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Quando falou a uma plateia de médicos e outros profissionais de saúde, em fevereiro, sobre o sofrimento na obra de Portinari, o professor João Candido Portinari — filho do artista — disse: “A unidade na obra de Portinari é o sentimento, o humanismo, a profunda compaixão pelo ser humano”. Um mês depois da palestra no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, o novo coronavírus chegaria ao Brasil e o país iria mergulhar numa imensa crise sanitária, deixando ainda mais evidentes as misérias e desigualdades que o artista plástico tão bem pintou. Ainda que sua obra seja plural comportando também o lirismo e a leveza em muitos momentos, é quando pinta o sofrimento que o autor de “Guerra e paz” (painel erguido na sede da ONU) ganha contornos épicos. “Ele está mais atual do que nunca”, comentou João, que, desde o início da pandemia, adaptou as conferências sobre o pai ao formato online. 

Se Portinari estivesse vivo, o que estaria pintando? A pergunta foi dirigida a alguns fãs do artista, certa vez, em uma reportagem sobre uma exposição em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Como resposta, apareceram: a violência, o excluído, o sem teto, o sem terra, o sem trabalho, o sem esperança. Para João, era exatamente isso o que Portinari levaria para as telas hoje. “Sua obra sempre foi muito comprometida com o humano da vida”, lembrou. “Ele dizia que uma pintura que não fala ao coração não é arte, porque só ele a entende, só o coração poderá nos tornar melhores, e que era essa a grande função da arte”. Aos 81 anos, 40 deles à frente do Projeto Portinari, ajudando a catalogar e difundir o legado “pictórico e humanista” do pai, João disse à Radis que a “compaixão” é uma característica marcante na obra do famoso pintor modernista. “Não no sentido que evoca piedade e pena, mas no sentido anglo-saxão (Compassion), de empatia, de se colocar no lugar do outro, de sentir a dor do outro”, completou João. [Veja entrevista completa no site de Radis].

A emblemática série “Retirantes” é um bom exemplo de como esse sentimento se materializa na obra de Portinari. Em quatro telas pintadas entre 1944 e 1945, ele narra em pinceladas a saga de um povo e realiza um trabalho de forte denúncia social. Para alguns críticos como Clarival do Prado Valladares, “‘Retirantes’ foi a verdadeira via sacra de Portinari” — ainda que o artista seja conhecido também pelas célebres reconstituições que fez do sofrimento de Jesus Cristo até o Calvário (são dele: a famosa via sacra da Pampulha, em Belo Horizonte, e a da Igreja Matriz do Senhor do Bom Jesus da Cana Verde, em Batatais, São Paulo). “Poucos museus do mundo têm uma série tão dramática sobre o homem da sua terra como os ‘Retirantes’”, arrematou Valladares. Mas João gosta de lembrar da tela “Os despejados”, pintada 10 anos antes, em 1934, como o primeiro trabalho de Portinari com temática social. Segundo ele, é com essa tela que, pela primeira vez, o pintor toma uma posição de denúncia contra as injustiças e se solidariza com os menos favorecidos, os despossuídos, os excluídos.

Em “Os despejados” — se é possível descrever uma tela de Portinari —, vê-se em primeiro plano uma família de retirantes à beira de uma estrada de ferro. Um velho, duas mulheres, dois meninos e uma menina. Os pés descalços e as vestes incompletas sugerem condições mínimas de sobrevivência em meio a uma paisagem árida. Perto dos seis esquálidos, uma trouxinha de pertences e um baú de folha de flandres decorado por flores — o mesmo baú que surgirá repetidas vezes na obra de Portinari e que, de acordo com João, representa o tesouro das famílias de imigrantes italianos. “Servia para guardar a memória da família, o cacho de cabelo da menina, os óculos do avô, o cachimbo do tio”, relatou. “Isso representava, para meu pai, a memória dos mais humildes”. Atrás do grupo, dois caixões remetem às perdas durante a travessia. E em meio ao drama, o lírico. João chama a atenção para o burrinho azul que pode ser visto ao fundo, no alto, à esquerda. “Tem coisa mais poética do que colocar um burrinho azul diante de uma tragédia social?”

“Os Despejados” (1934), primeiro trabalho de Portinari com temática social: denúncia contra as injustiças; solidariedade aos excluídos
“Os Despejados” (1934), primeiro trabalho de Portinari com temática social: denúncia contra as injustiças; solidariedade aos excluídos

De Brodowski para Nova York

O infortúnio dos despejados, o sofrimento dos retirantes. Para João, isso nunca deixou de ter, no coração de Portinari, o mesmo impacto que teve em sua infância. Brodowski — o povoado em que o pintor nasceu e cresceu e virou inclusive tema de muitas telas — estava no itinerário das famílias que deixavam suas terras. “Quando criança, ele via famílias que iam morrendo pela estrada e isso o toca profundamente”, disse o professor, ao lembrar de um texto em que seu pai melhor resume o sentimento que vai lhe acompanhar por toda a vida: “Desde menino, tenho vivido o drama dos retirantes. Como deixar de fixar nos meus quadros aquilo que fez parte da minha infância, de minha vida, e ver uma vida melhor para os homens que trabalham a terra?” Seguindo algumas pistas encontradas em documentos, poemas, entrevistas e conferências — além das marcas nas próprias telas de Portinari —, João arrisca dizer que a raiz desse sentimento de compaixão está em “seu” Batista, o pai de Portinari.

Homem humilde, “seu” Batista veio para o Brasil junto com outros milhares de italianos, ainda no século 19, fugindo da miséria. “Eles chegavam aqui pelo Porto de Santos e ficavam aglomerados no pátio à espera dos trens que os levariam para as fazendas de café do interior paulista”, contou. “Meu avô foi parar numa região perto de Ribeirão Preto, um povoadozinho, praticamente uma parada para pegar café”. Foi na pequena Brodowski que “seu” Batista se instalou e casou com dona Domingas. Tiveram 12 filhos. Candido Portinari (também chamado de Candinho), o segundo deles, nasceu em 29 de dezembro de 1903. “Meu avô rapidamente assimilou o jeito brasileiro. Tinha uma pureza e uma bondade enormes”, recordou João, que conviveu com o avô até os 18 anos. “Meu pai contava que, naquela época, os leprosos passavam pela cidade do interior a cavalo, levando sinos pendurados no pescoço, e que, quando as pessoas ouviam os sinos, corriam a fechar porta, janela, porteira, porque tinham muito medo”. ‘Seu’ Batista, ao contrário, convidava-os a entrar em casa e lhes oferecia uma refeição. 

Certa vez, vasculhando a Internet, João encontrou uma espécie de plaquinha, com data de 914. Dizia que, na Idade Média, “portinari” era sinônimo de compaixão. “Ser um ‘portinari’ significava encontrar alegria na felicidade do outro, ajudar o próximo em dificuldades, emprestar o ombro sobre o qual chorar a quem tem o coração despedaçado”. Quando fala sobre a obra do pai, João costuma guiar o interlocutor por uma viagem fascinante, ilustrada com muitos trechos de cartas, depoimentos, entrevistas e telas de uma beleza arrebatadora assinadas por um artista que leva a compaixão até no nome. Foi assim durante a sessão online do Centro de Estudos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), exibida em 9 de outubro pelo canal do IOC no portal da Fiocruz, intitulada justamente “A compaixão na obra de Portinari”. 

Na ocasião, o professor recheou a conversa ainda com histórias que já fazem parte do folclore em torno do pai, revelando para os internautas o humor afiado de Portinari. Como o diálogo entre um senador que, diante da tela “Os Despejados”, cometeu o desatino de perguntar: “Portinari, onde já se viu um burro azul?” Recebeu como resposta: “Burro azul, nunca vi. Mas já vi muito burro senador!” Outra vez, quando a família real britânica — na figura de um imponente Duque de Windsor — quis lhe encomendar um quadro, mas antes procurou saber se o artista não teria nenhuma tela com flores, Portinari não hesitou: “Flores, não! Só miséria!” 

Mural “Guerra e Paz” (1956), que Portinari não chegou a ver instalado na sede da ONU: síntese máxima da compaixão na obra do artista
Mural “Guerra e Paz” (1956), que Portinari não chegou a ver instalado na sede da ONU: síntese máxima da compaixão na obra do artista

Guerra e paz 

“Guerra e paz é a síntese máxima de Portinari”, elaborou João, referindo-se ao mural gigantesco composto por dois painéis de 14 metros de altura — representando a guerra e a paz, do título — que está na entrada da ONU, em Nova York, desde sua inauguração em 1956, e acabou se tornando um símbolo da defesa dos direitos humanos. Naquela época o secretário-geral da instituição fez um apelo para que cada país-membro doasse de presente para a nova sede da instituição uma obra de arte que fosse o testemunho da cultura e da arte daquela nação. Pelo Brasil, o Itamaraty convocou Portinari, e o pintor se dedicou ao tema de sua escolha. “Tem maior compaixão do que ‘Guerra e Paz’?”, indagou João Portinari na entrevista à Radis. “Você vê que no painel da “Guerra”, ele não põe tanques, metralhadoras, soldados ou uniformes. Não existe isso. Existe só o sofrimento humano”. Colocados frente a frente, os dois painéis contrastam em cores e significado. “O painel da paz”, prossegue, “é uma exaltação à felicidade possível, à felicidade que o homem poderia ter”.

Mas “Guerra e Paz” tem acima de tudo um significado político, ele faz questão de enfatizar. “Vale por 500 discursos. Basta olhar”. A propósito, o filho de Portinari recorda que, depois da apresentação do painel no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica em que concluiu: “Olha, vê bem, penetra o fundo destas imagens e escolhe”. Portinari nunca viu o mural erguido de forma completa, só em pedaços — cada painel é composto por 14 partes, são 28, no total. Assumidamente comunista, o artista teve o visto negado e não pode entrar nos Estados Unidos para a inauguração. “Então, ele morre sem a emoção de ver a grande obra da sua vida”. Durante a Assembleia Geral da ONU de 1957, ano de instalação de “Guerra e Paz”, não houve qualquer menção aos painéis ou a Portinari no discurso de abertura realizado pelo chefe de Estado brasileiro. “Estávamos em plena Guerra Fria e, embora a ONU seja território internacional, ela fica dentro dos Estados Unidos. Citar um artista de esquerda não era muito conveniente”, explicou João Candido Portinari, durante a live do IOC.

A omissão continuou no ano seguinte e nos demais — até 2007, quando se comemoraram os 50 anos da instalação dos painéis. Coube ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva fazer a reparação histórica. Naquele ano, durante o discurso na sede da ONU, ele resumiu que o sofrimento expresso no mural que retrata a “Guerra” remete à alta responsabilidade das Nações Unidas de afastar o risco de conflitos armados. “O segundo mural revela que a paz vai muito além da ausência da guerra, pressupõe bem-estar, saúde e um convívio harmonioso com a natureza, pressupõe justiça social, liberdade e superação dos flagelos da fome e da pobreza”. Pintados há mais de meio século, os painéis foram restaurados no Brasil e, antes de retornar à Nova York, passaram por Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Paris. De volta à sede da ONU, em 2015, foram recebidos pelo então secretário-geral Ban Ki-Moon, que fez as honras da casa. “Os painéis são o chamado de Portinari para a ação”, disse. “Graças a ele, todos os líderes que entram na ONU se deparam com o terrível flagelo da guerra — e o sonho universal pela paz”. 

Algumas curiosidades: Portinari realizou cerca de 200 estudos antes de executar “Guerra e Paz”. Para pintar os painéis gigantes, ele não utilizou pincéis grandes, fazendo uso dos mesmos pincéis de suas pinturas de cavalete, o que provocou um esforço físico extraordinário. No meio do trabalho, o artista adoeceu com uma intoxicação provocada por pigmentos que havia nas tintas, inclusive arsênico e chumbo — “Estou proibido de viver”, disse na altura. Em um dos discursos que proferiu sobre a grande obra de sua vida, sintetizou: “As coisas comoventes ferem de morte o artista. E sua única salvação é retransmitir a mensagem que recebe. Eu pergunto: quais as coisas comoventes nesse mundo de hoje? Não são por acaso as tragédias provocadas pelas guerras, as tragédias provocadas pela desigualdade, pelas injustiças e pela fome? Haverá na natureza qualquer coisa que grite mais alto ao coração do que isso?” Portinari morreu seis anos depois da inauguração, aos 58 anos, em 6 de fevereiro de 1962.

Legado Portinari

Há 40 anos, o Projeto Portinari vem tornando mais acessível a obra do artista, que já foi chamado pelo amigo e poeta Carlos Drummond de Andrade de “a mão de olhos azuis” e ganhou uma canção na voz de Mercedes Sosa. São 30 mil documentos e cerca de 5 mil obras cruzadas entre si, além de um acervo com 130 horas de entrevistas inéditas com personalidades sobre Portinari, o homem e o artista. João Candido diz que o maior desafio que o projeto enfrenta, além da autossustentação em tempos difíceis, é o de aproximar cada vez mais a obra de seu pai de cada brasileiro. Mais de 95% da produção de Portinari está invisível, em coleções particulares, em salas de banco, segundo o filho do artista que vem usando a tecnologia como aliada do Projeto.Um exemplo: em 9 de outubro, quando se completaram 80 anos da exposição “Portinari of Brazil”, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) homenageou o artista com uma reedição virtual da mostra, reconstituindo nos mínimos detalhes as 120 obras em cartaz. Pela voz de João Candido, é possível fazer uma visita guiada às salas da exposição. Por meio do site ou das redes sociais do projeto, além de uma página na plataforma Google Arts and Culture, há outras muitas maneiras possíveis de experimentar Portinari. “A gente pode olhar para tudo isso como se fosse uma grande carta que ele escreve ao povo brasileiro — aliás à humanidade, não só ao povo brasileiro — e a constatação de que essa carta não chegou ao seu destino, não foi entregue”, ele diz. “Então, a missão do Projeto Portinari é colocar essa carta no colo de todo brasileiro onde quer que ele esteja”.

Para conhecer Portinari

Projeto Portinari — Reúne o acervo do pintor com cerca de 30 mil documentos e 5.400 obras: http://www.portinari.org.br/. Nas redes sociais: projetoportinari (Facebook) e @projeto_portinari (Instagram)

Portinari of Brazil Visita guiada pelas obras da célebre exposição, que aconteceu no Moma, em 1940, e foi reconstituída nos mínimos detalhes: https://vimeo.com/470732824

Google Arts and Culture A plataforma disponibiliza acervos de grandes museus do mundo, entre eles, a vida e a obra do artista brasileiro, numa parceria com o Projeto Portinari: https://bit.ly/36HZCP0

Poema “A mão”, na voz de Drummond, sobre imagens de Portinari


Un Son para Portinari, com Mercedes Sosa


A Compaixão na obra de Portinari: live do IOC/Fiocruz
https://portal.fiocruz.br/video/compaixao-na-obra-de-portinari

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