Distante cerca de 450 quilômetros da capital João Pessoa, Sousa — no Sertão da Paraíba — é um município conhecido por abrigar um dos principais sítios arqueológicos do país, preservando diversas pegadas de dinossauros que marcaram seu solo há mais de 165 milhões de anos. É lá também que se registrou o último caso de poliomielite no Brasil. Esse, há bem menos tempo: em 1989. Nas últimas quatro décadas, pode-se dizer que o país fortaleceu e ampliou suas estratégias de vigilância e prevenção, avançou com a imunização e erradicou a doença. Mas é preciso atenção, pois esse cenário positivo ainda corre o risco de sofrer um retrocesso. E a palavra-chave para que isso não ocorra é bem conhecida: vacinação.
De 2016 para cá, a queda na cobertura vacinal da doença reacendeu o alerta para o risco de um possível retorno do vírus causador da paralisia infantil no Brasil. Um de seus sorotipos selvagens ainda circula em países como Afeganistão e Paquistão — o que mantém a ameaça de um retorno global. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que enquanto houver uma criança infectada, crianças de todos os países correm o risco de contrair a poliomielite. Ainda de acordo com o órgão, se a doença não for erradicada, podem ocorrer até 200 mil novos casos, a cada ano, em uma década.
Para evitar esse revés, é fundamental não descuidar da prevenção. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) segue orientações da OMS e estabelece como meta segura a vacinação de 90 a 95% de crianças menores de 5 anos. Esse índice foi obtido pela última vez em 2015, quando 96,5% desse público foi vacinado. Nos últimos anos, em 2021 (71,3%) e 2022 (77,7%), a queda acentuada na adesão colocou o Brasil no topo da lista de países com maior risco de retorno da pólio selvagem nas Américas, atrás apenas do Haiti, e mobilizou autoridades sanitárias.
Já em 2023, informações do Ministério da Saúde indicam que os números voltaram a subir, após medidas de estímulo e incentivo à vacinação, atingindo um índice de 85% de crianças menores de 1 ano com o primeiro ciclo de imunização. No primeiro semestre de 2024, esse percentual vem se mantendo, com expectativa de crescimento.
A retomada de patamares que garantam a manutenção da erradicação da pólio no país é justamente o que deseja o paraibano Deivson Rodrigues, último brasileiro diagnosticado com a doença. Posto esse que ele não quer perder, afinal, dessa forma o Brasil continuará livre da poliomielite. E para isso, ele tem feito a sua parte: “Eu incentivo os pais a levarem seus filhos à vacinação e evitar que o pior aconteça”, afirma à Radis.
Dos três sorotipos do vírus selvagem da pólio, hoje apenas um está em circulação no mundo. Edson Elias, pesquisador do Laboratório de Vírus Respiratórios, Exantemáticos, Enterovírus e Emergências Virais do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), afirma que os outros dois vírus foram erradicados do mundo graças à vacinação. O mesmo destino é esperado para o tipo 1. Porém, se a adesão vacinal diminui, essa missão fica mais distante de ser concluída com sucesso. Em janeiro de 2019, Radis já chamava atenção para as baixas coberturas vacinais que comprometiam o programa brasileiro de imunizações [Leia reportagem completa em Radis 196]. A situação, porém, se agravou nos anos seguintes, durante a pandemia de covid-19. De lá para cá, uma pergunta ainda desafia a ciência e a saúde pública: O que é preciso fazer para que o Brasil volte a ser uma referência na vacinação da população?
Vacinas são vítimas do próprio sucesso e da desinformação
Em 1991, dois anos após o último caso de pólio selvagem ser identificado no Brasil, o Peru também registrou sua infecção derradeira pelo poliovírus. A amostra foi analisada no laboratório de Edson, na Fundação Oswaldo Cruz, e em 1994 veio a certificação de que o Brasil se tornava um país livre da pólio, assim como a América do Sul, o primeiro continente a obter essa marca.
O título pode ter contribuído para um certo relaxamento. Afinal, há quem argumente que a vacina da pólio também é vítima de seu próprio sucesso. Em outras palavras, as pessoas passaram a não ver mais as sequelas da paralisia flácida, o que era comum há cerca de 30 ou 40 anos, quando a doença chegou a paralisar mais de mil crianças por dia em 125 países, segundo a OMS. E, com isso, podem ter perdido o senso de urgência em relação à vacina.
Edson, porém, alerta para outro elemento que também influencia essa condição: a disseminação de desinformação acerca dos imunizantes. “Um dos principais fatores de queda da cobertura são os movimentos antivacina, que se baseiam em fake news”, pontua. “Vacina salva. Não temos nenhuma dúvida. Você vê pessoas idosas com sequela de pólio, mas ninguém vê crianças com essas sequelas. Isso é graças à vacina”, defende o pesquisador, que complementa: “Fomos parando de ver esses casos. Foi o fim de uma doença. E sem vacina, isso não seria possível”.
Radis também conversou sobre o tema com Acary Oliveira, médico, neurologista, chefe do Setor de Investigação de Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Especialista em poliomielite e síndrome pós-pólio, ele entende que o governo tem falhado em sua comunicação na luta contra a desinformação em relação às vacinas.“O Estado precisa ser atuante e convencer as pessoas. Fala-se muito em doença e pouco em saúde. E dentro desse convencimento, a vacinação é aquela que tem o menor custo, mas tem o maior valor”, compara. “Não conheço nenhum outro benefício maior do que essa gotinha que salva ou dessa injeção intramuscular”, referindo-se às vacinas Sabin e Salk [Saiba mais sobre os diferentes tipos de imunizantes contra a pólio clicando aqui].
Uma sobrevivente da pólio
Ainda que a doença tenha sido erradicada no Brasil, é importante lembrar que pessoas com sequelas da pólio existem e precisam ter voz. São os ‘sobreviventes da pólio’, como muitos se autodenominam. “Acho que hoje eu sinto mais o peso dessa expressão. E sinto a importância de dizer que eu sou uma sobrevivente da pólio”, afirma Sandra Ramalhoso, presidente da Associação G-14 de Apoio aos Pacientes com Pólio e Síndrome Pós-Pólio, ao responder sobre como tem sido viver com as marcas da poliomielite há mais de 60 anos, com seus desafios e superações.
Para ela, esse peso carrega a responsabilidade de honrar a luta daqueles que a antecederam: “Porque muitas pessoas que tiveram pólio já faleceram e elas lutaram. E a gente teve um grande perigo de perder direitos que elas conquistaram”, relata.
Nascida em novembro de 1963, Sandra não lembra da vida antes de ter contraído o vírus da poliomielite. Assim como a imensa maioria dos casos, ela desenvolveu a doença ainda criança. Um bebê com apenas três meses de vida. “Eu tive pólio quando era muito bebezinha e pelas minhas pesquisas, acho que sou a pessoa que a teve mais nova”, desconfia. Os sintomas iniciais, como febre e choro insistente, evoluíram rápido, e logo ela foi perdendo os movimentos, ficando com aspectos de um recém-nascido. “Minha mãe dizia que só sabia que eu estava viva porque mexia os olhinhos”, conta.
O temor de sua mãe, que já suspeitava da doença, foi confirmado com o diagnóstico de que a poliomielite havia de fato se manifestado de forma grave em Sandra. Ela conta que ainda precisaria recorrer ao “pulmão de aço”, no Hospital das Clínicas de São Paulo (HCFMUSP), por mais de 20 dias para conseguir respirar. Na sequência, veio uma longa rotina de cuidados, fisioterapia e cirurgias que marcaram sua infância e adolescência. Com o tratamento contínuo, Sandra foi recuperando a mobilidade aos poucos e aos 6 anos de idade começou a andar, com auxílio de órteses. Até os 16, passou por cirurgias. Como principal sequela da doença, ficou com uma atrofia de braço e perna do lado direito de seu corpo.
Mas se engana quem pensa que esses obstáculos a isolaram do mundo. Com muita dedicação e total apoio de seus pais, Sandra passou a frequentar a escola de seu bairro, também aos 6 anos. Cursou o ensino fundamental e médio, mas a falta de acessibilidade, numa época em que não se falava no assunto, trouxe dificuldades como a obrigação de permanecer na carteira da sala durante todo o período escolar. “Minha mãe me levava no colo e me deixava na carteira e de lá eu só saía no fim da aula. As crianças saíam da sala no recreio para lanchar e eu ficava ali”, relembra. Ela lamenta que com isso tenha perdido as brincadeiras do pátio e parte importante de sua infância e experiência escolar.
Foi na faculdade, anos mais tarde, que Sandra se deparou novamente com a falta de acessibilidade. E dessa vez decidiu desistir do curso de Psicologia, já no segundo ano, muito por conta das escadas que dificultavam o acesso aos laboratórios, ainda que as salas de aula fossem no térreo. Optou pela carreira de musicista e tornou-se professora de piano clássico. Casou-se e a faculdade ficou para trás, mas a vida seguiu.
Sandra teve seu primeiro filho em 1987 e, em 2003, quatro anos depois do nascimento do caçula, precisou lidar novamente com a poliomielite, após mais de duas décadas sem acompanhamento médico. “Depois dos meus 16 anos até o início dos anos 2000 eu meio que desisti da pólio. Acho que fui tanto a tantos médicos que cansei”, confessa.
Nesse período ela conta que passou a ter dificuldades para andar, por causa de uma instabilidade no quadril e fraqueza em sua musculatura. Foi quando conheceu o Setor de Investigação de Doenças Neuromusculares da Unifesp, onde buscou ajuda. Ao chegar lá, foi atendida pelo chefe do setor, Acary, que após examiná-la, lhe informou um novo diagnóstico: a síndrome pós-pólio. Começava ali uma nova fase de sua vida.
Síndrome pós-pólio: do que se trata?
Acary estima que a condição que afetou Sandra ocorra com cerca de 60% das pessoas que contraem paralisia flácida decorrente da poliomielite. Ou seja, não são todas as pessoas com sequelas da pólio que a desenvolvem. Pouco estudada, a síndrome pós-pólio consiste basicamente em um agravamento da sequela original causada pela doença e se desenvolve de forma progressiva e degenerativa. Geralmente surge quando a pessoa atinge a faixa dos 40 anos, como no caso de Sandra. Não há cura, mas o tratamento multidisciplinar ajuda a controlar o avanço dos novos sintomas.
O médico explica que essa condição se dá principalmente por conta do esforço excessivo dos neurônios não comprometidos na época da paralisia, por tentarem compensar essa ausência. Ela pode vir acompanhada de dores musculares e articulares, intolerância ao frio, alteração ventilatória, transtornos do sono, entre outros desconfortos. “Começou a se verificar que a nova fraqueza muscular, que é o selo da pós-pólio, tem uma íntima relação com o gasto energético enorme que essas pessoas tiveram ao longo de sua vida”, detalha Acary.
Ele chama atenção para a negligência em torno da condição: “Existem pesquisas ligadas à síndrome pós-pólio, mas são poucas ou raras. Por qual razão? Porque é uma doença praticamente extinta hoje”, afirma o neurologista, ressaltando ainda que a produção acadêmica em medicina tem se voltado a temas de maior interesse do mercado e da sociedade. “É uma doença esquecida”, sentencia.
Sandra, que desde as primeiras consultas com Acary, há mais de 20 anos, passou a se locomover com auxílio de cadeira de rodas, concorda. E descortina a lógica perversa do descaso sofrido pelos pacientes da síndrome pós-pólio à luz do capitalismo. “As pessoas não pesquisam e a indústria farmacêutica não vai investir em síndrome pós-pólio porque nós vamos acabar. Se Deus quiser, não vai ter mais pólio, então, não vai ter mais quem consuma essa medicação. Daí, nós estamos num limbo. Uma situação muito difícil”, desabafa.
Ela diz lamentar principalmente a falta de orientações e informações no passado, de modo que pudesse se preparar melhor para esse segundo avanço da doença, como uma possibilidade de minimizar seus impactos. Para Sandra, depois da demora na aquisição e na distribuição das vacinas já disponíveis, ainda no regime civil-militar, nas décadas de 1960 e 1970, o Estado voltou a falhar ao não comunicar esse possível agravamento das sequelas. “O governo não me avisou, não houve procura ativa de quem teve pólio, porque eles tinham nossos prontuários. O meu estava lá, no Hospital das Clínicas, eles tinham como fazer essa busca e nos alertar”, afirma.
Essa falta de preparo agora afeta sua qualidade de vida: “Hoje eu durmo com respirador, porque fiquei no pulmão de aço [quando bebê], sei que meus músculos do pulmão também foram afetados”. Ainda assim, Sandra reconhece que talvez não deixasse de fazer tudo o que fez, mas teria mais cautela e consciência dos riscos a que estaria submetida no futuro: “Talvez poderia ser diferente, também não sei se não optaria por fazer tudo o que eu fiz, porque eu vivi. Vivi dois casamentos, tive dois filhos, meu trabalho, dei aula, fiz músicas, será que pararia tudo isso?”, questiona-se, para logo em seguida refletir: “Mas talvez fosse mais devagar, com mais parcimônia. Teria tido o direito de fazer essa escolha”.
Nenhum direito a menos
A luta pela garantia de direitos reúne pessoas que tiveram poliomielite. A Associação G-14 é uma instância voltada para orientação, capacitação e suporte a pacientes, familiares e profissionais de saúde, mas também tem atuação política. Sandra foi uma de suas fundadoras, em 2016, e a preside desde 2022. Antes disso, entre 2012 e 2013, já havia participado da criação da extinta Associação Brasileira de Síndrome Pós-Pólio (Abrasp).
O nome da atual associação envolve uma curiosidade. Vem de um desejo do grupo de que a síndrome pós-pólio recebesse a categorização G-14 na nova versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), atualizada em 2022, mas a codificação acabou ficando como 8B62. “Chegamos a realizar consulta para saber se mudávamos o nome da associação”, diz, mas o G-14 já estava consolidado e ficou.
A associação mobiliza-se contra ameaças de perda de direitos das pessoas com deficiência, como a sofrida pelo Projeto de Lei (PL) 6159/2019, de autoria do então governo Bolsonaro, que visava flexibilizar a lei de cotas de emprego para pessoas com deficiência, dificultando ainda mais o acesso dessa população ao trabalho formal. Além desse caso, o governador de São Paulo, Tarcísio Freitas (Republicanos), publicou, em abril de 2024, um decreto autorizando a entrada e a permanência de tutores particulares nas escolas estaduais para acompanhamento de crianças autistas ou com outras deficiências, custeados pelos pais dos alunos.
A medida foi vista como um fator de desequilíbrio na educação e na inclusão de pessoas com deficiência entre famílias que podem pagar pelo auxílio profissional e as que não podem, além de eximir o governo de São Paulo do que deveria ser o seu papel. “É um absurdo. A Constituição diz que todos os alunos têm direito ao ensino gratuito, com todos os equipamentos que forem necessários, sejam humanos ou tecnologias assistivas”, protestou Sandra em um vídeo nas redes sociais. “Pessoas com deficiência são dignas de direitos, assim como todas as crianças. É dever do Estado”, afirmou.
À Radis, ela ressalta a necessidade de implementação efetiva da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), instituída em julho de 2015: “Lutamos para não perder o que nossos amigos conquistaram e para conquistar outros direitos. Temos que colocar a LBI fora do papel, na realidade”. Os direitos dos quais Sandra afirma não poder abrir mão representam conquistas para a sociedade que vão além das cotas de empregos para pessoas com deficiências e passam até mesmo pela inclusão da oferta de órteses e próteses pelo SUS.
Acary lista uma série de outros benefícios, hoje usufruídos por toda a população, que resultam direta ou indiretamente da luta das pessoas com poliomielite, como a pavimentação de calçadas — inicialmente pensada para atender ao deslocamento de pessoas com a mobilidade comprometida —, a cadeira de rodas motorizada, o desenvolvimento de ventilação mecânica não invasiva para auxiliar a respiração e as grandes cirurgias ortopédicas. “Não tenho dúvida que hoje tenho uma vida muito boa e ela está intimamente ligada aos aprendizados que essas pessoas trouxeram para nós”, declara.
Sandra concorda ao mencionar que as pessoas com pólio lideraram a luta pela acessibilidade. E faz uma reivindicação que deveria ser óbvia em termos de adaptações urbanas: “Eu tenho direito à cidade como todas as pessoas têm”, ressalta.
Zé Gotinha contra a pólio
Na esteira do que o enfrentamento à poliomielite gerou à sociedade, destaca-se a criação de um ícone da vacinação no Brasil e que passou a ser exemplo para o mundo inteiro. Na década de 1940, antes da criação das vacinas contra a pólio, o reforço das medidas de higiene eram as principais recomendações preventivas. E a propaganda foi muito utilizada para isso. Acary relata que as histórias em quadrinhos de super-heróis, as famosas HQs, eram usadas nos Estados Unidos como parte dessa estratégia e as recomendações eram incluídas em tramas como as do Capitão América e Homem Aranha.
Se os americanos tiveram suas HQs, nós tivemos um herói diferente. Sem capa e com a cabeça em formato de gota. Criado em 1986, pelo artista plástico mineiro Darlan Rosa, e batizado por meio de um concurso nacional, o Zé Gotinha surge com o intuito de disseminar a vacinação contra a poliomielite. E deu muito certo. Criado para atrair as crianças, o personagem ganhou também o coração das famílias e até hoje ilustra as campanhas de vacinação do PNI. “O Zé Gotinha modificou a forma de se ver poliomielite no mundo”, destaca Acary.
Mas nem tudo são flores ou, no caso, gotas. Ao analisar a história da vacinação contra a pólio no Brasil, o médico afirma que o descaso e a morosidade com que as autoridades se apropriaram das ações de prevenção já amplamente utilizadas mundo afora comprometeram a vida de milhares de pessoas que poderiam ter sido protegidas. “Quando entraram as duas vacinas, a gotinha e a injetável — entre 1960 e 1961 — ocorreu uma modificação absurda da pólio no mundo”, ressalta. De acordo com o Ministério da Saúde, somente entre 1968 e 1989 o Brasil teve mais de 26 mil casos da doença, com a vacina já disponível.
Acary critica a conduta negligente do governo militar em relação à aquisição dos imunizantes contra a pólio. “O Brasil demorou para incorporar as duas vacinas e com isso nós tivemos, ainda nas décadas de 1960 e 70, muitos casos de pólio que já poderiam ser evitados. Isso foi inadmissível”, afirma. “Em países como a Dinamarca, a pólio sumiu. [Albert] Sabin, o criador da vacina de gotinha, casou-se com uma brasileira e ficava incomodado com a letargia do governo brasileiro”, completa.
O famoso caso de Sousa
Voltemos ao interior da Paraíba, no lugar onde os dinossauros deixaram suas marcas e a pólio foi registrada pela última vez no país. Deivson hoje tem 34 anos. É educador físico, personal trainer e surpreendentemente ficou completamente livre de sequelas da doença. Agradecido pela recuperação, fez da plena mobilidade sua profissão: “Eu me identifiquei muito com a área da educação física. Gosto de ajudar as pessoas a alcançarem seus objetivos, adquirindo saúde e performance”, orgulha-se.
Mas quem o vê forte, ativo e saudável em 2024 não faz ideia do sofrimento de seus pais quando, com apenas 1 ano e 5 meses, em 1989, o menino adoeceu repentinamente, perdeu os movimentos e foi logo diagnosticado com o que anos mais tarde se descobriria ser o último caso de pólio no país. Naquela época, chegou a ficar cerca de seis meses com paralisia total de membros inferiores e superiores.
Ele conta que, após meses de tratamento e fisioterapia intensiva na capital João Pessoa, começou a recuperar os movimentos. Bem a tempo de ter uma infância ativa e feliz. Da pólio, porém, não fica só o registro médico e a lembrança dos familiares. Deivson faz questão de atuar na causa, aproveitando a visibilidade que normalmente tem por ser um dos símbolos da erradicação da doença no Brasil. Ele integra a Associação G-14 e, sempre que é convidado, mostra-se solícito a falar sobre o assunto e apoiar as ações de vacinação.
Deivson, inclusive, conta que estava vacinado quando contraiu a doença. Mas no seu caso, por alguma razão desconhecida, a vacina não o protegeu. Uma ocorrência rara. “Talvez alguma deficiência imunológica ou problemas com a vacina”, sugere o pesquisador da Fiocruz, Edson Elias, ao comentar o fato que não acompanhou de perto para conhecer mais detalhes. O próprio Deivson acredita que a ineficácia na proteção veio de um possível mal acondicionamento das doses que recebeu. Ao mesmo tempo, desconfia que a resposta imunológica ao imunizante, ainda que incompleta, possa ter contribuído com sua recuperação.
“Vacina é um ato de amor”
Deivson Rodrigues
Em sinal de gratidão, Deivson mencionou algumas vezes à reportagem ter sido agraciado por um milagre. “Agradeço a Deus e à vacina também, sem ela eu acredito que poderia ter alguma sequela. Então, eu reforço, vacinem seus filhos porque é melhor do que remediar”, aconselha ele, que é pai de um menino de 3 anos e garante que a carteira de vacinação do pequeno está em dia. Ao concluir, faz um apelo: “Vacina é um ato de amor, você está cuidando daquilo que você ama”.
Vacina sim!
A chave para superar a desconfiança causada pela desinformação é sempre a ciência. É o que defende o pesquisador Edson Elias: “É preciso mostrar dados, por exemplo, indicando que antes das campanhas de vacinação no Brasil, nos anos de 1980, tínhamos 3 mil casos de poliomielite paralítica por ano no país e agora temos zero”, orienta. “Você olha uma população vacinada e uma população não vacinada e vê a diferença. Nos Estados Unidos, há 40 anos, tínhamos todo aquele ‘exército’ de crianças com muletas, é impressionante rever as fotos. A própria covid é a prova de que vacinas funcionam”, atesta.
Edson lista ainda uma série de outros exemplos de sucesso dos imunizantes sobre as doenças, como febre amarela, sarampo, meningite bacteriana, caxumba, rubéola e catapora, dentre outras. Todas controladas com a vacinação. “É muito diferente um ambiente vacinado de um não vacinado. As pessoas não têm que ter medo de vacina, têm que ter medo de não vacinar”, frisa.
Sandra também ressalta a importância da imunização. “Eles [os negacionistas] foram vacinados, suas mães os levaram para tomar vacina e agora eles negam isso a seus filhos?”, questiona. E completa, com um conselho: “Vacinem, gente! Olhem tudo o que eu perdi na minha vida. Eu poderia ter conhecido outras crianças, feito outras amizades, ter meus namorinhos e não tive. Poderia ter vivido de uma forma diferente e não vivi”.
“Não esquecam que a pólio existiu e hoje ela está erradicada no Brasil desde que todos tomem a vacina.”
Sandra Ramalhoso
Daqui para frente, Sandra espera que outras pessoas tenham a oportunidade que ela não teve. “A gente até pensa em reparação, mas hoje, mais do que isso, deixo meu incentivo para que as famílias levem suas crianças para vacinar: vocês têm a vacina na porta, basta ir até a UBS [Unidade Básica de Saúde], para que seus filhos não corram esse risco”. E ela acredita que as lembranças da pólio são um alerta de que é preciso manter as estratégias de vacinação: “Não esqueçam que a pólio existiu e hoje ela está erradicada no Brasil desde que todos tomem a vacina”.
Já o médico Acary revela um desejo: “Sonho que nós não tenhamos mais a necessidade de notificar a paralisia flácida. O dia que a gente perder essa necessidade significa: O mundo está livre da pólio. E pólio nunca mais!”. Que esse dia chegue logo.
O que é poliomielite?
Também conhecida como pólio ou paralisia infantil, a poliomielite é uma doença causada por um enterovírus chamado poliovírus. Ele se aloja no intestino das pessoas infectadas e, em casos graves, pode afetar o sistema nervoso central e comprometer neurônios motores, ocasionando atrofia muscular e a paralisia flácida aguda.
Apesar da gravidade de sua eventual complicação, a grande maioria dos casos são assintomáticos ou causam sintomas leves, como diarreia, mal estar, tosse, coriza ou febre. E a pessoa se cura em poucos dias. A OMS estima que uma em cada 200 infecções leva a uma paralisia irreversível (geralmente nas pernas). Porém, entre esses casos graves, 5 a 10% das pessoas morrem por paralisia dos músculos respiratórios.
Geralmente associada a condições de pobreza e ausência de saneamento básico, a poliomielite é altamente contagiosa e transmitida de pessoa a pessoa por via fecal-oral ou, menos frequentemente, por um meio comum, como a água ou alimentos contaminados. A doença afeta principalmente crianças menores de cinco anos, mas também pode acometer adultos. A vacinação é a única forma de prevenção, portanto, todas as crianças menores de cinco anos devem ser imunizadas.
Sabin e Salk: vacinas que derrubaram a pólio
As vacinas criadas por Jonas Salk e Albert Sabin foram responsáveis pela queda avassaladora de casos de pólio em todo o mundo nas últimas décadas e hoje representam a única forma de prevenção da paralisia infantil. Suas principais diferenças estão na composição e na forma de aplicação. Criada primeiro, na segunda metade da década de 1950, a vacina Salk é injetável e utiliza o vírus inativo da pólio. No Brasil, desde 2016 ela é a primeira vacina a ser aplicada: nos 2, 4 e 6 meses de vida do bebê.
A vacina Sabin passou a ser utilizada no início da década de 1960 e logo se tornou uma grande aliada no combate à pólio, por ser administrada oralmente, o que facilitava seu transporte, acondicionamento e aplicação, além de requerer um custo operacional menor. Por ser feita com o vírus atenuado, ou seja, enfraquecido, a vacina da gotinha atua no intestino e gera resíduos do vírus da pólio no meio ambiente, por conta de sua eliminação na rede de esgoto junto às fezes da criança vacinada, o que também contribui para a chamada imunidade de rebanho.
Mas em populações com baixa cobertura vacinal, isso pode ocasionar um risco raro de mutações e fortalecimento do vírus. No Brasil, atualmente, ela é utilizada como reforço aos 15 meses e 4 anos e em campanhas anuais de vacinação, porém, a proposta do Ministério da Saúde é substituir as doses de reforço por uma única aplicação da vacina injetável até o fim de 2024.
Segundo a OMS, entre 1988 e 2018, o número de pessoas com poliomielite diminuiu mais de 99%, saindo de uma estimativa de 350 mil casos para 29 notificações, em todo o mundo. Não há dúvida de que as grandes campanhas de vacinação foram fundamentais para esse avanço.
Vigiar para não voltar
A pólio selvagem está oficialmente extinta da América do Sul desde 1994, mas especialistas e autoridades reforçam continuamente o risco de reintrodução do vírus se houver falha na cobertura vacinal. Um relatório da Opas de 2023 informa que, naquele mesmo ano, o Peru apresentou um caso de paralisia infantil causada por pólio em uma criança indígena não vacinada. O fato fez Radis buscar uma resposta para esse caso e entender por que mesmo com uma nova ocorrência registrada recentemente a doença ainda é considerada erradicada no continente.
Para isso, Edson Elias é didático. O pesquisador da Fiocruz explica que o vírus que infectou a criança peruana neste novo caso não é o tipo selvagem. A infecção ocorreu pelo que os pesquisadores chamam de vírus vacinal derivado.
Esse tipo de infecção só acontece em locais com baixa cobertura e ainda assim é uma ocorrência raríssima. A vacina da gotinha, Sabin, tem o poliovírus atenuado em uma quantidade inofensiva ao organismo. Em sua cadeia de atuação, esse vírus se multiplica no intestino da pessoa imunizada e é descartado durante alguns dias nas galerias de esgoto. Em uma população não imunizada, esses vírus podem circular e entrar no organismo de outras pessoas e, ao não serem combatidos, podem sofrer mutações.
Após algum tempo desse ciclo, esse novo vírus já completamente diferente do original da vacina pode readquirir uma virulência e aí sim, em contato com uma pessoa não vacinada, representar algum risco de causar paralisia flácida, como o que ocorreu na aldeia indígena peruana em 2023. “Agora, se todo mundo estiver vacinado, entre 90 e 95%, que a OMS considera ideal, nunca vai acontecer um caso como esse. O problema é quando tem menos pessoas imunizadas”, enfatiza Edson, citando o próprio caso em análise. “Esse garotinho do Peru, eu soube que os pais adiaram a vacinação e não deu tempo”, lamenta.
O pesquisador da Fiocruz explica ainda que, no caso do Brasil, a preocupação com a pólio do vírus vacinal derivado ou modificado é ainda mais injustificável, pois atualmente o primeiro ciclo de imunização é feito com a vacina Salk, injetável, e portanto com o vírus inativado. Ainda assim, reforça não haver motivos para descredibilizar a vacina atenuada, que tanto contribuiu para o atual cenário de controle da doença: “Foi um esforço louvável essa vacina (Sabin). Graças a ela o mundo ficou praticamente livre da pólio”, enfatiza.
Vacinação da pólio no Brasil
nos últimos 10 anos (2014 a 2023)
Meta: maior que 95%
Fonte: Ministério da Saúde (TABnet e Painel de cobertura vacinal)
Memória: Pólio na Radis
Em julho de 1982, a primeira edição de Súmula (uma das publicações que antecederam a atual revista Radis) já destacava o êxito das campanhas vacinais contra a poliomielite. A publicação ressaltou a queda brusca de ocorrência da doença no início da década de 1980, trazendo o comparativo da média de casos detectados entre 1975 e 1979 (2.538,8 por ano) com os números dos anos seguintes: 1.250 em 1980, 125 em 1981 e até a data da publicação do informativo, apenas um confirmado e 43 como suspeitos em 1982. “Especialistas em saúde atribuem esse recurso aos quatro dias nacionais de vacinação, realizados entre junho de 1980 e junho de 1981”, afirma o texto (clique para ler).
Saiba mais:
Todas as publicações de memória do Programa Radis de Comunicação e Saúde estão disponibilizadas em nosso site, na seção Acervo (Hemeroteca Radis e Coletânea Radis 20 anos: 1982-2002).
As pessoas reagiram a este conteúdo
Muito obrigada pela excelente matéria sobre a síndrome pós pólio. Eu mesma fui vítima do
Vírus aos 8 meses de idade e hj, aos 68 anos pretendo retomar meu tratamento para me prevenir da possível volta dessa terrível doença. Sou Da comissão Polioplus do Rotary Internacional e participo ativamente nas campanhas de vacinação ! Sou a Zé Gotinha oficial nas conferências rotarianas