Foram décadas reivindicando reconhecimento institucional e amparo legal. Entre dezenas de associações e, posteriormente, sindicatos e milhares de histórias individuais semelhantes. A luta das trabalhadoras domésticas por direitos é antiga, melindrosa e majoritariamente feminina e negra. Oriunda de uma passado escravocrata e colonial, paternalista e misógino, foram necessárias sete décadas para que, no âmbito jurídico, as trabalhadoras domésticas fossem reconhecidas como categoria profissional, com garantias trabalhistas equiparadas ao restante dos trabalhadores brasileiros. Ainda hoje, entretanto, nas esferas social e cultural, são vítimas da informalidade, da discriminação de classe, raça e gênero, e de assédio moral, sexual e financeiro.
Os desafios persistem, mas, nessa história, já foi trilhado um longo caminho de resistência. Radis traça uma breve linha do tempo do movimento das trabalhadoras domésticas. A trajetória política dessa categoria se confunde com a formação da sociedade brasileira e com o contexto reivindicatório das mobilizações populares no país. Conheça figuras pioneiras, datas marcantes e mudanças conquistadas com o empenho, a perseverança e a participação ativa e conjunta das trabalhadoras domésticas do Brasil.
1936
Fundação da Associação das Empregadas Domésticas em Santos
Primeira experiência de sindicalização do trabalho doméstico, criada na cidade de Santos, litoral de São Paulo. Dentre seus objetivos, a Associação buscava o status jurídico de sindicato e os direitos trabalhistas que vinham junto dele, e assegurava amparo e proteção às empregadas domésticas. Foi fechada pelas forças repressivas do Estado Novo de Getúlio Vargas, voltando à ativa apenas em 1946. Uma de suas fundadoras, Laudelina de Campos Mello, virou referência e foi reconhecida por seu ativismo e sua mobilização em favor dos direitos dos trabalhadores domésticos.
Laudelina de Campos Mello
Mineira de Poço de Caldas, nasceu em 1904, faleceu em 1991 e, durante seus 87 anos, Laudelina de Campos Mello foi empregada doméstica, sindicalista e militante do movimento negro. Atuou principalmente em São Paulo, entre Campinas, Santos e a capital paulista. Em sua lista de atos de resistência, destaca-se seu ímpeto em criar espaços recreativos e de comunhão para a comunidade negra. Laudelina foi quem, em Campinas, devido a discriminação racial em eventos e ambientes públicos da região, fundou um baile de debutantes e um concurso de beleza para jovens negras, chamado Pérola Negra, e criou a Escola de Bailados Santa Efigênia, escola de balé, piano e outras artes para crianças negras. Esteve envolvida com organizações como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental Negro. Foi chamada de “terror das patroas” por Jarbas Passarinho, então Ministro do Trabalho do governo ditatorial Costa e Silva.
1943
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)
Enquanto a grande maioria dos trabalhadores brasileiros — urbanos e rurais — tiveram seus direitos garantidos pela CLT, durante a ditadura do Estado Novo de Vargas, os trabalhadores domésticos foram explicitamente excluídos das proteções da lei. Logo no seu artigo 7º, é declarado: “Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando for em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas”.
1949
Lei n° 605
Mais um caso de insegurança legal e jurídica dos trabalhadores domésticos é a lei n° 605, que regularizava o descanso remunerado semanal e nos feriados civis e religiosos. No seu artigo 5º, identifica-se a transparente segregação dos empregados domésticos: “Esta lei não se aplica às seguintes pessoas: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de modo geral, os que prestem serviço de natureza não econômica e pessoa ou a família no âmbito residencial destas”.
1968
I Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas
Nele, foi discutido um primeiro rascunho de um projeto de lei para a regulamentação da profissão. Foi o pontapé para a elaboração da lei de 1972.
1972
Lei do Empregado Doméstico
Vinte e três anos depois da Lei 605, uma lei específica para o trabalho doméstico no Brasil foi regulamentada. Codificada Lei nº 5.859, suas prerrogativas garantiam registro em Carteira de Trabalho, férias anuais remuneradas e acesso aos benefícios e serviços da Previdência Social. Pela primeira vez, e ainda assim de maneira tímida e incompleta, os trabalhadores domésticos foram contemplados com direitos.
1985
V Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas
O encontro preparou a mobilização das associações para a Assembleia Nacional Constituinte e a reivindicação de direitos constitucionais. Foi nesse congresso histórico que se decidiu criar um Conselho Nacional que reunisse os sindicatos e associações das domésticas — posteriormente, apenas em 1997, seria criada a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas
1987
1988 Constituição Cidadã
Com o fim da ditadura e o processo de redemocratização em curso, a elaboração de uma nova Carta Magna — de moldes mais igualitários e asseguradora de liberdades coletivas e individuais — era indispensável para dirigir o novo momento do país. Dessa maneira, no seu artigo 7º, presente no capítulo voltado para os direitos sociais, foram expressamente reconhecidas, em parágrafo único no texto, garantias para os trabalhadores domésticos: décimo-terceiro salário, salário mínimo, férias anuais remuneradas, licença maternidade e paternidade, entre outros. Ainda assim, a categoria não foi igualada aos trabalhadores rurais e urbanos, impedindo que certos direitos presentes na CLT e na própria Constituição fossem assegurados ao trabalho doméstico.
Participação das trabalhadoras domésticas na Constituinte
Diante da formação da Assembleia Nacional Constituinte em 1987, em vistas de construir a nova Constituição brasileira após 21 anos de ditadura, representantes de associações das trabalhadoras domésticas estiveram presentes em Brasília para defender seus interesses. Dentro dos grupos de trabalho, reunião e debate, divididos em comissões e subcomissões, elas integraram a Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos. A partir das discussões pautadas em torno da realidade das domésticas, foi apresentada a Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, uma carta com as principais reivindicações e propostas da classe: validação das domésticas como categoria profissional e extensão integral dos direitos previdenciários e trabalhistas à classe. As sindicalistas Lenira Maria de Carvalho e Creuza Oliveira e a então deputada Benedita da Silva foram figuras importantes nesse processo de mobilização.
Lenira Maria de Carvalho
Líder sindical e ativista, Lenira Maria de Carvalho é mais uma mulher indispensável na história de luta das trabalhadoras domésticas. Foi quem fez um discurso imponente e leu a carta das trabalhadoras domésticas em reunião da Constituinte. Alagoana, original da cidade de Porto Calvo, fez sua trajetória política e pessoal em Pernambuco, mais especificamente em Recife, onde, ainda jovem adolescente, começou a trabalhar como empregada doméstica. Fez parte do coletivo Juventude Operária Católica, a JOC, na década de 60, e fundou a Associação de Trabalhadoras Domésticas de Recife em 1979. Além de militante, Lenira também foi escritora. Lançou dois livros autobiográficos com seus testemunhos sobre os desafios de trabalhar como doméstica, “Só a gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica” (1982) e “A luta que me fez crescer” (2000). Em 2021, aos 88 anos, Lenira faleceu, deixando um legado na luta por direitos e valorização das trabalhadoras domésticas.
Benedita da Silva
Pioneira em múltiplos cargos político-partidários, Benedita Souza da Silva Sampaio foi a única mulher — também a única mulher negra — a compor a mesa diretora da Assembleia Nacional Constituinte. Foi a porta-voz das trabalhadoras domésticas nas decisões sobre as novas diretrizes da carta diretora do país. E mais tarde, foi relatora da PEC das Domésticas na Câmara dos Deputados. Natural do Rio de Janeiro, Benedita nasceu em 1942 e desfruta de uma história política e profissional extensa contra as desigualdades raciais, de gênero e de classe. Já trabalhou como doméstica, auxiliar de enfermagem e assistente social. Começou seu ativismo na comunidade onde foi criada, a favela do Chapéu-Mangueira, no bairro do Leme, Zona Sul da cidade do Rio, atuando como professora e líder comunitária. É responsável por políticas públicas importantes, como a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc.
Nair Jane de Castro Lima
Liderança das trabalhadoras domésticas no Rio de Janeiro, Nair foi interlocutora na Constituinte junto com Lenira e, assim como outras companheiras, forjou um legado social e político importante. Foi uma das fundadoras da Confederação Latino-Americana e do Caribe das Trabalhadoras Domésticas e do sindicato da categoria na Baixada Fluminense. Nasceu no Maranhão, mas passou boa parte da vida no Rio de Janeiro, sendo nessa cidade onde começou a trabalhar como babá aos 9 anos e, posteriormente, navegou pela militância política, vinculada inicialmente à Juventude Operária Católica (JOC). Participou também da fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e foi presidente da Associação Profissional das Empregadas Domésticas do Rio de Janeiro.
2013
PEC das Domésticas
Foi necessária a implementação da Emenda Constitucional nº 72, popularmente conhecida como PEC das Domésticas, para que finalmente houvesse “igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais”, diz o conteúdo da ementa. Jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, adicional noturno, seguro-desemprego, pagamento de horas extras, recolhimento do FGTS por parte do empregador, seguro contra acidentes de trabalho, indenização por demissão sem justa causa, auxílio-creche, entre outros direitos foram finalmente certificados aos empregados domésticos. Com a PEC, aquele parágrafo único do artigo 7º foi alterado, contemplando os trabalhadores domésticos com todos os 34 direitos sociais presentes na Constituição — antes, apenas 9 eram reconhecidos para a categoria.
Creuza Maria Oliveira
Fundadora da Associação das Empregadas Domésticas da Bahia, Presidente de Honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas e, mais recentemente, Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Creuza Oliveira é uma das mais importantes líderes sindicais e defensora da causa das trabalhadoras domésticas do país. É natural de Santo Amaro, cidade do Recôncavo Baiano. Dedicou sua vida à luta das domésticas, trabalho no qual exerceu e iniciou ainda muito jovem, aos 9 anos. Esteve presente e ativa na elaboração da PEC das Domésticas, sendo parabenizada por seu envolvimento no Congresso no dia da promulgação. Além disso, idealizou o Conjunto Residencial 27 de Abril, em Salvador, condomínio exclusivamente habitado por trabalhadoras domésticas.
2015
Lei Complementar nº 150
Em 2015, dois anos após a aprovação da PEC das Domésticas, a então presidente Dilma Rousseff regulamentou os benefícios previstos na emenda.
27 de abril
Dia da Empregada Doméstica
A data homenageia Santa Rita, consagrada pela Igreja Católica como padroeira das domésticas. Rita era uma mulher italiana que exercia a função de doméstica no século XIII.
* Estágio supervisionado
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