta de documento ou de informação”, conta.
“A cozinha vai além do fornecimento da refeição. Com as rodas de conversa, conseguimos estar mais próximas das mulheres assistidas, discutir estes temas e dar alguma formação para elas”, explica. Ela esclarece que o acolhimento dado às mulheres (e reconhece que a realidade experimentada de cuidado é majoritariamente feminina) não se refere apenas à dimensão solidária, mas também de auxílio ao enfrentamento de problemas, muitas vezes silenciados.
O trabalho é complexo, assinala. “A gente atende cinco bairros de Ananindeua, em um total de 250 pessoas”. Para dar conta do recado, a “Mão de mulheres” conta com o trabalho de 10 voluntárias, das quais cinco são fixas — trabalham todos os dias na cozinha. Nenhuma delas recebe qualquer remuneração para isso. Lenina reivindica uma maior valorização do trabalho destas mulheres: “Por serem voluntárias, elas acumulam jornada de trabalho, muitas vezes deixando de fazer coisas em casa para atender as pessoas”, sinaliza.
Ela considera que é importante prover uma renda para estas mulheres, já que o volume de recursos recebidos pelo projeto é modesto. A cozinha se mantém por meio de doações e algumas parcerias, explica Lenina, ressaltando que este ano passaram a receber dinheiro do MDS. “R$ 2,40 por marmita”, especifica. Recentemente, a “Mão de mulheres” participou de um edital da Fundação Banco do Brasil destinado a fornecer equipamentos de cozinha. Até então, elas atendiam a todas as pessoas cozinhando em um fogão de quatro bocas.
“Era uma demanda muito grande, a gente madrugava fazendo a comida, às vezes não conseguia entregar no horário, sempre passava da hora por conta da falta de ferramentas”, diz. Lenina informa que hoje, com sede própria e ajuda do edital do MDS, melhorou a qualidade de vida das trabalhadoras, assim como foi possível custear gastos fixos, como energia elétrica, bem como caprichar no cardápio oferecido — especialmente incrementando a proteína.


Desejo, necessidade, vontade
Lenina chegou às cozinhas solidárias por intermédio de um coletivo de mulheres, quando distribuía kits de higiene para mulheres em situação de vulnerabilidade. “A gente percebeu que muitas delas viviam com insegurança alimentar, então começamos a tentar fazer algumas ações, distribuir caldo solidário”, conta à Radis. Durante a pandemia de covid-19, as necessidades se agravaram.
“Tivemos que ir mesmo para a rua, alimentar essas pessoas”. Começaram então a entregar cestas camponesas (com alimentos in natura) para diversas famílias, inclusive de refugiados e de indígenas Warao. Com o passar do tempo, perceberam que isso não era suficiente, já que muitas pessoas não tinham como custear o gás de cozinha. “Assim foi começando a nossa cozinha”, relembra.
Anos depois, Lenina ainda se mostra empolgada com a iniciativa, embora reconheça que o Programa Cozinhas Solidárias ainda tem muito a avançar. Ela enfatiza a necessidade de se aprimorar as parcerias, de maneira que se possa melhorar a formação profissional das pessoas que trabalham nas cozinhas. Sugere a oferta de cursos de reaproveitamento de alimentos, de técnicas de gastronomia que possam desenvolver os talentos naturais e, ao mesmo tempo, valorizar a educação formal, muitas vezes deficitária. “Muitas mulheres que ainda são semianalfabetas ou analfabetas, não têm inclusive como ler um edital ou mesmo assinar seu próprio nome”, justifica. (ADL)



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