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Sexo e paladar. Um “homem, def e gay”, como João Paulo Lima define a si próprio, faz a aproximação entre a sexualidade e os sentidos como uma sugestão para despertar a própria libido e discutir saúde sexual. Aos 42 anos, João é artista, educador e escritor. Fala da Bahia. É também uma pessoa com deficiência — por isso o “def”. Teve a perna direita amputada no início da adolescência. Acostumado com o palco, João gosta de ser o centro das atenções, como ele mesmo diz. Aprecia a forma como os olhares o atingem em cena. E gosta que seu corpo provoque. Seja inquietação, seja desejo. 

Tanto na vida pessoal quanto na profissional, João tenta se desvencilhar das prescrições que o impedem de experimentar a própria existência e descobrir as reações que o corpo tem aos estímulos do outro e do ambiente. Apesar da naturalidade ao tocar no assunto, João lembra que nem sempre foi assim. “A sexualidade demorou a vir”, conta. 

E o seu relato não é um caso isolado: a escritora Amanda Soares e a ativista e pedagoga Luciana Viegas têm histórias semelhantes. Os três são personagens do documentário Assexybilidade, do cineasta Daniel Gonçalves. Em conversa com a Radis, todos eles compartilham experiências sexuais para mostrar que sexo não cabe só nos programas da madrugada. E que é preciso vencer o tabu de que as pessoas com deficiência não têm vida sexual.

Filmes de adulto

Pessoas com deficiência compartilham experiências para incentivar debate sobre sexualidade e saúde sexual
Daniel Gonçalves. — Foto: Acervo pessoal.

Há pouco mais de duas décadas, quando o cineasta Daniel Gonçalves se despedia das brincadeiras de criança e mergulhava no estranho mundo da adolescência, ganhar a primeira Playboy foi um verdadeiro “rito de passagem”. Na época, qualquer filme pornográfico ainda era consumido de forma analógica, o que tornava a experiência bem mais rara e trabalhosa. Ser pego pelos pais era bem mais frustrante também. Por isso, todo cuidado era pouco na hora de circular pela sessão de “filmes de adulto” da locadora.

Aos 39 anos e morador do Rio de Janeiro, Daniel também é jornalista e tem uma deficiência não identificada pelos médicos. E tudo bem. Ele não está à procura de qualquer diagnóstico, como faz questão de enfatizar, ainda que nem sempre tenha sido assim. Falar sobre sexo também não é mais um problema. Agora, o cineasta leva a saúde sexual às telonas. 

Assexybilidade, o segundo longa do diretor, deve ser lançado no segundo semestre de 2023 e reúne personagens com deficiência do Nordeste e do Sudeste do país para “falar sobre paquera, flerte, encontros, beijo na boca e, claro, sexo. Tudo isso contado por homens, mulheres, gays, lésbicas e transexuais”, diz a sinopse na Agência Nacional de Cinema (Ancine). Os bastidores do filme podem ser conferidos aqui.

Com os relatos, ele quer mostrar que o desejo também faz parte da vida de corpos com deficiência, que, muitas vezes, têm a sexualidade negada ou reprimida. Daniel pretende, ainda, ampliar a discussão para além da relação sexual, atingindo temas como família, arte e direitos, conforme fica evidente em teaser veiculado no evento da Fiocruz “Pessoas com deficiência e saúde sexual: o que deveríamos estar fazendo?”, ocorrido em dezembro de 2022. “Eu precisava dar essa incomodada”, afirma o cineasta à Radis

Fantasias, sensações e dependência

Pessoas com deficiência compartilham experiências para incentivar debate sobre sexualidade e saúde sexual
Amanda Soares. — Foto: Acervo pessoal.

Indicada por Daniel, a escritora Amanda Soares abre o papo com uma confissão: “Sou um tanto romântica”, diz. Mas sua fala não se restringe às expectativas que projeta nas relações. É o próprio ato de imaginar que a encanta, de conhecer as sensações que a mente desperta ao elaborar as mais diversas fantasias. Uma recorrente é pensar que “quando a pessoa está comigo, ela está no controle do meu corpo”, detalha Amanda, que, assim como João, fala da Bahia.

Com apenas 22 anos de idade, a também escritora e pesquisadora, que tem paralisia cerebral, possui um conceito que ajuda a compreender as dinâmicas sociais e as barreiras enfrentadas por corpos com deficiência: dependência naturalmente livre. A pedido da reportagem, ela cita um exemplo para melhor explicá-lo:

“Quando você vai pegar um ônibus, você depende de um motorista. A dependência é um fator natural, usado a seu favor ou a favor de outra pessoa”, analisa. Desse modo, para a escritora, toda a sociedade é organizada em relações de dependência, através de uma distribuição de tarefas. O ponto-chave, segundo ela, é que depender de algo só é visto como um problema quando se trata de uma pessoa com deficiência. 

Dona de palavras hábeis, Amanda Soares reforça que sair desse local restrito em que o preconceito a coloca é uma tarefa diária que exige uma mudança na maneira de pensar e uma reflexão acerca das próprias vontades. Por isso, tem aprendido a colocar os seus “quereres”. 

Sexo e arte contra o capacitismo

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João Paulo Lima. — Foto: Acervo pessoal.

Sob a luz vermelha, com uma camisa BDSM preta, jockstrap e cueca brancos, o artista e professor João Paulo circula em cena. As muletas estão ao seu alcance. As imagens são do seu espetáculo de dança Devotees, que, mais recentemente, esteve em cartaz no fim de janeiro no Teatro José de Alencar, em Fortaleza (CE). Em cima do palco, João reproduz artisticamente movimentos de cunho sexual. 

BDSM é uma sigla em inglês para um conjunto de práticas sexuais que, de acordo com cada uma das letras, podem envolver amarração, dominação, submissão e algum nível de dor. Jockstrap é uma peça íntima que cobre apenas a parte da frente, deixando as nádegas à mostra — e também a cicatriz da amputação no lado direito, no caso de João Paulo.

Para ele, o caráter evidentemente sexual do espetáculo leva a plateia a questionar os próprios preconceitos. “Será que você está me desejando e está com medo de me desejar?”, indaga. A pergunta do artista está relacionada a uma nuance do capacitismo que infantiliza corpos com deficiência, negando-lhes a possibilidade de atrair sexualmente alguém e de sentir atração. 

Capacitismo é uma forma de discriminação contra pessoas com deficiência, considerando-as inferiores por sua característica física, intelectual e/ou sensorial. E o termo devotees, que nomeia a apresentação de João Paulo, refere-se a um fetiche direcionado a esses corpos. Embora nem todos considerem o fetiche problemático, é um tópico sensível na medida em que é atravessado pelo capacitismo e pode reduzir a pessoa a uma fonte de prazer sexual. 

Diagnóstico e autodescoberta

A sexualidade é uma “dimensão integral de tudo o que somos, sentimos e fazemos”, segundo o Guia de Direitos e de Saúde Sexual das Pessoas com Deficiência, desenvolvido pela Fiocruz em parceria com outras entidades, e, portanto, não se reduz ao ato sexual. Por isso, a saúde sexual inclui também a possibilidade de não haver sexo.

Pessoas com deficiência compartilham experiências para incentivar debate sobre sexualidade e saúde sexual
Luciana Viegas. — Foto: Acervo pessoal.

É o caso da ativista, pedagoga e professora de São Paulo Luciana Viegas, de 29 anos, mãe dos pequenos Luiz e Elisa, de 5 e 4 anos. Lu, que revela “não sentir falta de sexo”, recebeu o diagnóstico de autismo já na vida adulta, e entender quem era foi essencial para conseguir reafirmar os próprios interesses. “É assim que eu existo. É assim que eu me sinto bem”, declara. Luiz também tem autismo e Elisa está em processo de diagnóstico.

Bissexual e demissexual, Luciana conta que ser diagnosticada a permitiu diferenciar o hiperfoco em pessoas da paixão. Hiperfoco é uma característica do autismo que demarca um interesse restrito, ao qual a pessoa pode dedicar muito tempo e atenção. Também pode estar presente em outras condições.

No caso de Luciana, ela descreve seu hiperfoco como uma completa absorção pela vida e pelos hábitos de determinada pessoa. E, ao contrário da paixão, que é passageira, esse interesse é permanente. Da mesma forma, saber diferenciar um toque afetuoso de um invasivo foi algo que veio somente após a descoberta do autismo.

Ao contrário de Lu, o marido é uma pessoa que precisa de sexo com maior frequência. Na experiência dela, é fundamental que o casal marque na agenda algum tempo para conversar sobre a relação, porque a troca de palavras “não é uma coisa fluida, que acontece naturalmente”, devido à rotina — especialmente, quando se tem filhos. 

No caso de Luciana, o estresse diário é potencializado por uma sobrecarga sensorial, outra característica do autismo. Mas nada que as tentativas de diálogo e uma rede de apoio bem estruturada não possam resolver.

“Entender o que é uma relação sem ironia”, por exemplo, é um ato de humanidade, de conhecer e aceitar as particularidades do outro, detalha a ativista. Luciana refere-se à dificuldade que pessoas autistas podem ter em entender afirmações ambíguas ou indiretas. Ela integra o Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI) e foi a única brasileira cuja atuação na luta anticapacitista foi premiada pela comunidade Diversability no ano de 2022. 

Saúde sexual e direitos

Para Luciana, é necessário “modificar a estrutura neurotípica da relação” se quisermos construir laços mais saudáveis e inclusivos. Por fim, sua afirmação converge com as palavras de João, Daniel e Amanda ao sugerir que falar de sexo é ir além. É falar sobre as formas como nos relacionamos e expressamos nossos afetos e desejos, independentemente de ser uma pessoa com ou sem deficiência.

Os direitos sexuais da pessoa com deficiência são sustentados pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015. Entre eles, estão o direito à informação e à educação adaptadas e à variedade de métodos contraceptivos, além do respeito à privacidade e ao sigilo.

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