Em nossa matéria de capa, o repórter Glauber Tiburtino contextualiza a relação entre violência e saúde nas favelas, entrevistando pesquisadoras, especialistas, pessoas nascidas nessas localidades. Apresenta relatos, números e conclusões de um amplo estudo que ouviu moradores de seis favelas cariocas e analisou os impactos e as consequências na saúde e na vida cotidiana da população resultantes das frequentes incursões policiais nesses territórios.
A pesquisa Linha de Tiro, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), concluiu que a exposição frequente à violência armada se desdobra em agravos de saúde mental, como depressão e ansiedade, transtornos do sono e o desenvolvimento de doenças crônicas, como hipertensão arterial.
O estudo comparou o impacto sobre moradores de favelas onde as invasões policiais são frequentes com os daquelas nas quais as incursões são menos frequentes. Identificou, por exemplo, que, nas áreas mais afetadas, o risco de pessoas desenvolverem hipertensão é 42% maior do que nas demais.
As pesquisadoras descrevem e analisam enormes transtornos à vida da população, como a desassistência com o fechamento de escolas e unidades de saúde, a interrupção dos meios de transporte e do direito de ir e vir resultando em atrasos e ausências ao trabalho, danos à economia local com o fechamento do comércio e a interrupção de atividades laborais.
A desigualdade social é parte e também um agravante do problema, entende a pesquisadora Maria Cecília Minayo, uma referência nos estudos de violência e saúde: “Muitas famílias não têm para onde ir, não têm escolha. Elas precisam morar ali, esse é um dos motivos de sofrimento”.
O estudo com foco na saúde é parte de uma pesquisa maior do Cesec, que tem examinado a fundo o custo da proibição de drogas e os impactos humanitários, sociais e econômicos da violenta e ineficaz política de “guerra às drogas” que vem sendo praticada há décadas no país.
Em outra reportagem, Ana Claudia Peres foi ao município de Piripiri, no Piauí, registrar a bela história de resistência ancestral no quilombo Marinheiro, à beira do rio Corrente, onde moram 97 famílias.
Mulheres potentes lideram a comunidade frequentemente deixada pelos homens em busca de trabalho. Senhorinhas boas de conversa e de cantoria narram de maneira muito peculiar as aventuras de resistir e sobreviver a períodos de seca, ameaças de fazendeiros, emboscadas, assassinatos e ataques violentos de forças policiais, por décadas, até conquistarem, recentemente, o reconhecimento e a garantia da titulação definitiva de suas terras como um território quilombola.
Ao lado das histórias do racismo brutal entranhado numa sociedade que ainda produz relações escravistas e desiguais, há também memórias e histórias de luta por libertação e pela reconstrução coletiva do bem viver.
Hoje, a comunidade do Marinheiro celebra abertamente seus rituais religiosos, festas e outras tradições ancestrais, cuida mais tranquilamente de suas famílias. Com parcerias externas, as mulheres desenvolvem projetos de segurança alimentar, produção de alimentos, preservação ambiental, geração de renda e artesanato, além da estruturação de uma biblioteca, atividades esportivas, culturais e de comunicação. Há uma escola pública de educação infantil e de ensino fundamental até o 5o ano. Elas reivindicam uma unidade básica de saúde, a demarcação mais abrangente do território e uma ponte nova sobre o rio.
No embalo das narrativas das mulheres quilombola, o editor Luiz Felipe Stevanim retoma a história de Dona Chica. O depoimento dessa determinada e doce figura de parteira, benzedeira e educadora popular que leva conhecimentos tradicionais para o SUS foi colhido em julho, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde.
Violência, racismo e desigualdade estão na base da construção de nossa sociedade. Esses são também temas centrais para estudo e reflexão para que haja uma melhor compreensão do que está em disputa na construção de políticas públicas e na reconstrução de novas sociabilidades baseadas em valores humanos de cuidado, respeito e equidade. Valores tão novos quanto ancestrais.
■ Rogério Lannes Rocha, Coordenador e editor-chefe do Programa Radis
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