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Do início do governo Bolsonaro até setembro de 2022, 1.961 novos agrotóxicos foram liberados no Brasil, de acordo com levantamento da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, com dados consolidados a partir do Diário Oficial da União. “O que vemos é um despejo aqui de produtos que já foram banidos em outros países, inclusive onde são fabricados, por serem considerados perigosos para a saúde humana”, declara Juliana Acosta, enfermeira, mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos.

Foto: Reprodução.

Para se contrapor à tendência cada vez maior de liberação dos agrotóxicos no Brasil e alertar sobre os efeitos desses produtos na saúde e no ambiente, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida surgiu em 2011 como uma iniciativa pioneira da sociedade civil, reunindo movimentos sociais de produtores rurais, organizações sindicais, estudantes, pesquisadores e diversos outros setores. A campanha tem se mobilizado contra projetos que pretendem flexibilizar a legislação sobre o tema no Brasil — como o Projeto de Lei (PL) 1.459 de 2022, conhecido como Pacote do Veneno. “Se até hoje o Pacote do Veneno não foi aprovado no Congresso foi porque a campanha e várias outras organizações da sociedade civil promoveram uma mobilização que dificulta essa afronta à vida”, afirma Juliana.

Em entrevista à Radis para a reportagem de capa da edição de dezembro (243), Juliana ressaltou que o agronegócio não é o responsável por colocar comida na mesa da população brasileira — e que a agroecologia é um caminho para o combate à fome.

“Hoje são autorizados no Brasil produtos que o Estado não tem como monitorar”

Qual é o cenário atual do controle sobre agrotóxicos no Brasil?

Atualmente a regulação de agrotóxicos é tripartite, passa por avaliação de impacto agronômico, ambiental e sanitário, a nível central. Para a fiscalização, conta com a estrutura nos estados e municípios dos órgãos de saúde, agricultura e meio ambiente. Mas a realidade é de precariedade. Hoje são autorizados no Brasil produtos que o Estado não tem como monitorar, porque não existe laboratório que faça análise de todos os produtos autorizados, também porque não há profissionais suficientes para vigilância e muitas vezes os representantes da indústria de insumos estão mais próximos do produtor do que os agentes públicos. E se aprovado o PL 1459/2022, o Pacote do Veneno, que está em tramitação no Senado, vai piorar muito, porque é uma tentativa de concentrar poderes no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), ficando a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] com papel reduzido — e, com isso, acelerar ainda mais a aprovação de produtos que, comprovadamente, são perigosos para a saúde e o meio ambiente. Então o papel regulatório e fiscalizatório do Estado, que já é precário, pode piorar ainda mais. O que o Brasil precisa é investir em estrutura e pessoal para aprimorar a capacidade de fiscalização da exposição a produtos de natureza perigosa, como os agrotóxicos. 

“O que vemos é um despejo aqui de produtos que já foram banidos em outros países, inclusive onde são fabricados, por serem considerados perigosos para a saúde humana”

O governo Bolsonaro bateu recordes na liberação comercial desses produtos. Que interesses e pressões motivam essa tendência de liberalização ou desregulação do controle dos agrotóxicos no Brasil e como eles têm atuado diretamente no Congresso e no Executivo? 

Desde o início do atual governo foram 1896 produtos registrados, o que já é maior do que a soma de todos os produtos registrados entre 2003 e 2015, nos governos de Lula e Dilma. A pressão da indústria nos órgãos reguladores sempre existiu, mas a correlação de forças agora parece estar ainda mais a favor dos interesses do setor regulado, que argumenta que a fila é muito grande no Brasil e que produtos mais modernos precisam entrar no mercado, mas na verdade o que vemos é um despejo aqui de produtos que já foram banidos em outros países, inclusive onde são fabricados, por serem considerados perigosos para a saúde humana. O que o mercado quer é aumentar seus lucros sempre, custe o que custar, mas o Estado não pode ser conivente com isso. Em 2019, por exemplo, a Anvisa alterou critérios de classificação de substâncias, o que fez com que centenas de produtos que eram classificados como extremamente tóxicos e continham alerta na sua embalagem, agora pareçam inofensivos, uma manobra que mais prejudica do que protege a saúde da população, finalidade da vigilância sanitária. O lobby no Legislativo faz com que a bancada ruralista consiga maioria no Congresso e tenha mais facilidade para aprovar propostas que atendam aos interesses do agronegócio e exerça influência para dentro do Executivo, como no caso do Paraquat em 2020, em que parlamentares, empresários e órgãos de governo tentaram impedir de toda forma que as evidências científicas da toxicidade do produto levassem à sua proibição no Brasil. A decisão final da Anvisa foi pelo banimento, porém com um prazo abusivo para uso de estoques. Imediatamente após a decisão final, foram apresentados projetos na Câmara e no Senado para reverter o banimento. É um cabo de guerra permanente.

Que formas de resistência têm sido encontradas para construir outros modelos e denunciar os impactos deste modelo agrícola baseado no veneno? E qual é o papel da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos?

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida cumpre um papel de articulação de diferentes organizações, como movimentos sociais de produtores, organizações sindicais, representação estudantil, entidades científicas, conselhos profissionais, ONGs, associações, entre muitas outras. Desde 2011 atuamos no sentido de fazer a denúncia dos efeitos dos agrotóxicos e do agronegócio, e o anúncio da agroecologia como caminho saudável e sustentável para viver e produzir. Evidentemente não conseguimos superar a realidade que nos coloca como um dos países que mais expõem a sua população a estes produtos que nos envenenam e matam. Mas denunciando esta realidade disputamos a narrativa, ampliamos a consciência da população e criamos resistência para que o agronegócio e seus representantes no Executivo e Legislativo não se tornem onipotentes e impunes. Se até hoje o Pacote do Veneno não foi aprovado no Congresso foi porque a Campanha e várias outras organizações da sociedade civil promoveram uma mobilização que dificulta essa afronta à vida. Mais recentemente estamos articulando uma frente jurídica para apoiar os casos de comunidades atingidas por agrotóxicos e que enfrentam muita dificuldade para formalizar uma denúncia e, mais ainda, para serem indenizadas por seus danos.

“Não tem para onde correr, comprando tomate na feira ou molho de tomate no super mercado, se não for agroecológico e ou orgânico, vai comer veneno”

Para um leitor ou leitora pouco habituado com o assunto, qual é o tamanho do problema quando se fala em contaminação dos alimentos com agrotóxicos?

Temos o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), realizado pela Anvisa e vigilâncias sanitárias nos estados e municípios, que na sua última publicação, em 2019, apontou que 51% dos alimentos continham algum resíduo de agrotóxicos, 1 em cada 100 amostras tinha uma concentração capaz de causar uma intoxicação aguda e isso tudo é uma pequena parte do que podemos saber, porque apenas um terço dos ingredientes ativos registrados na Anvisa são monitorados no PARA. Tem também um programa de resíduos de contaminantes do Ministério da Agricultura que, em 2021, demonstrou grande contaminação de alimentos por metais pesados e agrotóxicos. Então estamos falando da presença de substâncias tóxicas além do limite permitido para cultura de alimentos que consumimos diariamente, como o arroz, o feijão, o tomate, a laranja. Em ambos os programas foram identificados também o uso de agrotóxicos que não são permitidos para determinadas culturas e a presença de agrotóxicos já banidos no Brasil. Em relação aos produtos ultraprocessados, sequer há uma forma de monitoramento constante pela Anvisa. Mas o IDEC [Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor] publicou recentemente pesquisas que mostram resíduos de agrotóxicos em produtos como iogurte e biscoitos que estão aí na lancheira de muitas crianças. Então não tem para onde correr, comprando tomate na feira ou molho de tomate no supermercado, se não for agroecológico e ou orgânico, vai comer veneno.

Também existem dados sobre a contaminação da água?

Para o monitoramento da água tem um programa da vigilância sanitária, que deve ser realizado pelos municípios, porém também não são dados encontrados facilmente pela população. Em uma reportagem de 2019, a Repórter Brasil e a Agência Pública revelaram que 50% dos municípios não fazem o devido monitoramento e, aqueles que fazem, mais de 90% encontram resíduo de agrotóxicos, sendo que 1 em cada 4 estava com amostras irregulares. Um grave problema que vemos é que os parâmetros para definir se uma amostra está irregular são permissivos e não consideram a múltipla exposição a diferentes substâncias e nem seus efeitos cumulativos no nosso organismo. Estes programas de monitoramentos deveriam ser constantes, ampliando o escopo de análise. Os resultados deveriam ser amplamente divulgados como alerta para a população e para os tomadores de decisão, e não encobertar a realidade como vemos atualmente.

Que tipo de violações de direitos e impactos em comunidades rurais e tradicionais são provocados pela pulverização aérea de agrotóxicos?

Quando os venenos são derramados por via aérea, comunidades inteiras são expostas, ou seja, moradias, plantações e espaços coletivos de convivência podem ser atingidos. Inclusive tem um caso muito divulgado de uma escola que foi atingida durante uma aplicação regular por avião. Sem falar nas situações em que a pulverização aérea é usada como arma química em territórios em disputa. Então são vários os direitos que estão ameaçados nestas situações, como o direito à saúde, ao meio ambiente equilibrado à alimentação e nutrição adequada. Inclusive relatores da ONU já emitiram pareceres neste sentido.

Um dos argumentos adotados pelo setor do agronegócio é de que não é possível produzir sem veneno — aquela máxima de que sem agrotóxicos “o Brasil para”. Em que medida esse argumento é uma mentira? Sem agrotóxicos, o Brasil para? 

Primeiro é preciso deixar claro que o agronegócio não é responsável pela produção dos alimentos que chegam à nossa mesa. Dados da FAO e do IBGE não deixam dúvida que a agricultura familiar é que cumpre essa função. Outro ponto é que não é verdade que sem agrotóxicos o Brasil vai parar. Na realidade o que não se sustenta sem agrotóxicos é o agronegócio e seu modo de produzir com monocultivo, sementes modificadas geneticamente que demandam cada vez mais fertilizantes e venenos. A agroecologia é a forma de produção de alimentos saudáveis que respeita e protege o solo, os mananciais, os biomas e a diversidade cultural. A produção recorde de arroz orgânico no Sul do país ficou bem conhecida e além desta experiência incrível, pequenos produtores batalham pela preservação das sementes crioulas, produção e comercialização de alimentos sem aditivos químicos. É crescente o número de pessoas preocupadas com a qualidade dos alimentos que consomem e isso aumenta a procura por feiras e outras experiências que colocam produtores e consumidores em maior proximidade. A agroecologia é o caminho para o combate à fome, e para isso, precisamos de acesso à terra, políticas públicas com financiamento adequado para pesquisa, assistência técnica e comercialização de alimentos saudáveis.

Conheça a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida

Site: http://contraosagrotoxicos.org/ 

Instagram: @contraosagrotoxicos

Twitter: @semagrotoxico

Facebook: https://www.facebook.com/contraosagrotoxicos

Youtube: contraosagrotoxicos

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