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Hospital dos Servidores, março de 2025, semana seguinte ao término do carnaval carioca. Crianças em tratamento, e seus familiares, que ficaram reclusas durante os dias de folia, são surpreendidas com uma visita no mínimo inusitada. Artistas-palhaços percorrem as principais alas do ambulatório infantil, situado no Centro do Rio de Janeiro.

São atores do projeto Roda: Palhaçada no Hospital. Nesta terça-feira de março (11), a equipe estava completa. Dez profissionais, especializados em trazer conforto e um pouco de alegria àqueles que passam por uma situação muito delicada. Respeitam, antes de tudo, a segurança e os protocolos. Interagem apenas com quem autoriza e se mostra receptivo às brincadeiras. “Quase todo mundo”, ressalta Guilherme Miranda, um dos coordenadores do projeto.

Ele e Julia Schaeffer estão à frente do Roda de Palhaços, grupo criado para promover ações sociais articulando arte, educação e saúde. Desde 2016, eles visitam regularmente os setores pediátricos do Hospital Federal dos Servidores do Estado e do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E, a partir de 2022, fecharam parceria também com o Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), onde estiveram dois dias depois (13/3).

Mais do que fundadores, Guilherme e Julia trabalham na produção e na execução das atividades do grupo. “Além de produzir e coordenar artisticamente o projeto, acompanhamos as ações nos hospitais, ministramos oficinas e tocamos a produção executiva. Ou seja, temos a noção completa do que acontece antes, durante e depois das ações”, conta Guilherme.

Mesmo acumulando funções, o artista não abre mão de continuar na linha de frente do projeto. Horas antes de uma visita, começa todo o processo de transformação. A maquiagem antecede o toque final: o nariz de palhaço. “Hoje a equipe é composta por mais oito incríveis artistas, dentro e fora dos hospitais: Adriano Pellegrini, Antônio Valladares, Cesar Tavares, Eliza Neves, Juliana Brisson, Letícia Medella, Madá Nery e Wildson França. Mas eu e a Julia não abrimos mão de estar juntos em todas as atividades. Interagir com os pequenos é o que nos move”, relata o palhaço.

— Foto: Ratão Diniz.

Alegria saudável

Um estudo divulgado em 2021 pela Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS) concluiu que as atividades realizadas por esses grupos de atores palhaços trazem uma série de benefícios aos pacientes dos hospitais: “Estudos relatam que a presença do palhaço consegue entreter a criança, amenizando a ansiedade e o medo na pré realização de procedimentos médicos, aumentando a colaboração e reduzindo os possíveis traumas que são sequelas de diversas abordagens invasivas realizadas durante o internamento”, conclui.

O levantamento da FPS, coordenado pelas pesquisadoras Ana Falbo e Camila Martins Vieira, analisou 22 publicações ao redor do mundo sobre a utilização da palhaçoterapia como prática de cuidado no ambiente hospitalar. Uma delas demonstrou que o humor terapêutico do palhaço foi eficaz no alívio da dor e da ansiedade de crianças entre 7 e 12 anos que passavam por quimioterapia. Outro estudo mostrou melhor desempenho e colaboração por parte das crianças durante a realização de testes respiratórios, reduzindo a dor e a ansiedade.

Para Guilherme, os aspectos positivos das visitas aos hospitais nem sempre podem ser mensurados. “Acredito que um trabalho regular como o realizado por nosso projeto torna-se muito importante uma vez que atua no estímulo criativo e afetivo daqueles pacientes que se encontram em extrema vulnerabilidade”, descreve. 

As crianças internadas são submetidas a protocolos de cuidado e, muitas vezes, privadas temporariamente da possibilidade de descoberta pela brincadeira que acontece no período da infância, ressalta o artista. “As palhaças e palhaços bagunçam esse cotidiano e lembram que o corpo alegre é mais ativo e saudável. A regularidade das visitas do projeto Roda de Palhaço também ajuda a criar vínculos com as crianças, acompanhantes e profissionais de saúde”, frisa.

Guilherme, no entanto, faz questão de dizer que o Roda de Palhaços não pratica a “palhaçoterapia”. “Não costumamos utilizar esse termo, pois não acreditamos estar realizando um trabalho terapêutico e, sim, artístico”. E explica: “Claro que temos comprovações ao longo desses vários anos das consequências terapêuticas positivas que as visitas regulares de palhaças e palhaços proporcionam aos pequenos pacientes, acompanhantes e profissionais de saúde. Mas, diferentemente de um terapeuta, em que a finalidade é estabelecer uma linha de tratamento eficaz, nosso elenco de artistas busca um canal para a brincadeira e a descoberta lúdica com a criança”.

Quebrar barreiras

Ao longo dos anos, os grupos de atores-palhaços de hospital quebraram diversas barreiras. Não foram poucas as vezes que a desconfiança e até os preconceitos atrapalharam o desenvolvimento de suas atividades. No entanto, com o passar do tempo, os benefícios de suas ações superaram os olhares atravessados e hoje eles têm uma receptividade muito melhor dentro do ambiente hospitalar.

Familiares e profissionais de saúde, no geral, reconhecem o valor e a importância do trabalho praticado por esses grupos. “Como realizamos este trabalho há muito tempo, sem interrupção, já desenvolvemos com a equipe de profissionais de saúde uma relação super especial de compreensão e ajuda mútua. São raras as vezes que a atuação não é compreendida como se deve e subestimada em sua importância. Normalmente, temos uma adesão muito bonita e sensível desses profissionais”, diz Guilherme.

De acordo com o estudo da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), essa atividade ajuda a reduzir o estresse por parte dos pacientes e pode facilitar a realização de exames e procedimentos pré-operatórios. “Torna-se notório que a presença do palhaço, quando adequada, é extremamente benéfica não só para os pacientes e familiares, mas também facilitando o trabalho do profissional de saúde”, ressalta a pesquisa.

O Grupo Roda de Palhaços tem um projeto de oficinas voltadas para enfermeiros e médicos. “Essas oficinas são realizadas nos hospitais parceiros e em outras instituições de formação, qualificação profissional ou promoção de saúde”, explica Guilherme. Segundo ele, essa atividade se baseia na experiência prática sobre a produção do cuidado: “É uma oficina que alia desde jogos e brincadeiras até a reflexão sobre conceitos como empatia, o olhar e a disponibilidade para o encontro com o outro, e princípios fundamentais para uma comunicação bem estabelecida, seja entre palhaços e crianças, médicos e pacientes, e entre equipes de atendimento”.

— Foto: Ratão Diniz.

Malabarismo para manter o projeto

A exemplo de outros grupos voltados para a promoção da saúde por meio de ações lúdicas em hospitais [Leia entrevista com o presidente do grupo Doutores da Alegria clicando aqui], o Roda de Palhaço também faz malabarismos para sobreviver e continuar suas atividades. “É um projeto que reúne artistas profissionais, que se dedicam com prioridade a este trabalho, com uma exigência grande de tempo e preparo pessoal e profissional. Apesar de ser um trabalho muito bem reconhecido por muita gente, a dificuldade de captação para um projeto regular e anual como o nosso é constante”, admite Guilherme.

Ele explica que o Roda de Palhaço é um projeto de responsabilidade social, que desde 2024 funciona também como instituto — que busca captação de recursos por meio da lei municipal e federal de incentivo à cultura e de editais voltados para práticas de saúde e bem-estar social.

“Apesar de todas as dificuldades, não paramos nem na pandemia. Durante esses anos difíceis, fizemos uma campanha de crowdfunding [com doações na internet], que nos possibilitou comprar um tablet e manter as visitas online com os pacientes”. Nesse período, também foi criado o Bobo Canal, no Youtube, com o propósito de manter o contato com as crianças em atendimento.

“Nosso maior sonho seria ver esse tipo de trabalho virar uma política pública que pudesse reconhecer a importância da manutenção dessas ações e oferecer, por exemplo, um edital específico”, afirma. Segundo o coordenador do grupo, é necessário fazer adaptações ano a ano, para garantir a continuidade do projeto. “No momento, ainda dependemos da sensibilidade de captadores de recursos e empresas privadas que, como nós, percebem a importância e o impacto do trabalho artístico de qualidade na saúde de crianças e adolescentes internados em hospitais”.

Perguntado sobre alguma experiência marcante ao longo de todo esses anos, o fundador do Roda de Palhaços se emocionou ao lembrar de um pequeno paciente. “Um dos nossos grandes/pequenos parceirinhos de hospital foi o Mickael. Ele praticamente nasceu no hospital e não falava quando o conhecemos com uma série de deficiências severas. Com este histórico difícil,  Mickael sempre se encantava com a visita dos palhaços e amava acompanhar as músicas. Com o tempo, desenvolveu a fala e um jeito maroto de se comunicar conosco e com toda a equipe”.

Veio a pandemia da covid-19 e Mickael também sentiu muito o distanciamento. “Enviamos um pen-drive com vídeos do elenco cantando as músicas que mais gostava. As enfermeiras diziam que ele pedia que colocassem o tempo todo”, relembra.

Após as vacinas e com a reabertura das visitas aos hospitais, Guilherme lembra o reencontro emocionante com o pequeno Mickael. “Reencontrá-lo ao vivo, vivo, assim que pudemos retornar às nossas atividades presenciais, foi um daqueles momentos que nunca vou esquecer. Foi uma verdadeira festa. Pouco depois, infelizmente, pela gravidade de sua doença, ele nos deixou. Mas suas memórias seguem conosco para sempre!”

Grupos como Doutores da Alegria e Roda de Palhaços fazem malabarismos para sobreviver. — Foto: Renato Mangolin.
Grupos como Doutores da Alegria e Roda de Palhaços fazem malabarismos para sobreviver. — Foto: Renato Mangolin.

História dos palhaços nos hospitais

Peter Spitzer, médico americano, relatou no artigo “Clown Doctors”, publicado em 2002, que atores palhaços atuam em ambientes hospitalares desde o período em que viveu Hipócrates. Há relatos também de que, no final do século 19, um famoso trio de palhaços (os irmãos Fratelini) já visitavam setores pediátricos de hospitais na França.

No entanto, o primeiro registro público dessa forma de atuação foi encontrado em 1908, em uma das edições de Le Petit Journal, mostrando a ação de dois palhaços numa enfermaria de um hospital pediátrico em Londres, na Inglaterra.

Os palhaços de hospital, como categoria profissional, surgem apenas em 1986, logo após uma apresentação do Big Apple Circus em um ambulatório na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Sensibilizado com a atividade, Michael Christensen criou o “Clown Care Unit”, projeto para treinar palhaços especializados em atuação hospitalar, voltados principalmente para as crianças.

Em 1991, Wellington Nogueira, que trabalhou na Clown Care Unit, funda no Brasil a “Doutores da Alegria”, referência mundial na arte do palhaço em hospitais.

A presença do palhaço, quando adequada, é extremamente benéfica para pacientes, familiares e profissionais de saúde. — Foto: Ratão Diniz.
A presença do palhaço, quando adequada, é extremamente benéfica para pacientes, familiares e profissionais de saúde. — Foto: Ratão Diniz.

Dica de filme: Patch Adams

O médico norte-americano Hunter Doherty “Patch” Adams se tornou o ator palhaço de hospital mais famoso do mundo. Nasceu em 1945, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Aos 17 anos, ao perder o pai e ser deixado pela namorada, internou-se numa clínica psiquiátrica com sintomas de depressão. Lá, percebeu que cuidar dos outros poderia ser o melhor remédio para si mesmo. Fez medicina na Universidade de Illinois, em 1971, e um ano depois fundou o Instituto Gesundheit. 

Ganhou fama mundial ao ter sua autobiografia retratada no filme “Patch Adams, o Amor é Contagioso”, lançado em 1998, sendo interpretado pelo ator Robin Williams. Apesar do sucesso nas telas ter aberto caminhos importantes na sua trajetória profissional, como ele mesmo admitiu, o médico americano fez algumas críticas ao enredo, que considerou muito simplista. Em famosa entrevista ao programa brasileiro Roda Viva, em 2007, Patch Adams afirmou nunca ter dito que rir é o melhor remédio.

No início, fiquei constrangido com o filme. Sou ativista político, trabalho pela paz e pela justiça. Hollywood queria vender ingressos. Duas coisas vendem ingressos: violência e humor. Preferiram enfatizar o meu esforço em abrir o único ‘hospital maluco’ da história. Ignoraram o fato de que luto por medicina gratuita”, disse à época. Assista: https://tvcultura.com.br/videos/63868_roda-viva-patch-adams-2007.html

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