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A demarcação dos territórios indígenas ultrapassa as fronteiras que dividem a terra e o “ser humano”. Ao se discutir direito ao território, é preciso entender esse espaço como um lugar de manutenção de línguas, saberes e tradições. É a partir da terra que nações se formaram e puderam, aquelas que resistiram à colonização, perpetuar suas identidades. 

Entretanto, corpo e território foram dissociados pelas caravanas que chegaram à terra Brasil. Para os estrangeiros, ao contrário das cosmovisões originárias, os recursos naturais são vitais apenas para o mercado, onde elas podem ser expropriadas e usurpadas como produtos. Esse projeto que segue em curso nos dias atuais, presenteou aqueles que ocupam e protegem esses biomas, com a perseguição sistemática do Estado que marca violentamente territórios, pessoas e a sua história. 

Um dos pilares da violência contra os povos indígenas é o apagamento. Desde o momento que nações inteiras foram equivocadamente denominadas como “índios” e, assim, descaracterizadas, o projeto colonial passou por manutenções, de forma a naturalizar o etnocídio para a modernidade. Na era Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945), Getúlio Vargas desenhou, ao lado de Cândido Rondon, o presidente do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a imagem do bom selvagem aos indígenas, a fim de integrá-los à sociedade brasileira. Por entenderem que os nativos tinham uma identidade transitória e deveriam evoluir, a Marcha para o Oeste resultou em fugas em massa dos indígenas de suas terras originárias, quando não eram doutrinados ou executados. 

Luta contra o marco temporal mobiliza indígenas de todas as etnias e idades, como anciã Isabella Xokleng, fotografada em frente ao STF, em 2021. Foto: Isabella Kariri.
Luta contra o marco temporal mobiliza indígenas de todas as etnias e idades, como anciã Isabella Xokleng, fotografada em frente ao STF, em 2021. — Foto: Isabella Kariri.

Na ditadura militar (1964-1985), foi Castelo Branco, com o Plano de Integração Nacional (PIN), que escreveu outro capítulo sangrento, de expulsão e encarceramento de povos inteiros. A construção de vias como a Transamazônica (BR-230), hidrelétricas e latifúndios, expurgaram milhares de pessoas. Os chamados reformatórios agrícolas, presentes em diversas regiões do Brasil, eram compostos por indígenas retirados de seus territórios, para que começassem a trabalhar e deixassem de “serem índios”. Entretanto, nem a Comissão da Verdade conseguiu revelar todas as atrocidades que aconteceram nesses verdadeiros campos de concentração brasileiros. 

O Estado, ao longo dos séculos, participou do genocídio dos povos indígenas do Brasil, por omissão ou por intervenção. Diversas nações indígenas foram violadas tendo sido mortas e seus sobreviventes obrigados a dispersarem-se para outros territórios apenas retornando, em períodos mais recentes, através de retomadas de seus territórios e, portanto, de suas cosmovisões e modos de vida. Após a homologação da Constituição de 1988, que define que: (…) “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e respeitar todos os seus bens”, ataques são direcionados a essa população, ainda que por meios legais. 

O Brasil tem um pacto com o agronegócio, que permeia a política e representa os interesses dos herdeiros da colonização. Hoje, está em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), a tese jurídica do marco temporal. Essa tese anti-indígena foi nomeada pela deputada federal Célia Xakriabá como genocídio legislado. Isso porque defende que apenas serão demarcados os territórios que já eram ocupados ou disputados na data de 5 de outubro de 1988.

O marco temporal apareceu em 2009 em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em 2003, iniciou-se uma disputa pela terra dos Xokleng quando foi retomada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ Xokleng, sendo uma parte dela reivindicada pelo governo de Santa Catarina para agricultores não indígenas. A justificativa no STF é a não ocupação antes de 1988, mesmo sendo de conhecimento a dispersão dos sobreviventes da nação xlokleng no episódio do genocídio de seu povo.

A decisão ignora todo o processo histórico de violência contra os povos indígenas. As terras ancestrais reivindicadas fazem parte da história e cultura de povos que tiveram suas raízes arrancadas à força. É calculado que, caso a tese seja aprovada, cerca de 95% dos 375 povos em território nacional sejam afetados e fiquem em estado de extrema vulnerabilidade. As disputas territoriais matam dezenas de indígenas por ano, seja por grileiros, mineradores, madeireiros, fazendeiros ou por vulgar negligência. O que esperar caso essas mortes sejam novamente respaldadas pelas instituições governamentais? 

Não serão apenas os povos originários do Brasil que serão atingidos caso a tese do marco temporal passe no STF. Dados do Banco Mundial, de 2016, revelam que os indígenas representam 5% da população, mas são responsáveis pela preservação de cerca de 80% da biodiversidade. Defender a demarcação dos territórios indígenas é também defender a natureza como um sujeito de direitos, que deve ser preservado, para que possamos pensar o futuro das próximas gerações. 

Por fim, devemos nos perguntar, a partir do que indica o pesquisador Eduardo Viveiros de Castro: “Em que tipo de mundo, em que regime de Terra, queremos viver? Não se trata apenas de responder à questão com argumentos científicos, mas sim de tomar decisões existenciais, isto é, políticas”. Dessa forma, devemos entender e reproduzir as estratégias dos indígenas, chamados por ele como especialistas em fim de mundo. “Nós, que agora estamos no início do processo de transformação do planeta em algo parecido com a América do século 16: um mundo invadido, arrasado e dizimado por bárbaros estrangeiros, no caso, nós mesmos”. Um importante passo para fazer valer a autodeterminação dos povos e desafiar o Estado e o mercado é dizendo não ao marco temporal para defender os direitos originários.

* Isabella Kariri é indígena da etnia Kariri, estudante de Ciência Política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e bolsista PIBIC do Neepes/Ensp/Fiocruz, em projetos de promoção emancipatória da saúde indígena, além de fotógrafa e comunicadora ativista.

Isabella Kariri e cacique Raoni, na 3ª Marcha das Mulheres Indígenas em 2023. — Foto: Isabella Kariri.

Isabella Kariri e cacique Raoni, na 3ª Marcha das Mulheres Indígenas em 2023. — Foto: Isabella Kariri.
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