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Responda rápido, sem consultar o Google: quais estados compõem a Região Norte do Brasil? Você seria capaz de citar, sem titubear, suas capitais? O que você conhece da região, que não seja a Floresta Amazônica? É verdade que só moram índigenas por lá? Para além da desatenção com as aulas primárias de geografia e da ausência de notícias regulares sobre a região na chamada mídia nacional, permanece ainda ignorada, por grande parte da população brasileira, a maior região do país. 

“O Brazil não conhece o Brasil; o Brasil nunca foi ao Brazil”, escreveram Maurício Tapajós e Aldir Blanc em 1978, quando compuseram a canção “Querelas do Brasil”. Mas será mesmo que, com tantas mudanças nestes últimos 43 anos, no país e no mundo, com as inúmeras inovações nas tecnologias de informação e de comunicação e os muitos avanços na área de transportes, é possível afirmar que a composição, imortalizada na voz da cantora Elis Regina, ainda descreve o grau de (des)conhecimento dos brasileiros em relação ao próprio país? 

O que nos dizem as pessoas que moram lá? O que está nos livros didáticos ou aparece nas notícias e nos programas de entretenimento corresponde à realidade de quem habita este vasto território que ocupa nada menos que 45% do território nacional? Partindo da premissa de que a invisibilidade da região persiste e é responsável por inúmeros impactos na vida de seus habitantes — incluindo no acesso e na manutenção de sua saúde — nós conversamos com pessoas que nasceram e/ou moram em diferentes cidades do Norte, com o intuito de refletir sobre as origens deste desconhecimento e chamar atenção para alguns dos reflexos da invisibilidade na garantia de políticas públicas e no exercício da plena cidadania. 

A partir de seus relatos, nós descobrimos, por um lado, uma série de problemas que não encontram repercussão na mídia “sudestina” e, por outro, realidades complexas e muito diversas, dentro da mesma região — muitas delas ainda invisíveis ao resto do país. Hora de questionar nossa ignorância, problematizar estereótipos e embarcar em uma viagem de esclarecimentos guiada pelas palavras de Ninawá, do Acre, Tami, do Amapá, Sully, do Amazonas, Raquel, do Tocantins, Gadelha, em Rondônia, Jaider e João Carlos, em Roraima, e Rui, no Pará.

Desigualdades nem sempre visíveis

  • O estudo preliminar “Redução da expectativa de vida em 2020 no Brasil depois da Covid-19”, publicado em 9 de abril de 2021, conduzido por cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no Brasil, e das universidades de Harvard, Princeton e do Sul da California, nos Estados Unidos, mostra que a maior queda na expectativa de vida ocorreu na Região Norte, com o pior índice visto no Amazonas. No estado, a expectativa de vida reduziu 3,28 anos, marca antes registrada em 2007. (https://bit.ly/3s73Qbx
  • A Região Norte está entre as mais afetadas pela fome na pandemia, aponta o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia no Brasil”, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) entre 5 e 24 de dezembro de 2020, em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país. (http://olheparaafome.com.br/
  • Cidades da Região Norte receberam menos recursos federais por habitante para combater a covid-19 até 31 de dezembro de 2020, divulgou a ONG “Repórter Brasil” (22/1). Com base nos dados do Fundo Nacional de Saúde, que gerencia a aplicação dos recursos federais no SUS, a ONG divulgou que a cidade menos beneficiada pelos repasses federais na região foi Manaus (R$ 24,97 por habitante), seguida por Rio Branco (R$ 31,95 per capita) e Tailândia, no Pará (R$ 37,53) — todas abaixo da média nacional por habitante (R$ 110,72). (https://bit.ly/3d6jaRw
  • Lançada em outubro de 2020, a pesquisa “Tempo para Escola na Pandemia”, da Fundação Getúlio Vargas, que avaliou as horas dedicadas pelos estudantes ao aprendizado à distância, demonstrou que os alunos da Região Norte foram os mais prejudicados, com piores índices registrados no Acre, onde tiveram menos da metade de tempo dedicado aos estudos do que no Distrito Federal, melhor avaliado na pesquisa. A falta de oferta de atividade registrada no Pará (45%) também está longe da identificada no Paraná (2,09%). O estudo ainda identificou maior falta de envolvimento dos jovens de 6 a 15 anos da região com os estudos no período avaliado, sugerindo, entre outros fatores, falta de infra-estrutura domiciliar. (https://bit.ly/39ZQLuI
  • Metade dos moradores da Região Norte do país sobreviviam com R$ 273 mensais em 2019, demonstrou a “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Rendimento de todas as fontes 2019”, feita pelo IBGE. Segundo o estudo, o rendimento médio mensal real domiciliar per capita obtido de todas as fontes, em 2019, não alcançava o valor do salário-mínimo, chegando apenas a R$ 872, enquanto no Sudeste chegava a R$ 1.720. (https://bit.ly/3d8KJtt

Perdemos o Norte?

A definição nos dicionários é clara: a expressão “perder o norte” se refere à ideia de alguém ou algo perder o rumo e não saber que direção tomar; de modo inverso e complementar, “dar um norte” significa apontar um caminho seguro para quem está perdido. Após uma visita rápida aos principais portais noticiosos e de entretenimento brasileiros, no entanto, é possível imaginar um outro uso para estas expressões, ao se constatar que eles parecem “desnorteados”. Não por terem perdido a orientação espacial, mas por não darem a devida atenção ao que acontece nos estados que se situam no alto do mapa do Brasil.

Apesar de ocupar 45% do território do país e ser a morada de 18 milhões de brasileiros, não é frequente ver a Região Norte nas manchetes dos jornais ou representada nos programas de televisão — a menos que as notícias sejam sobre a devastação da Amazônia ou tratem de algo extraordinário. “O Norte só é noticiado por aqui quando há tragédia ou quando há festa”, avalia o artista plástico Jaider Esbell. Indígena da etnia Macuxi, nascido em Roraima, ele falou sobre o assunto pelo telefone, quando montava Ruku, sua mais recente exposição, em uma galeria em São Paulo. Na entrevista que concedeu, Jaider revelou perceber um total desconhecimento da Região Norte no Centro-Sul do país, onde ainda é vista como um lugar remoto, mas ponderou que o inverso também acontece: “Falta interatividade entre as realidades”, avaliou. 

Nascida no Amapá, Tami Martins já se acostumou a ser a primeira (e às vezes a única) amapaense nos grupos com quem interage em outros lugares do país, e considera legítima a curiosidade das pessoas sobre “o lado mais amazônico do país”. Graduada em Design de Produto no Centro de Ensino Superior do Amapá, trabalhando eventualmente com veículos de comunicação, ela no entanto sempre se sentiu incomodada com a invisibilidade de seu estado no noticiário nacional. 

Em novembro de 2020, quando um “apagão” deixou 90% da população do Amapá sem acesso à energia elétrica, à comunicação e a itens básicos como comida, água encanada e até água potável, ela postou em sua conta no YouTube um vídeo que produziu em animação, criticando a situação. “Você talvez não conheça o Amapá. Eu quero te contar por que o Amapá está no escuro há mais de 30 anos”, diz no texto de abertura do vídeo.

Naquele momento, sem notícias da família e dos amigos — a designer mora em Salvador há dois anos — ela denunciava, entre outros problemas, que, a despeito das riquezas minerais e naturais do estado, os 800 mil habitantes do Amapá vivem isolados do restante do país “É o único estado brasileiro sem acesso por via terrestre para o restante do país, onde as passagens aéreas podem custar mais do que uma viagem internacional”, narrou. À Radis, Tami disse em abril não vera atenção de grandes veículos de comunicação voltada para o extremo Norte a não ser em caso extremos — como o apagão no Amapá e a falta de oxigênio para as vítimas da covid-19, no Amazonas.

Nativo e morador de Manaus, mas conhecedor de 45 dos 62 municípios do Amazonas, o cientista social Sully Sampaio viveu esta crise de perto. Ele reforça a percepção sobre a invisibilidade do Norte, destacando que há um esforço da imprensa “sudestina” em manter a situação permanente. Por outro lado, ele enxerga que há um esforço na região para diminuir esse apagamento, envolvendo estratégias de comunicação em rede, como o uso das redes sociais e da radiofonia, e iniciativas bem-sucedidas na área de educação. “As pessoas criam estratégias para diminuir as distâncias. Claro que umas com sucesso; outras, nem tanto. Na maioria das vezes, essas estratégias existem no plano local. A radiofonia, por exemplo, funciona em São Gabriel, naquele contexto. Quem mora lá sabe a luta que é se comunicar com os interiores, já que a telefonia celular no interior do Amazonas é sofrida”, contou, na entrevista que concedeu à Radis.

Outra estratégia referida por Sully foi o QualificaSUS, projeto de formação profissional da Fiocruz Amazônia de capacitação e aperfeiçoamento de trabalhadores da saúde nos municípios do interior do estado, cuja proposta é melhorar o serviço prestado à população. Um dos coordenadores do projeto, ele explicou que, ao levar os cursos às cidades distantes da capital, a iniciativa contorna pelo menos dois dos problemas enfrentados por quem quer se qualificar, mas não vive em Manaus: o deslocamento por longas distâncias e a falta de acesso ao sinal de telefonia e de internet, dificuldades recorrentes na região.

Ocupação e identidade

Mas o que mantém essa invisibilidade, mesmo em tempos de alta conectividade global? Para Sully, falta interesse do poder público para resolver a questão. “É parecido com o que acontece com a seca, no Nordeste. Todo mundo diz que vai resolver, mas ninguém resolve, porque alguém ganha com isso”, opina. 

Tami concorda. “Segue sendo de interesse político que o Amapá seja quase invisível, pois assim segue concedendo a exploração do estado a empresas que realizam obras precárias e de maneira predatória, causando geralmente devastação e grandes consequências ambientais e sociais”, diz a designer no vídeo que produziu. Para ela, é para perpetuar o enriquecimento ilícito de políticos e empresas, principalmente estrangeiras, que o Amapá está “há tantos anos no escuro”.

O jornalista José Gadelha, assessor de comunicação da Fiocruz Rondônia, acrescenta outro aspecto à discussão: a manutenção de um discurso colonial. Mestre em Letras pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação e Saúde (PPGICS/ICICT), da Fiocruz, ele lembra que o estado, assim como outros da Região Norte, foi formado por migrantes, pessoas que vieram de outras partes do Brasil incentivadas por diferentes políticas de ocupação da Amazônia. 

Sua própria história familiar ilustra o que diz. Filho de pais cearenses, que migraram para Santarém, no Pará, onde ele nasceu, Gadelha mudou com a família para Rondônia no fim dos anos 1980, quando seu pai foi trabalhar com o garimpo no Rio Madeira. Mas qual a relação disso com a invisibilidade? Segundo ele, no caso de Rondônia, os processos de ocupação e de “apropriação” do território [garimpo, abertura de estradas e distribuição de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), nos anos 1970 e 1980, além da construção de vilas habitacionais contíguas à construção das usinas hidrelétricas, nos anos 2000], resultaram na formação de uma identidade rondoniense híbrida, multicultural, que também teria como marca o sentimento de não-pertencimento ao lugar. 

Com a experiência que acumulou no magistério e no exercício do jornalismo — durante 11 anos, ele editou e apresentou o telejornal Bom Dia Amazônia, exibido diariamente, pela Rede Amazônica — Gadelha incluiu em sua análise outros aspectos do problema, como a dificuldade de acesso a oportunidades de formação de qualidade na área de comunicação em Rondônia, além da necessidade permanente de os profissionais do jornalismo local “brigarem” pela exibição de reportagens regulares sobre o estado nos noticiários nacionais. “É uma disputa injusta”, classificou. 

A professora Raquel Palmeira também acredita que a formação identitária do Norte tem relação com a manutenção da invisibilidade. Moradora de Araguaína, onde pesquisa línguas indígenas no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) na Universidade Federal do Tocantins, ela considera que a identidade ainda em formação do tocantinense contribui para que ela ainda seja desconhecida no restante do país. “É o estado mais novo da federação. Muitas pessoas não fazem ideia de qual é a sua identidade cultural”, justifica. 

“Quando se fala da Bahia, a capoeira e o candomblé marcam o lugar. No Goiás existem as duplas sertanejas; no Amazonas, os rios… Quando se fala do Tocantins ainda não existe uma identidade formada na cabeça das pessoas. É como se ainda fosse uma extensão do Goiás, como há 30 e poucos anos”, disse à Radis. Também migrante, nascida em uma família baiana na cidade de Itamaraju, ela veio morar em Araguaína ainda criança, onde cresceu e vive até hoje.

Raquel acrescenta que em Tocantins, além dos elementos culturais trazidos pelos migrantes, existe uma tradição indígena muito forte — o que em muitas ocasiões induz as pessoas a acreditarem que no estado só vivem populações nativas. “Só tem índio aí?” é uma pergunta que costuma ouvir, principalmente quando descobrem que pesquisa a língua da etnia krahô e que ela é casada com um pesquisador indígena, o geógrafo Adriano Karajá. “Eu gostaria que minha pesquisa contribuísse para mudar o olhar das pessoas para a cultura indígena e para o meu estado, mas talvez ela não tenha tanto alcance por conta da minha localização geográfica”, lamenta. “Não nos deixam falar, isso causa um apagamento. Você só respeita aquilo que conhece”, reflete.

Fronteiras e rotatividade

A falta de identificação com o lugar onde se vive é algo que chama muito a atenção do pesquisador João Carlos Jarochinski, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), desde que chegou à Boa Vista há sete anos. Paulista, pós-doutor pelo Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO/Unicamp) e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ele estuda o tema desde 2007 e conhece diferentes áreas de fronteira no Norte do país. 

Na entrevista que concedeu à Radis, João Carlos situou sua análise nas regiões de fronteira, observando que a presença do Estado nestes lugares privilegia equipamentos de segurança e proteção do território em detrimento da prestação de serviços essenciais para o exercício da cidadania. Em decorrência disso, pontuou o professor, os agentes públicos não criam uma identificação consistente com o território onde atuam. “A gente brinca que as pessoas vêm com a mochila nas costas, já esperando a ida para outras localidades”, disse ele. 

Segundo João Carlos, permanecem no lugar pessoas que não têm alternativas, os que se sujeitam a viver em não-lugares. O pesquisador falou especificamente de Pacaraima [município no Norte de Roraima que ganhou notoriedade na mídia por ser a principal porta de entrada dos migrantes venezuelanos no Brasil], onde é perceptível outro desdobramento do problema. Já que os serviços públicos são escassos nestes locais, além do sentimento de não-pertencimento, registra-se uma ideia permanente de disputa por estes serviços, o que reforça a rejeição à presença do migrante estrangeiro.

Para o pesquisador, a visão “securitária” reforça a condição de invisibilidade destas regiões fronteiriças, já que só atraem para elas interesses baseados na perspectiva do controle e da ameaça. Isso se reflete na construção de noticiários sobre elas, que valorizam, via-de-regra, aspectos muito negativos, como a violência, o tráfico de drogas e de armas, a devastação ambiental, a garimpagem. 

Em sua análise, João Carlos também considerou que os elementos de ameaça se tornam ainda mais negativos quando contrastam com outra ideia recorrente na região, que é a “edenização” do espaço, ou seja, a visão da Amazônia como se fosse um paraíso terrestre — “um lugar que todo mundo gosta de passar uns dias, mas ninguém quer ficar”, destacou. Ele advertiu, no entanto, que as pessoas que resolvem passar suas vidas na região sofrem muito com as condições de vida, enfrentando problemas como falta de conectividade e pouca integração com o restante do território nacional.

Romantização e precariedade

“Os livros ainda evidenciam uma Amazônia que não existe. A mídia, também”, observou José Gadelha. Para ele, essa idealização da região é, em parte, responsabilidade do que se vê nos meios de comunicação, mas também decorrente do processo de escolarização. “O que a gente aprende sobre a Amazônia nos livros didáticos também colabora para isso. Isso vem mudando muito recentemente, mas os livros didáticos mostram uma realidade que não é a mesma vivenciada pelas populações urbanas”, avaliou. Para ele, a imagem da Amazônia foi construída por pessoas que muitas vezes nem conheceram a região presencialmente, a partir de um imaginário. “Isso ainda é muito forte”.

Sully também comentou sobre a idealização do território, mas ressaltou que, na prática, essa visão dura pouco. “Viver na Amazônia não é romântico. É sofrido”, advertiu. Ele lembrou que, dependendo do lugar onde se esteja, é possível ficar isolado, em determinadas épocas do ano, porque o rio está seco e não há como navegar. “Aqui não há estradas acessíveis de um município para o outro, são pouquíssimos os lugares que têm estradas”, explicou, dizendo que muitas vezes esta romantização dá lugar a outro sentimento, que é de revolta. Em algumas situações, reconhece, a visão romântica da precariedade é usada por gestores não comprometidos, que tentam assim justificar falta de investimento nas condições de trabalho, valorizando profissionais que, mesmo não tendo capacidade técnica, têm menor potencial para reclamar. 

Em outro estado do Norte, o antropólogo Rui Massato Harayama também tem refletido sobre a romantização, relacionando-a com a precariedade. Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, ele se mostrou incomodado com uma visão distorcida da realidade profissional na região, geralmente divulgada por pessoas que não vivem na região. Para o pesquisador, essa visão é reforçada pela invisibilidade, já que possibilita a romantização das inequidades em saúde.

Em entrevista à Radis, Rui citou como exemplo a idealização da situação de comunidades quilombolas que não têm acesso à saúde e se tratam com ervas medicinais. Ele explicou que embora valorize os conhecimentos tradicionais, estes não substituem o atendimento técnico da saúde, que deveria ser prestado a esta população. Em sua opinião, deveria haver uma articulação dos dois campos de conhecimento. “A ideia é não romantizar a dificuldade, mas sim instrumentalizar e capacitar os profissionais, de modo que o trabalho possa acontecer e seja objetivo”, afirmou. 

O pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da Ufopa também chamou atenção para situações em que as redes de solidariedade invisibilizam problemas estruturais crônicos. Ele lembrou de situações em que profissionais de uma Unidade Básica de Saúde compraram com o próprio dinheiro sabonete líquido para ser usado em procedimentos, já que o orçamento da unidade não era suficiente para obter o insumo; e de outras em que a comunidade se mobilizou para angariar recursos por meio de rifas e bingos para socorrer o sistema de saúde. Mesmo reconhecendo que não vê problemas na ajuda comunitária ao SUS, ele acredita que tais posturas contribuem para “esconder” as inequidades.

Rui criticou ainda o fato de a região Norte ser tratada como “repositório de imagens de povos da floresta”. Para ele, o que se vê são grupos populacionais resistindo em cenários de pauperização. “As pessoas têm uma imagem de que quem vive na floresta tem garantia de comida no seu quintal, mas não tem”. O professor lembrou que os indígenas, por exemplo, além da pressão sobre suas terras, enfrentam graves problemas de insegurança alimentar.

Reflexos da invisibilidade

O desconhecimento das especificidades regionais, a invisibilidade do cotidiano nas cidades e o isolamento de determinadas áreas trazem consequências para a vida de quem mora na região Norte. Em muitos casos, é difícil estabelecer quais questões são invisíveis — inclusive dentro do território — e quais são decorrentes da invisibilidade.

Para Ninawá Inu Huni Kui, presidente da Federação do Povo Huni Kui no Estado do Acre, a paralisação na demarcação das terras indígenas e os conflitos que ocorrem nos territórios são problemas que ocupam este lugar duplo: além de não estarem no noticiário, eles se agravam com a invisibilidade — neste caso, invisibilidade da região e também das questões indígenas.

Ela relatou à Radis que quando aconteceram as enchentes no estado, em fevereiro de 2021, somente entre os Huni Kui 524 famílias foram atingidas, em 94 aldeias. Segundo ele, dos 12 territórios, nove foram afetados; a aldeia onde vive, Yskuiá Yuxibú, que fica no território Hênê Bariá Namakiá, próximo à cidade de Feijó, às margens do rio Envira, foi completamente inundada. Isso sem falar nos prejuízos causados a outras etnias. O problema entre os indígenas, no entanto, não apareceu nos jornais, ressaltou Ninawá.

Outra invisibilidade crônica, identificada pelo líder indígena é a precariedade na assistência à saúde e na oferta de saneamento. “Por mais que a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] tenha uma equipe multidisciplinar completa, não há equipamentos e falta estrutura”, avaliou, lembrando que 80% dos problemas de saúde são causados pela ausência de infraestrutura de saneamento nas aldeias. “Isso desaparece no noticiário. Nem aqui é notícia”, avaliou. 

Para ele, a falta de estatísticas oficiais sobre a saúde indígena também é reflexo da invisibilidade, o que impede que se tenha uma real visão da situação dos povos nativos no estado. Para minimizar os problemas, Ninawá diz investir em atividades de conscientização da população, na medida em que possam se tornar aliados na luta por uma política afirmativa de governo para os povos indígenas.

Entre outros reflexos da invisibilidade, o professor João Carlos chama atenção para o fato de que ela reforça estereótipos. “Os estereótipos daqui não são invisíveis. A perspectiva do que é o cotidiano, do que é a vida real, essa sim é invisibilizada, o que acaba afetando a oferta de serviços”, disse. Ele ressaltou que problemas como a “permanência de uma gritante desigualdade social” desaparecem para dar lugar aos estereótipos do não-lugar, da violência e, também, do lugar das belezas naturais, da floresta.

Rui destacou, que a despeito da imagem de “Caribe brasileiro”, Santarém já convive com os problemas típicos dos grandes centros urbanos, com regiões periféricas onde vivem pessoas expulsas dos interiores, muitas vezes por conta da pressão do agronegócio, outras em busca de acesso às redes de serviço, saúde, educação. “São bolsões de muita pobreza, não é pouca pobreza, é muita pobreza”, enfatiza. Nestas regiões, falta infraestrutura e não é raro ver pessoas morando em palafitas, acrescentou.

“Eu tenho quase certeza de que a invisibilidade prejudica muito a saúde das pessoas”, avalia Tami. Ela acredita que isso se reflete, principalmente, no acesso à saúde, e citou como exemplo a situação do seu estado, neste momento de pandemia. “O Amapá tem 800 mil habitantes e um sistema de saúde precário. Quando começou a pandemia, era o estado que tinha menos leitos de UTI para atender à população”, observou, reconhecendo que não foram boas as experiências que teve no sistema de saúde. Há alguns anos, contou, perdeu um irmão criança, oportunidade em que percebeu a falta de infraestrutura do lugar. “Isso é algo que me deixa indignada”, declarou.

José Gadelha enumera alguns reflexos da invisibilidade no cotidiano: dificuldade de acesso à formação acadêmica — ele frisou que só consegue cursar o doutorado, neste momento, porque o processo de seleção e as disciplinas estão sendo ministradas virtualmente; as longas distâncias, que tanto dificultam as viagens e o transporte de insumos e produtos, reforçam a ideia de um espaço longínquo, onde nada acontece. “Mas aqui acontecem muitas coisas, muitas pesquisas são desenvolvidas no campo da saúde pública. A própria construção da Fiocruz Rondônia, a partir de 2009, é uma história belíssima”, reforça. 

De todo modo, ele avalia que ainda é difícil divulgar estas pesquisas em âmbito nacional, e adverte para o risco que isso representa para a saúde. “Se a gente considerar que a imprensa é uma ferramenta de educação em saúde, um instrumento de formação das pessoas sobre os processos de saúde e os processos de doença, a invisibilidade contribui para que as pessoas não saibam, por exemplo, sobre doenças que são endêmicas da região”, reflete. 

Para Gadelha, a ausência da divulgação das pesquisas sobre elas, ou da voz dos especialistas sobre essas doenças é um reflexo da invisibilidade. Ele cita a leishmaniose, que acomete cerca de mil pessoas em Rondônia, mas que pouco é vista no noticiário; a dengue, endêmica na região, e a malária, problema ainda não resolvido, mas que também não recebem a devida atenção midiática. “Uma doença não é só o número de casos ou de pessoas acometidas, isso é só um dado. Existe toda uma conjuntura por trás disso”, critica.

Diante de tantos desafios, parece que enfrentar estereótipos, silenciamentos e invisibilidades é desafio premente na região, situação para a qual Sully parece sugerir um caminho: “Quando você resolve realmente conhecer e ouvir as pessoas e quais são as suas experiências e estratégias para lidar com os problemas do cotidiano, você cresce, aprende e deixa de ser o dono da verdade”, diz o pesquisador. Para ele, que já esteve em lugares no Amazonas os quais a maioria das pessoas nunca ouviu falar, não há como ir a locais remotos como o dono da verdade, “porque lá existe uma tradição, uma história e um modo de viver que não dá para desconsiderar”.

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