Dona Deuzuíta, Dona Rosário e Dona Chagas: guardiãs da memória no Quilombo Marinheiro. — Fotos: Ana Cláudia Peres e Miguel Leão.
A grande placa oficial em verde com letras brancas anuncia o que durante muito tempo esteve sob risco de total apagamento. Ali vive uma comunidade quilombola. Marinheiro. 208,1455 hectares de área, devidamente sinalizados no mapa, para que todas as pessoas possam ver.
Localizado em Piripiri, o quilombo fica a apenas 36 km da sede do município, na região norte do Piauí. Mas a estradinha de terra batida e com muitas veredas faz o trajeto parecer mais longo e exige atenção dobrada, mesmo por parte de quem já conhece o local.
A vegetação anda mais seca do que é de costume. Difícil imaginar como fica o cenário no período das chuvas, quando as águas do rio Corrente inundam os arredores, deixando a comunidade ilhada — vem daí uma das hipóteses para o nome do quilombo, vamos ficar sabendo em breve.
Naquela tarde, não chove. O sol está escaldante. E, apesar de ser julho ainda quando a reportagem de Radis chega ao Marinheiro, faz um calor de “b-r-o-bró” — expressão muito comum em terras piauienses, usada em referência à sílaba final dos últimos meses do ano, quando as temperaturas ficam mais elevadas, a partir de setembro.
Sob um galpão construído para abrigar a sede da associação de moradores que também faz as vezes de centro cultural, uma dúzia de mulheres está à espera. Na comunidade, habitada atualmente por 97 famílias, são elas que dão as cartas. Têm entre 17 e 77 anos ou um pouco mais, que algumas não sabem precisar a idade. Em um semicírculo, recebem os visitantes para contar histórias e apresentar publicamente o quilombo.
Bem diferente de uma época em que precisavam se esconder.
Tempo de malvadeza
“Teve um tempo de pessoas muito malvadas. Quando nosso pessoal via o movimento de gente vindo na estrada, tinha que parar tudo e ficar bem quietinho, sem fazer barulho. Não podia ter zoada. Até os galos iam parar debaixo das panelas pra que não cantassem. Nós era tudo escondido”.
Assim costumava contar a mãe de Maria Francisca da Conceição, que no quilombo Marinheiros é mais conhecida como Rosário — ninguém sabe dizer por quê. Assim ela conta agora. Rosário é descendente do primeiro casal de negros a habitar o Marinheiro. José Rosa do Nascimento e Isabel Maria da Conceição chegaram por ali em busca de refúgio.
Com 67 anos, a mulher de gestos largos e voz altiva, era ainda uma criança na época em que os episódios de maus-tratos constantes adoeceram e mataram seu povo. “Esse lugar aqui veio depois de muita derrota. De muita taca [açoite]. Foi taca demais”, ela diz, com indignação. “Naquele tempo, a gente era mandada pelos grandes. Quando eles davam uma ordem, a gente tinha que cumprir. Ou cumpria ou então eles atacavam”. De tanto apanhar, seu avô definhou até a morte.
Agora, ela faz questão de levar adiante as histórias que foram passadas de mãe para filha. No repente que improvisa ao final da entrevista, Rosário arma roda de cantoria, evoca a memória e as tradições ancestrais, festeja o cotidiano do lugar, pede proteção, faz ecoar o seu canto pelos ares. Ao final, bate no peito: “Eu tenho muito orgulho de ser quilombola e de viver aqui. Esse é o nosso lugar”.
O terecô, a parteira, o tucum
Ao lado de Rosário, toalhinha na mão para aliviar o calor, Maria Deuzuíta da Conceição acompanha. Bem-humorada, a mulher arranca gargalhadas sempre que fala, mas a voz muda de tom quando narra um dos capítulos mais tristes da história do Marinheiro, lembrado por cinco entre cinco quilombolas — ainda que, para algumas, seja mais difícil falar sobre.
O episódio ficou conhecido entre os moradores da comunidade como “A Revolta”, avisa a pesquisadora e assistente social, Márcia Galvão, que acompanha a reportagem de Radis naquela tarde. Trata-se de uma operação policial que reprimiu de forma violenta todas as pessoas que participavam de um ritual de Terecô — religião de matriz africana muito difundida no vizinho estado do Maranhão —, que já foi a religião oficial do Marinheiro, onde hoje predomina o catolicismo.
O atentado — escreve Márcia em dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI) sobre território, ancestralidade e titulação no quilombo Marinheiro — interrompeu de forma brutal os trabalhos de Terecô na comunidade ou, no limite, fez com que ficassem relegados às casas dos moradores.
Quando o assunto vem à tona junto às entrevistadas, é Dona Deuzuíta quem puxa o fio da meada. A mãe dela era praticante da religião e foi uma das mulheres perseguidas e presas, mas sobreviveu para contar a história às filhas. “Os poderosos tinham muita raiva. Eles saíram pegando um por um, todos da família da minha mãe”.
Dona Deuzuíta cresceu ouvindo sobre os desatinos daquele período. Houve o caso do senhor que, em busca de cura para um machucado no salão de Terecô, teve os punhos da rede cortados enquanto dormia para que caísse. E houve um outro que, por ter boa estatura, foi obrigado a carregar nas costas os oficiais durante a travessia do rio. “Se fosse comigo, eu fingia que escorregava só pra derrubar aqueles homens brutos”, imagina a quilombola numa espécie de ajuste de contas com o passado.
“A vida nesse Marinheiro aqui foi difícil. Nós fomos muito combatidos. Mas nós nunca desistimos”.
Dona Chagas, quilombola
Dona Deuzuíta teve 10 filhos e já nem lembra quantos quilombolas trouxe ao mundo. Ela é parteira. “Desde que comecei a me entender por gente, que saio de noite para ‘partejar’ mulher”, diz, olhando para a jovem Laísa, uma dessas que ela segurou nos braços ao nascer, há 17 anos. “Eu ia de madrugada ou na hora que fosse. De manhã, quando voltava, ia fazer o de comer pros meninos”.
Para sobreviver à seca dos anos 1980, criou todos os filhos à base do tucum — uma espécie de palmeira muito presente na região. “A gente vivia era caçando tucum no mato. Antes que ele secasse direito, a gente quebrava, depois vendia pra comprar roupa pra vestir, rede pra dormir, açúcar pra comer”. Era com o tucum também que ela alimentava as crianças, pilava o fruto e extraía o leite para o mingau.
“Já sofri muito, mas agora eu tô pisando por riba do sofrimento”, reforça outra quilombola, Dona Chagas, mais uma que tem Conceição no sobrenome: Francisca das Chagas da Conceição. “Aqui, nós é tudo juntinho e grudadinho feito feijão com arroz”, emenda, fazendo graça com a origem comum da maioria, uma característica da identidade quilombola.
Em seguida, faz cara de brava e recorre à sabedoria ancestral para deixar claro o tamanho da resistência, se alguém ainda não tiver entendido: “O Marinheiro aqui era como um buraco com uma tábua. Nós vivia como preá no mato, dentro do fojo [cova funda]”. Agora, com a cabeça para fora, ela arremata: “A vida nesse Marinheiro aqui foi difícil. Nós fomos muito combatidos. Mas nós nunca desistimos”.
Dona Rosário, Dona Deuzuíta e Dona Chagas são de uma linhagem de mulheres quilombolas que não envergam, materializando o conceito de quilombo tal qual consta nos glossários: “Comunidades negras rurais dotadas de uma trajetória histórica própria e relações territoriais específicas, bem como ancestralidade negra relacionada com o período escravocrata”. Assim define a cartilha Direitos Quilombolas, uma publicação do projeto Vozes do Quilombo, iniciativa pioneira da Defensoria Pública do Estado do Piauí voltada para os povos tradicionais [Acesse aqui].
O primeiro Censo
O Brasil tem uma população de 1,3 milhão de quilombolas residentes em 1.696 municípios. Somente na região Nordeste, são mais de 816 mil pessoas que se autoidentificam como tal. Os dados são do Censo Demográfico 2022, coordenado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa foi a primeira vez na história que a população quilombola ganhou recorte específico no levantamento, podendo ser identificada a partir de perguntas que levavam em conta características demográficas, sociais e econômicas dos povos tradicionais.
Durante o evento de lançamento dos dados coletados com transmissão online, o presidente interino do IBGE, Cimar Azeredo, declarou: “O que está acontecendo é uma reparação histórica”. Apesar da demora de 150 anos desde que o Censo começou a ser realizado, ele ressaltou a importância de hoje se conhecer quantos quilombolas existem no país. Como localidades quilombolas, o IBGE considerou aquelas que compõem o conjunto dos territórios quilombolas oficialmente delimitados, dos agrupamentos quilombolas e das demais áreas de conhecida ou potencial ocupação quilombola.
Quilombolas também estiveram entre os recenseadores. “Só agora a gente está sendo encontrado”, afirmou Dandara Mendes, do quilombo Conceição das Crioulas, em Pernambuco. Em campo, ela ficava emocionada a cada vez que ouvia a população consultada exclamar: “Estão contando quilombolas!”.
De acordo com o censo, Bahia e Maranhão são os estados brasileiros com maior população de quilombolas. O Piauí ocupa a sétima colocação, com um total de 31.686 pessoas. Em Piripiri, cidade onde está situado o Quilombo Marinheiro, são 844. Mas atenção: apenas 1 em cada 4 quilombolas do Piauí reside em Território Quilombola oficialmente delimitado. O censo revelou ainda que menos de 5% dos quilombolas do país vivem em território demarcado [Veja os dados completos do Censo 2022: Quilombolas aqui].
Para ter o seu direito reconhecido e garantir a segurança do território, os moradores do Quilombo Marinheiro precisaram lutar muito. Mais precisamente, 24 anos desde que deram entrada no processo jurídico de autorreconhecimento como comunidade quilombola, em 1997. Em 8 de setembro de 2021, finalmente, a Fundação Palmares garantiu a titulação definitiva das terras por meio do Instituto de Terras do Piauí (Interpi).
Mas a população ainda reivindica para si a totalidade do território, que abrange duas outras áreas, ricas em recursos naturais, que continuam sob a tutela do Estado: Fazendinha e Olho D’água. No Censo, o Quilombo Marinheiro consta como parte dos “Territórios Quilombolas citados nos acervos do Incra, cujas geometrias não estavam disponíveis ou não foram localizadas”.
Políticas públicas
Os números, portanto, ainda não dão conta da totalidade de quilombolas existentes no país, mas não restam dúvidas de que o levantamento inédito é um marco para dar visibilidade a essa população. “Só o fato de ser enxergado pelo Estado já faz muita diferença”, aponta Márcia Galvão.
Ela faz questão de destacar que a ferramenta vai ser ainda mais importante para a construção de políticas públicas para os quilombolas, em especial aquelas voltadas para a regularização fundiária. Em seu trabalho orientado pela pesquisadora da Fiocruz, Elaine Nascimento, ela analisou a narrativa oral dos quilombolas e pôde perceber a preocupação com a titulação da terra como um grande gargalo. Na conclusão de sua pesquisa, Márcia aponta uma série de recomendações de políticas públicas para o Marinheiro.
No quilombo, hoje há uma escola pública, que atende apenas a educação infantil e ensino fundamental I [até o 5o ano], e um posto de apoio à saúde, mas a população reivindica uma unidade básica. Uma vez por ano, em junho, tem a festa dos padroeiros São Pedro e São Paulo. Outra vez por ano, em novembro, o Festival Quilombola, que já está na quinta edição e reúne os outros dois quilombos situados em Piripiri: Vaquejador e Sussuarana. No ano inteiro, a comunidade se mobiliza pela garantia de direitos.
“Eu tenho muito orgulho de ser quilombola e de viver aqui. Esse é o nosso lugar”.
Dona Rosário, quilombola.
■ Imagens: Ana Cláudia Peres ■ Edição: Felipe Plauska
Novas batalhas
“Quilombo quer dizer resistência, quer dizer luta e quer dizer coragem”, resume Rosimeyre Damasceno Silva. De tanto ouvir as histórias do lugar onde mora, a jovem agora é fonte para pesquisadores e jornalistas que chegam por ali. “O Marinheiro já foi refúgio de pessoas escravizadas que vinham para cá. A gente é descendente dessas pessoas. É por isso que a gente existe”.
Duas vezes presidente da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Quilombolas da Comunidade Marinheiro, Rosimeyre ocupa atualmente o cargo de primeira suplente na diretoria composta exclusivamente por mulheres. Depois de ter atuado na linha de frente pela regularização do território, ela diz que a comunidade enfrenta agora uma batalha contra o êxodo populacional, principalmente entre os jovens.
No dia em que Radis visitou o quilombo, ela própria sofria de saudades do filho mais velho que tinha viajado recentemente para São Paulo. “Eles vão em busca de outras oportunidades e de trabalho para sustentar a família. Costumam retornar ao quilombo. Mas geralmente precisam sair de novo”. O trabalho na roça nem sempre é suficiente.
Por isso, Rosimeyre ressalta a importância de brigar para garantir a incorporação das terras que hoje correspondem à Fazendinha — uma antiga fazenda construída por escravizados — e ao Olho D’água. Tem medo de que a área — uma chapada de vegetação rica em pés de pequi e pastagem para os animais — seja desbastada. A líder quilombola afirma que eles seguirão em busca da titulação e do registro de todo esse território em nome do quilombo Marinheiro.
As donas da bola
As mulheres do quilombo jogam nas onze. Maria Gabriela tem 19 anos e hoje é bolsista de um dos quatro projetos mantidos pela Fiocruz na comunidade, em parceria com a Associação. São eles: Estratégias de Territorialização de Políticas Públicas para Mulheres em Territórios Quilombolas (Quilombo Marinheiro); Saúde, Ambiente e Território: no caminho das águas, dos alimentos e das pessoas; Segurança Alimentar numa perspectiva de inovação tecnológica; e Preservação Ambiental e geração de renda.
A jovem é a responsável por manter atualizado o perfil do quilombo nas redes sociais. Também participa das oficinas de artesanato. Naquela tarde, ao lado de outras mulheres quilombolas, ela confeccionava bolsas com a fibra da bananeira, numa oficina ministrada no local pelo Senac.
Juntas, além do artesanato, as quilombolas do Marinheiro fazem oficinas de capacitação para inscrição de projetos culturais em editais da Lei Paulo Gustavo e uma série de outras atividades voltadas para o autocuidado feminino.
Também jogam futebol. Metade delas interrompeu a entrevista para correr para o treino. Em poucos dias, iam estrear na Copa Batom. Em 2022, o time feminino do Marinheiro havia perdido o campeonato promovido pela Prefeitura de Piripiri. Este ano, estavam decididas a mudar o resultado do jogo.
Quilombo quer dizer resistência, quer dizer luta e quer dizer coragem”.
Rosimeyre Damasceno Silva, quilombola
Tamanho protagonismo acaba provocando incômodo. Rosimeyre diz que enfrenta certa resistência. “Ainda há muito machismo”, constata — um problema que, diga-se de passagem, não é exclusivo dos quilombos. “A mulher trabalha na roça, faz comida, cuida de casa. Por isso, a gente tem pensado em programas para estimular outras habilidades e formas de empoderamento. Para que elas possam sair da rotina e valorizar sua independência, ao mesmo tempo que desenvolvem outras formas de renda”.
Se depender de José Florindo da Silva, 67 anos, sete filhos, sendo duas mulheres, os tempos são animadores. “Essas mulheres são medonhas, essas mulheres! Tô achando vantagem!”, diz ele, que é pai da líder quilombola.
Recentemente, em outubro, elas inauguraram a biblioteca do quilombo — mais uma parceria com a Fiocruz — e que agora espera contar com a doação de livros e revistas para seu acervo. Para breve, as quilombolas planejam uma viagem para conhecer o litoral do Piauí, distante 200 km da comunidade.
No meio do caminho, a ponte
No cotidiano do Marinheiro, há uma luta que mobiliza a todos, mulheres e homens, jovens e adultos: a cobrança pelo reparo das duas pontes sobre o rio Corrente, na divisa do quilombo com o município de Capitão de Campos. “Não sei nem como nunca aconteceu uma tragédia”, alerta Dona Rosário, exibindo as gambiarras com madeira, solução que os quilombolas encontraram para que as estruturas ainda se mantenham de pé. Não se sabe por quanto tempo.
Radis presenciou o momento em que um carro fazia a travessia numa manobra impensável. O perigo se torna ainda maior com as chuvas. Em tempos de cheia, é impossível cruzar a ponte, relata Dona Rosário. Ela própria já foi arrastada pelas águas.
Há quem diga que o Marinheiro recebeu esse nome exatamente porque, quando chove muito, o rio transborda deixando submersa boa parte do território. A abundância de água é tanta que chega a lembrar o mar, em pleno sertão, elas comparam. “Faz de conta que nós somos peixes”, brinca Dona Chagas. “Pronto, pode colocar aí que quem vive no Marinheiro é peixe”. Além de quilombola, isso é fato.
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