Apesar dos 22 anos de atraso, a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi recebida com enorme entusiasmo e otimismo, tanto por profissionais do campo da saúde quanto por operadores do direito. A exceção ficou apenas para algumas entidades médicas, tradicionalmente contrárias às tendências contemporâneas de transformação da assistência psiquiátrica, já que representam interesses de segmentos que veem riscos para seus empreendimentos.
Afinal, a resolução 487 de 15/02/2023, reconhece que os princípios e determinações da Lei 10.216/2001, que ficou conhecida como lei da reforma psiquiátrica, se aplicam aos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP), anteriormente denominados de manicômios judiciários. A lei não é nada radical; além de estabelecer proteção e direitos das pessoas internadas em instituições psiquiátricas, orienta que o modelo assistencial psiquiátrico deva ser redirecionado no sentido de serem superadas as instituições com características asilares, e que devam ser implantados serviços em regime aberto, com a participação dos próprios sujeitos, das famílias e da comunidade. As experiências de tratamento em liberdade já são realizadas em vários países do mundo e a tendência à superação dos arcaicos e violentos manicômios também é um projeto que anima e inspira profissionais de saúde, gestores e vários setores da sociedade.
No Brasil, na virada dos anos 70 para os 80, existiam mais de 80 mil pessoas internadas em manicômios. As famosas colônias de alienados e os demais manicômios sugavam 97% de todo o recurso financeiro que era destinado à psiquiatria. Os tempos de permanência hospitalar não eram dias, semanas, meses ou anos, mas décadas. A colônia do Juquery chegou a ter mais de 20 mil internos em condições análogas a dos campos de concentração nazistas. No livro (Colônia): Uma Tragédia Silenciosa, lançado na Fiocruz, em 2008, foram publicadas fotografias da Colônia de Barbacena que chocavam quem as visse. O curta metragem Em Nome da Razão, de Helvécio Ratton, não deixa dúvidas quanto ao caráter cruel e violento das instituições psiquiátricas asilares. As ocorrências de mortes por desnutrição, infecções elementares, frio e espancamento eram comuns e naturalizadas em tais instituições.
Uma simples olhada nestes hospitais deixava claro que a existência dos mesmos não se explicava por uma finalidade de tratamento de transtornos mentais. As pessoas internadas naqueles hospícios eram pobres, negras, analfabetas, periféricas, enfim, eram pessoas para os quais não existiam (e ainda não existem) políticas públicas de promoção e defesa da vida, de educação, de trabalho, de cuidado e bem-estar social. Eram pessoas que estavam ali para serem geridas como não-pessoas. Pesquisas realizadas na época demonstravam que uma parte expressiva não recebera um diagnóstico psiquiátrico, e que as que os tinham, poderiam e deveriam ser cuidadas em dispositivos reais de tratamento e cuidado em serviços e dispositivos comunitários.
Este processo, que construiu um forte movimento e base social, se convencionou denominar de reforma psiquiátrica. Um processo que atuou em favor da construção do SUS e da lei da reforma psiquiátrica e implantou uma real transformação do modelo assistencial. Foram fechados mais de 60 mil postos de internação manicomial ao mesmo tempo em que foram abertos 2858 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nos vários territórios do país, foram criadas residências assistidas para pessoas sem casa ou sem família e outras situações de vulnerabilidade, foram criadas oficinas de trabalho e geração de renda, centros de convivência, projetos de arte e cultura inclusivos, foi instituída uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), embora ainda bem aquém das necessidades reais!
Apesar de tudo, as transformações não chegavam aos HCTP na medida em que, entendia-se, estavam submetidos ao poder judiciário, portanto fora do âmbito da saúde, e pelo fato de serem pacientes judiciários, em princípio autores de delitos, não seriam beneficiados pelos princípios de direitos humanos e formas alternativas de tratamento. Ocorre que os internos em tais instituições foram institucionalizados por um procedimento jurídico denominado de medida de segurança. Por considerar-se que se cometeu um delito por efeito de um transtorno mental, o acusado não se tornaria réu, por ser considerado inimputável. Desta forma ele iria para uma instituição de custódia para receber um tratamento e não cumpriria uma pena. Os operadores do direito ficaram perplexos ao tomarem conhecimento de que tais pessoas são vítimas de prisões perpétuas porque a medida de segurança determina um tempo mínimo de tratamento mas não um limite para o mesmo. Para receber a alta o paciente deve receber um laudo de cessação de periculosidade, algo de difícil definição que, na prática, os médicos não querem emitir, pois é uma espécie de exercício de futurologia. Desta forma, os internos vão permanecendo e cumprem prisão perpétua, medida inexistente no código penal brasileiro, e ficam para sempre nos manicômios judiciários.
O filme A Casa dos Mortos, de Debora Diniz, retrata com imagens e depoimentos os detalhes deste mundo de terror que são tais manicômios e a vida das pessoas que ali passam suas vidas. E, de forma análoga aos cárceres em geral, as pessoas que estão em um HCTP não necessariamente foram autoras de delitos. Conflitos pessoais, familiares, trabalhistas, raciais, opressões variadas, foram responsáveis pela internação de muitas daquelas pessoas.
No Brasil já existem experiências exitosas com larga experiência de substituição do modelo manicomial judiciário pelos princípios da Reforma Psiquiátrica. Duas delas são emblemáticas: o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAI-LI), do estado de Goiás, e o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), de Minas Gerais. Com base nestas duas experiências, o Ministério da Saúde elaborou proposta que atende às Medidas de Segurança em regime de tratamento externo. Enfim, as políticas de saúde mental no país vêm acumulando conhecimento e competência em lidar com a assistência psiquiátrica, inclusive no âmbito da questão judiciária, e certamente tem condições de fazer valer a possibilidade de estender aos pacientes dos HCTP um real tratamento digno, e não de apenas serem mantidos aprisionados e maltratados.
São menos de 2 mil pessoas cumprindo medidas de segurança em hospitais de custódia ou em estabelecimentos penais comuns. É possível que o fim (de parte) do inferno esteja próximo. Mas existem outros infernos nos manicômios não judiciários que ainda existem e nas “comunidades terapêuticas” para tratamento de álcool e drogas, que precisam entrar na agenda da luta contra as violações dos direitos humanos no Brasil.
* Presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e pesquisador Sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz), um dos pioneiros do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica.
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