No mesmo dia em que ocorreu a abertura da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingos Sávio (CNSM), em 11 de dezembro de 2023, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que alterava o nome do agora Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (Desmad). A nova denominação, com a inclusão das substâncias álcool e drogas, tem um peso simbólico, pois chama atenção para essa questão como um tema de saúde pública, como destacou Sônia Barros, diretora do Desmad, em entrevista à Radis.
O departamento integra a Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde (Saes/MS) desde o início de 2023 e tem como competência formular, coordenar e implementar a política nacional de saúde mental — e agora também de álcool e outras drogas. Além disso, está encarregado de promover diálogos com a sociedade sobre essa política — exatamente o que representa uma conferência de saúde mental, que não era realizada desde 2010.
À frente do Desmad, está Sônia Barros, professora titular aposentada da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), com atuação em pesquisas sobre políticas de saúde mental, exclusão social de pessoas com doenças mentais, processo ensino-aprendizagem e enfermagem em saúde mental. Em 2022, ela recebeu o Prêmio Nise da Silveira de Boas Práticas e Inclusão em Saúde Mental, concedido pela Câmara dos Deputados.
Logo após a 5ª CNSM, Sônia falou à Radis sobre as expectativas e desafios de retomada da Política Nacional de Saúde Mental e ressaltou a necessidade de consolidá-la como uma política de Estado. “Pensar política não é só uma experiência de planejamento, mas é também ouvir aqueles que são diretamente afetados pelas diretrizes, pelas ações e pelo financiamento preconizado na política”, afirmou.
Como você avalia a participação popular na discussão de uma política de saúde mental, com a 5ª CNSM?
Inicialmente, é preciso destacar a perseverança e a coragem do Conselho Nacional de Saúde (CNS) em propor a conferência num período em que a participação popular era desestimulada, cerceada e até mesmo proibida, dada a dissolução de vários conselhos existentes, naquela ocasião [dezembro de 2020]. A participação popular na formulação de propostas para compor uma política nacional de saúde mental é reiterada desde a 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental [1992], em que houve a ampliação da possibilidade da participação de usuários, trabalhadores e familiares. Isso vai se tornando mais relevante em cada ocasião. Não só durante a conferência, mas durante todo o tempo de participação que esses segmentos têm em conselhos, em comissões, na proposição e elaboração das políticas. Tem um ditado utilizado pelo movimento da luta antimanicomial, que é “nada de nós sem nós”.
Pensar política não é só uma experiência de planejamento, mas é também escutar aqueles que são diretamente afetados pelas diretrizes, pelas ações e pelo financiamento preconizado na política. Ouvir e entender a participação dessas pessoas na elaboração de uma política é fundamental e este é o momento em que formalmente se pode escutar todos esses segmentos. É importante poder ouvir as associações, os conselhos e as comissões em todo tempo, mas acho que esse momento da conferência é fundamental para fazer uma escuta qualificada e poder incorporar as contribuições que esses segmentos trazem.
“Para além de recompor uma política que foi construída ao longo de quatro décadas e desmontada em cinco anos, é preciso avançar”
Qual é o significado da retomada da Conferência Nacional de Saúde Mental, após 13 anos, e qual o tamanho do desafio do Desmad para atender a essas expectativas?
Creio que o desafio é gigantesco. Para além de recompor uma política que foi construída ao longo de quatro décadas e desmontada em 5 anos, é preciso avançar. O financiamento da Saúde precisa ser ampliado, e dentro do orçamento da Saúde, nós temos o orçamento da Saúde Mental, que historicamente é abaixo das necessidades, e que vem sendo recomposto nesse governo, na atual gestão do Ministério da Saúde. Tem a relação federativa e com municípios e estados. Fazer essa articulação e promover essa possibilidade de ampliação da rede é um grande desafio. É desafiador, também, num país com nossa extensão territorial, pensar em projetos e programas de educação continuada que possam alcançar o maior número de trabalhadores da rede, familiares e usuários. É um desafio pensar como fazer as estratégias e metodologias para que sejam momentos participativos e de aprendizado.
“Um grande desafio é o fortalecimento necessário da participação de usuários e familiares nas associações, nas representações, dentro dos conselhos”
Que outras dificuldades a senhora identifica?
Acho que outro grande desafio é o fortalecimento necessário da participação de usuários e familiares nas associações, nas representações, dentro dos conselhos, com a representação de usuários e familiares da área de saúde mental. Temos uma expectativa de que, em 2024, possamos investir fortemente também nessas áreas. É também um grande desafio qualificar os trabalhadores, de modo que eles entendam e possam ter práticas avançadas e coerentes com os princípios da Reforma Psiquiátrica. É um desafio, também, colocar na perspectiva das práticas, nessa rede, a questão de gênero, raça, cor e etnia como um elemento que permeia as ações dentro dos serviços. Então são vários os desafios. A gente tem planejado uma forma de, em 2024, iniciar inovações dentro dessa política ao mesmo tempo que a gente continua reconstruindo a rede.
A criação do Desmad sinaliza uma priorização do campo da Saúde Mental. Que investimentos e ações podem ser destacados nesse primeiro ano?
Nesse primeiro ano, que não é bem um ano, pois o Departamento foi criado em janeiro [de 2023] e sua gestão e estruturação praticamente iniciou-se em março, nós definimos junto com o secretário da Atenção Especializada à Saúde, Helvécio Miranda, algumas ações necessárias e emergenciais. Conseguimos retomar a lista de habilitação de serviços da Rede de Atenção Psicossocial [Raps], que estava parada. Reabrimos o sistema para implantação de novos pedidos, novas solicitações de serviço. Essa é uma ação que diz respeito à ampliação da rede e, portanto, à ampliação do acesso da população a esses serviços.
Uma segunda ação, também emergencial, tem a ver com a recomposição do custeio desses serviços da Raps. A maioria deles estava sem recomposição há cerca de 10 anos. Foi preciso fazer cenários para ter aumento desse custeio. Em meados de 2023, nós tivemos reajuste dos Caps [Centros de Atenção Psicossocial] e Serviços Residenciais Terapêuticas (SRT), em torno de 27%. Isso é um ganho porque fortalece para os municípios manterem esse serviço com alguma qualidade e redução do custo. E mais recentemente, em 11 de dezembro, foi publicada a portaria com recomposição de 100% do custeio das unidades de acolhimento, que são dispositivos fundamentais para uma política de álcool e drogas eficaz.
Que ações estruturais foram pensadas?
Além desses destaques, que são de ações emergenciais, no sentido de recompor e qualificar a Rede de Atenção Psicossocial, também tivemos outras estratégias que dizem respeito ao início de ações interministeriais: junto aos Ministérios da Justiça, via Senad [Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos], do Trabalho, para pensar projetos de geração de renda, e da Cultura, para pensar a questão da arte e cultura na área da Saúde Mental. São ações iniciais fundamentais para pensar uma política de saúde mental baseada no direito e no cuidado em liberdade. Por fim, acho que uma coisa muito importante também foi ter saído a publicação do departamento com o seu nome: Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas [o nome anterior era Departamento de Saúde Mental], porque coloca em visibilidade que nós somos responsáveis pela política de álcool e drogas no país, como uma questão de saúde.
Qual a sua expectativa em relação ao cenário da saúde mental no Brasil nos próximos anos?
A expectativa é que, de fato, a política de saúde mental volte a ser uma política de Estado e não só uma política de governo. A construção da política, que foi se dando em quatro décadas, desde 1980, era com essa constituição: mudava o governo, mas ela continuava se construindo com uma diretriz de atenção à saúde mental no país, como uma política de Estado. Na gestão anterior [do governo Bolsonaro], essa política foi atacada, foi quase destruída, mas seus fundamentos permaneceram com os trabalhadores, os usuários, os familiares — e por isso, a defesa dessa política. Nós temos a expectativa de que ela se fortaleça e volte a ser uma política de Estado, como nós estamos tentando agora. A própria estruturação do Desmad é um ganho, porque amplia as possibilidades de interlocução, de financiamento, de mais recursos humanos e financeiros. Acho que estamos nessa grande missão, que para além de reconstruir a política e inovar, é deixar o Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas bem estruturado. Essa missão será fundamental para dar continuidade a esse trabalho na construção da política de saúde mental.
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