A

Menu

A

Pesquisadora-chefe do Laboratório de Virologia Molecular da Fiocruz Rondônia, onde também atua como vice-coordenadora de Ensino, Comunicação e Formação, a bióloga Deusilene Vieira comanda a equipe que vem chamando atenção da comunidade científica e de profissionais que atuam no SUS sobre a importância em se conhecer os riscos das hepatites virais, em especial da hepatite D (ou delta, como também é conhecida).

Endêmica na região amazônica, a hepatite delta é responsável pelos casos mais graves de doença hepática avançada e, ainda assim, continua desconhecida da maioria das pessoas. Considerada silenciosa, já que frequentemente não manifesta sintomas até se tornar grave, ela é também negligenciada, afirma a pesquisadora, que no fim de junho levou a equipe do laboratório que chefia a comunidades ribeirinhas do Sudeste do Amazonas, dando continuidade ao trabalho de rastreamento de casos positivos da doença, por meio de busca ativa. Em um intervalo da viagem, a pesquisadora, que estudou virologia no mestrado e no doutorado em biologia experimental na Universidade Federal de Rondônia (Unir), e também no pós-doutorado na Universidade Federal da Bahia (Ufba), conversou com Radis sobre a necessidade de se rastrear casos de hepatites na Amazônia, utilizando um método molecular para a quantificação da carga viral de indivíduos portadores do vírus da hepatite delta (HDV) e o quanto ele pode contribuir para o diagnóstico e o acompanhamento de casos da doença em outras regiões do Brasil.

— Foto: Adriano De Lavor.

Por que é importante falar sobre hepatites?

As hepatites crônicas são endêmicas na Região Amazônica. Dentre elas, temos as hepatites B, C e D (ou delta). A endemicidade, na Amazônia, está correlacionada às hepatites B e delta. Essas formas de hepatite são consideradas silenciosas, já que muitas vezes o indivíduo portador do vírus não manifesta sintomas, o que pode levar a uma evolução mais grave, a chamada doença hepática avançada. Nestes casos, o indivíduo pode desenvolver diferentes graus de fibrose, podendo evoluir para cirrose ou mesmo um hepatocarcinoma celular, ou seja, um câncer no fígado. Considerando que estamos em uma região endêmica, quanto mais casos da doença forem rastreados, principalmente em comunidades onde já há registros de casos de hepatites, maiores chances de monitorar e acompanhar esses indivíduos e, se tiver necessidade, oferecer-lhes o tratamento correto.

Como o Laboratório de Virologia Molecular começou a rastrear casos na região de Lábrea, no Sudeste do Amazonas?

Tudo começou em 2023, quando recebemos, no ambulatório especializado em hepatites virais crônicas do Centro de Pesquisa em Medicina Tropical de Rondônia (Cepem), dois pacientes jovens, de 19 e 23 anos, com hepatite delta. Eles apresentavam características de superinfecção: um deles com hepatocarcinoma celular e o outro com episódios hemorrágicos, o que não é muito comum em indivíduos jovens. A maioria dos nossos pacientes são portadores crônicos, com idade um pouco mais avançada, às vezes com histórico familiar de contato com o vírus. A partir do momento que a gente soube desses dois indivíduos, resolvemos avaliar o contexto familiar e o da comunidade onde viviam. Descobrimos que ambos eram da região de Lábrea, no Amazonas, de uma comunidade ribeirinha chamada Madeirinho, às margens do rio Purus, e que havia outros casos de hepatite registrados na família, como irmãos, primos e tios. 

— Foto: José Gadelha da Silva Júnior / (Fiocruz Rondônia).

O que vocês estão fazendo neste momento na região?

O trabalho começou no início de 2023, quando recebemos os dois irmãos em Porto Velho. Em dezembro, visitamos a comunidade Madeirinho. Agora, em 2024, estamos ampliando a investigação para outras comunidades. Além da testagem, diagnóstico e acompanhamento dos pacientes, é fundamental investigar o entorno dessas pessoas, pois muitas das vezes não são casos isolados. Muitos têm conexões familiares: um tio ou primo que teve a doença, ou algum parente que morreu de hepatite. Portanto, é importante realizar rastreamento e acompanhamento clínico de outros membros da mesma comunidade, que podem ser portadores da doença sem saber.

Como funciona o rastreamento?

Realizamos a coleta de sangue nas comunidades e encaminhamos as amostras ao Laboratório de Virologia Molecular da Fiocruz, em Rondônia, onde serão avaliadas. Esse trabalho é fruto de uma colaboração nossa com a Secretaria Municipal de Saúde de Lábrea (Semsa) e o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA/Lábrea). Pacientes diagnosticados com hepatite delta serão acompanhados por um clínico e, quando necessário, receberão tratamento e assistência pela rede municipal de saúde local, além do suporte do ambulatório especializado em hepatites virais do Cepem, em Porto Velho.

O Laboratório de Virologia Molecular da Fiocruz Rondônia desenvolveu um método molecular para a quantificação da carga viral de indivíduos com o vírus da hepatite delta (HDV). Qual a importância do uso deste método?

O kit diagnóstico foi desenvolvido internamente e nos permite quantificar o vírus presente na amostra de sangue do paciente. No contexto da endemicidade da hepatite D na região, essa quantificação é crucial para fornecer uma orientação clínica adequada, pois a quantidade de vírus detectada orienta o médico na definição do acompanhamento do paciente. O kit foi desenvolvido com o objetivo de atender à população da região afetada pela hepatite delta, mas também com a intenção de ser implementado em todo o Sistema Único de Saúde, beneficiando não apenas a população da Amazônia, mas de outras regiões do Brasil e do mundo.

“Nosso teste indica a carga viral, informa se o vírus está se replicando no momento e fornece a quantidade de vírus detectada. Essas informações são essenciais para determinar a conduta médica adequada para o paciente.”

Como funciona hoje a testagem para hepatites no SUS?

Atualmente, a testagem está disponível apenas para as hepatites B e C. No caso da hepatite delta, os testes são realizados apenas em regiões endêmicas. Esses testes utilizam marcadores sorológicos que indicam se o indivíduo teve contato com o vírus, mas não fornecem informações sobre a replicação viral. Nosso teste indica a carga viral, informa se o vírus está se replicando no momento e fornece a quantidade de vírus detectada. Essas informações são essenciais para determinar a conduta médica adequada para o paciente. O método utilizado é semelhante ao utilizado para pessoas vivendo com HIV e para aquelas com hepatite B. No SUS, exames de carga viral são realizados para hepatite B, mas não para hepatite delta. Infelizmente ainda não temos previsão de quando essa tecnologia estará disponível no SUS, em outras regiões do Brasil.

“Atualmente, a hepatite delta é considerada doença específica da região Norte. Essa limitação geográfica dos testes resulta em uma falta significativa de informações sobre a doença em outras partes do país, especialmente em áreas de difícil acesso.”

É possível dizer que a hepatite delta é uma doença negligenciada?

Podemos afirmar que sim. Primeiramente, não sabemos se a hepatite delta está amplamente distribuída no Brasil, porque não temos testes de rastreamento disponíveis em outras regiões. Atualmente, é considerada uma doença específica da região Norte, principalmente devido ao fato de os testes serem realizados quase exclusivamente na Amazônia. Essa limitação geográfica resulta em uma falta significativa de informações sobre a doença em outras partes do país, especialmente em áreas de difícil acesso. Sem uma ampla cobertura de rastreamento não conseguimos ter uma visão completa da prevalência e distribuição da hepatite delta no território nacional. Além disso, a falta de dados impede a implementação de estratégias de saúde pública eficazes e o direcionamento adequado de recursos para o controle da doença em indivíduos afetados.

Como surgiu seu interesse em estudar hepatites virais?

Trabalho na área de virologia há 26 anos. Desde a minha iniciação científica, no segundo período da faculdade, quando avaliava casos de dengue, já se falava sobre hepatite delta na região. Em 2004, devido à endemicidade e à ausência de métodos moleculares para diagnóstico desse vírus, surgiu meu interesse em desenvolver um modelo de diagnóstico capaz de quantificar o vírus. Isso ajudaria no monitoramento e acompanhamento clínico, seja em comunidades ribeirinhas e indígenas, em outros municípios ou em Porto Velho. Esse interesse se estendeu não apenas às hepatites virais, mas também a outras doenças, como vírus respiratórios e arboviroses.

O Repórter Adriano De Lavor entrevista a bióloga Deusilene Vieira, pesquisadora-chefe do Laboratório de Virologia Molecular da Fiocruz Rondônia, onde também atua como vice-coordenadora de Ensino, Comunicação e Formação.
Sem comentários
Comentários para: “Carga viral é essencial para determinar conduta médica”

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis