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Após exames de rotina, aos 30 anos, em 1990, Jenice Pizão se viu diante do HIV — “sem entender nada, só com a certeza da morte rápida”. “A culpa e o medo da discriminação me paralisavam, mais ainda quando pensava em minha filha, com 14 anos na época”, relembra. O conhecimento da ciência e dos profissionais de saúde ainda estava em construção — assim como o SUS, que acabava de nascer. “O único medicamento era o AZT, com um custo elevado para uma professora como eu e além da alta toxicidade hepática”.

“O acesso a psicoterapia foi fundamental para minha autoestima e melhor compreensão da realidade da epidemia de aids, conhecer as terapias integrais e complementares que poderiam estimular o sistema imunológico e me fortalecer para enfrentar o medo, o preconceito e a discriminação. Dessa forma, consegui fazer a escolha pela vida, com dignidade, sem culpas, porém, com responsabilidade”, relata. Segundo Jenice, assim ela descobriu como sair “da cadeira de vítima” e assumir “o protagonismo de mulher vivendo com HIV/aids”. 

“Assim falando, parece simples, mas não é. É um processo que dura o tempo de cada pessoa e está diretamente ligado a diversas questões, como ter um salário para seu sustento, ter moradia, ter apoio familiar ou de amigos, ter serviço médico especializado e multidisciplinar garantido pelo SUS e consciência de seus direitos”, considera. Em 1996, ela se tornou uma ativista do movimento de aids e, em 2004, foi uma das fundadoras do Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas (MNCP), da qual atualmente é secretária política. Hoje, aos 62 anos, em Campinas (SP), coordena o grupo Flores Vermelhas, de ajuda mútua com mulheres cis e trans que vivem ou convivem com HIV/aids.

[Leia a entrevista completa com Jenice Pizão, que é parte da reportagem do mês de dezembro sobre mulheres vivendo com HIV/aids]

Gostaria que você começasse contando a sua história de vida com o HIV/aids. Como foi a descoberta? Que desafios você enfrentou ao longo dos anos para vencer os estigmas e o preconceito? Que dificuldades você enfrentou em relação à saúde mental e autoestima? 

Em 1990, aos 30 anos, através de exames de rotina, me vi com o diagnóstico de HIV, sem entender nada, só com a certeza que a morte seria rápida. A culpa e o medo da discriminação me paralisavam, mais ainda quando pensava em minha filha, com 14 anos na época, que ficaria sem ninguém para dar o suporte emocional e financeiro e com o peso de uma “mãe aidética” (logo aprendemos o perigo desta expressão, estigmatizante, ofensiva, além de um erro gramatical). Os médicos, tão perdidos quanto nós, aprendiam conosco. O único medicamento era o AZT, com um custo elevado para uma professora como eu e além da alta toxicidade hepática. O conhecimento da ciência, dos profissionais de saúde e o SUS estavam sendo construídos. A Declaração dos Direitos Fundamentais do Portador de HIV/AIDS é de 1989 e foi elaborada em uma reunião nacional da Rede Brasileira de Solidariedade de ONG/aids, em Porto Alegre, formada por ONG’s que trabalhavam com aids.

Desde o início, tive apoio emocional de alguns amigos e da família, o que facilitou todo o processo. O acesso à psicoterapia foi fundamental para minha autoestima e melhor compreensão da realidade da epidemia de aids, além de conhecer as terapias integrais e complementares que poderiam estimular o sistema imunológico e me fortalecer para enfrentar o medo, o preconceito e a discriminação. Dessa forma, consegui fazer a escolha pela vida, com dignidade, sem culpas, porém, com responsabilidade. Portanto, fui saindo da cadeira de vítima e assumindo meu protagonismo de mulher que vive com HIV/aids (MVHA). 

E como foi para você trazer a sua história publicamente e qual é a importância do apoio das mulheres com HIV em rede?

Sentia necessidade de conhecer pessoas com a mesma realidade, os grupos de ajuda mútua, afinal, outras pessoas também viviam seus medos e incertezas e buscavam, cada um de seu jeito, sobreviver à epidemia da aids. Alguns conseguiram, outros ficaram pelo caminho.

Assim falando, parece simples, mas não é. É um processo que dura o tempo de cada pessoa e está diretamente ligado a diversas questões, como ter um trabalho salário para seu sustento, ter moradia, ter apoio familiar e/ou de amigos, ter serviço médico especializado e multidisciplinar garantido pelo SUS e consciência de seus direitos.

Comecei a participar de encontros regionais e nacionais com a temática HIV/aids e entendi que tínhamos de lutar se quiséssemos políticas públicas de saúde. Ainda sem visibilidade na mídia, acompanhei a vitória de Nair Brito, em 1996, contra o Estado na luta para obter os antirretrovirais (ARV) e a garantia do tratamento universal e equânime, através do SUS.

Compreendi que a epidemia da aids trazia questões para além do tratamento médico. Havia uma vulnerabilidade acrescida em alguns grupos relacionada à orientação sexual ou questões raciais, culturais, econômicas; porém na mulher, estas se intensificavam com a desigualdade e a violência de gênero. Daí a necessidade de ter um movimento de mulheres vivendo com HIV/aids, para estimular a discussão de políticas públicas (saúde, moradia, educação, lazer, cultura) que precisavam responder a estas demandas. 

Assim, em 2004 surge o MNCP — Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas, embora em 2001 já iniciamos um projeto de capacitação de MVHA, “Cidadãs PositHIVas”, com temas importantes para nós, como desigualdade de gênero, controle social e SUS, entre outros.

Na sua visão, que desafios e vulnerabilidades são vivenciadas pelas mulheres vivendo com HIV/aids? São muitas as realidades e condições de vida, mas o que existe em comum?

Mesmo após 40 anos da epidemia de aids no Brasil, receber um diagnóstico de HIV é sempre impactante. Nós nos defrontamos com dificuldades e desafios pessoais, familiares, sociais e profissionais. Digerir o diagnóstico é sempre um processo que, para algumas mulheres aceitar e entender, ou não, pode levar anos. Com a revelação do diagnóstico, muitas vivenciam o desafio do preconceito e com isso, a rejeição do parceiro, da família e o medo do desemprego. Na maioria dos casos, nos deparamos com mulheres que vivem a solidão da angústia e do silêncio, ocultando o diagnóstico, na tentativa de manter a relação conjugal e familiar, um emprego ou até para buscar o sonho da maternidade. 

A violência também está presente nesse desafio da revelação. E, como já disse, esta violência não é apenas física, mas sexual, doméstica, moral, racial e patrimonial. São “as violências” que as mulheres vivenciam, acrescida do estigma e preconceito quando é uma MVHA.

São muitos os fatores que nos vulnerabilizam. O estigma, a discriminação e preconceito, o impacto do diagnóstico, as dificuldades na “nova rotina” de tratamento, visitas constantes aos serviços especializados e laboratórios para exames, quando se tem acesso, os efeitos adversos do próprio HIV nos corpos femininos, além dos efeitos colaterais dos antirretrovirais (ARV), já que existe um pequeno número de pesquisas científicas baseadas em corpos femininos. Por exemplo: um homem com 90kg toma a mesma posologia de medicamentos que uma mulher de 50kg, além de hormônios e outras questões específicas da saúde feminina. 

Outro tópico significativo é o racismo estrutural e as consequências nas questões da violência que ocasionam as desigualdades socioeconômicas, educacionais, entre outras, porém quando o tema da saúde é abordado, o retrato só piora. No caso de mulheres pretas e pardas, temos uma vulnerabilidade acrescida pelo preconceito existente no próprio serviço de saúde, o que dificulta o acesso ao diagnóstico precoce e tratamento, implicando na piora dos indicativos da saúde desta população.

E esse caldo difícil de digerir vai impactar na saúde mental das MVHA, visibilizando números maiores de depressão, ansiedade, síndrome do pânico, abandono de tratamento e outros, agravadas pela dificuldade ou demora em acessar profissionais da saúde mental, tanto nos Serviços Especializados como na Atenção Básica.

Como as mulheres lidam com os efeitos colaterais dos antirretrovirais, como a lipodistrofia? Como manter uma saúde física, mental e espiritual? Que estratégias podem ser pensadas para apoiar essas mulheres? 

A mudança na aparência é um incômodo para as mulheres com influência direta na qualidade de vida e graves consequências sociais e emocionais. Infelizmente, os procedimentos para “correção” dos efeitos colaterais dos ARV, como a Lipodistrofia, não são uma realidade de fácil acesso na rede pública. É importante salientar que o SUS realizou inúmeros cursos para médicos capacitando-os para os procedimentos, alguns até ambulatoriais, porém as pessoas vivendo com HIV/aids não conseguem acessar, ou porque os serviços deixaram de ser oferecidos ou porque os profissionais se desvincularam do SUS. 

Tentamos estimular alternativas para atenuar estes efeitos com programas de exercícios físicos, apoio nutricional e dieta balanceada e, mesmo assim, fazer uso regular de outros medicamentos para auxiliar o controle dos níveis de gordura e açúcar no sangue. Entretanto, temos um grande número de pessoas vivendo com HIV (PVHA) em situação de pobreza, pelo desemprego ou perda do benefício do INSS, dificultando as possibilidades de buscar estas alternativas, já que em alguns municípios nem os medicamentos básicos têm sido disponibilizados.

Qual é a importância do autocuidado?

Observamos a gravidade dos efeitos do HIV e dos ARV em nossos corpos e precisamos buscar caminhos, ao nosso alcance, para minimizar estes efeitos. É necessário escutar e tentar amenizar os sinais que o corpo nos envia e causam desconforto físico e mental. Entendemos que o autocuidado, pode ser uma alternativa simples e barata para entender quem somos, o que sentimos e o que precisamos mudar para melhorar este desconforto.

O MNCP tem trazido o tema do autocuidado para a pauta. No Encontro Nacional realizado no mês de julho de 2021, de forma online, tivemos uma mesa exclusiva sobre o autocuidado, com especialistas trazendo outros olhares, entre elas as PICS (Práticas Integrativas e Complementares no SUS), para complementar nosso tratamento. Também produzimos um vídeo animado com o tema, lives e podcast, sob a orientação de profissionais para cuidar da saúde física, mental, vibracional e espiritual. Neste mês de novembro realizaremos um seminário reforçando a importância do autocuidado.

Como a pandemia de covid-19 impactou a vida das mulheres vivendo com HIV/aids? 

Para além do desencontro nas informações sobre o coronavírus, com consequências para a saúde física e emocional, as mulheres foram as mais atingidas devido a questões socioeconômicas, pelo racismo estrutural, pela desigualdade de gênero e, consequentemente, pela violência doméstica.  A sobrecarga de trabalho doméstico, apoio os filhos nas tarefas escolares sem equipamentos adequados, convivência com a violência doméstica, o desemprego e a fome comprometeram, sem dúvida, sua saúde física e mental. Não podemos esquecer as mulheres pretas e pardas, como sempre, as mais impactadas com questões que vão além de sua condição sorológica.

Especificamente na rotina das pessoas vivendo com HIV, ocorreram alguns agravos nos Serviços de Atendimento Especializados (SAE), pois no auge da pandemia, o sistema de saúde foi direcionado para o atendimento específico da covid-19, acarretando horários reduzidos no funcionamento e demora maior nas consultas e exames. Houve dificuldades na disponibilização dos ARV, pois mesmo que o DCCI (Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis) indicasse a entrega para o período de 90 dias, a logística não foi avisada e daí, em diversos locais, as pessoas tiveram que retornar às farmácias com maior frequência, faltar ou atrasar no trabalho, gastar com transporte, e com isso, tiveram dificuldade na adesão aos ARV, gerando uma insegurança desnecessária na saúde de quem vive com HIV/AIDS.

É importante ressaltar que, nos últimos anos o INSS fez um corte nas aposentadorias por invalidez das pessoas vivendo com HIV/aids, impactando em sua saúde física e mental, aumentando ainda mais a situação de miséria, fome, o abandono do tratamento e o estigma social. Todas estas medidas desgraçadamente enfraqueceram a política de enfrentamento ao HIV/AIDS, impactando na prevenção e no aumento da vulnerabilidade das PVHA.

Que ameaças estão colocadas no atual contexto político e de desmonte no SUS? E que lacunas ainda existem nos serviços de saúde?

Até uns anos atrás, a atenção à epidemia de aids no Brasil teve avanços importantes, principalmente com o surgimento e fortalecimento do SUS, do movimento social de ONG e de pessoas vivendo com HIV/aids e um Estado com gestão responsável. Através do SUS, profissionais de saúde foram capacitados para tratar as PVHA adequadamente, com abertura de novos SAE e, a partir de 1996, com o acesso universal aos ARV (e depois, com novas drogas com menores efeitos colaterais), o Brasil se tornou referência mundial neste enfrentamento.

Porém, tudo isso foi sendo desmontado e atualmente estamos sendo ameaçados por uma política, no mínimo, irresponsável, que vê as PVHA como “despesa”, reforçando o estigma e a discriminação, retrocedendo aos pré-conceitos do início da epidemia, responsáveis pelo aumento do número dos casos entre homens, mulheres (e, consequentemente, seus filhos, pela transmissão vertical) que não se “encaixavam” nos estereótipos inventados.

É notório o esforço para desmontar o Estado do Bem-estar Social, com retrocessos nas políticas públicas em geral, em especial na de saúde e mais especificamente, a de aids. Tínhamos um Programa de IST, Aids e Hepatites Virais considerado referência mundial na luta contra a epidemia, porém este sofreu um golpe brutal tendo que integrar outras patologias, ou seja, não há mais uma exclusividade nas ações para o HIV/aids. Vivenciamos outras iniciativas irresponsáveis deste governo, dentre elas, o encerramento das redes sociais do Ministério da Saúde com matérias relacionados ao HIV/aids. A aids e a sexualidade se tornaram assuntos proibidos nas escolas, não existem campanhas adequadas de prevenção reduzindo o acesso a informações seguras de prevenção, contribuindo para a invisibilidade do tema HIV/aids. Politicamente, outro golpe foi o desmonte dos espaços de diálogo entre governo e sociedade civil, desconsiderando a necessidade da participação social no enfrentamento da epidemia de aids.

E para finalizar, não posso deixar de dar visibilidade para a falta de prevenção para mulheres com mais de 50 anos, casadas ou não. A sociedade precisa enxergar que houve grandes mudanças nos costumes para homens, mulheres, gays, cis ou trans, a medicina evoluiu melhorando a qualidade de vida da população e assim vivemos mais, viajamos, passeamos, dançamos e namoramos. Todavia, o Serviço de Saúde não nos vê como vulneráveis às IST, pois “imaginam” que nessa idade não temos vida sexual, principalmente se for separada ou viúva, dificilmente é discutido ou oferecido outras tecnologias de prevenção. Muitas de nós se sentem envergonhadas pelo desejo de viver sua sexualidade, não falam sobre isso e assim ficam mais vulneráveis a se infectarem. Diferentemente dos homens, cis ou gays, que são incentivados a “curtir” a vida. 

Sem dúvida, desde o início da epidemia de aids, as estatísticas mostram uma evolução gradativa no número de casos entre mulheres, um dos motivos pelo qual fundamos o movimento de MVHA e para estimular a prevenção de novos casos.  Agora, uma das pautas é sensibilizar a demanda por políticas de prevenção, voltada também para essa faixa etária e com perfil étnico-racial. 

Enfim, precisamos continuar a ser gatosas e, para isso, as informações claras e seguras nos serviços de saúde são fundamentais.

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