Com mais de 480 mil inscritos em seu canal no YouTube, o psicólogo Christian Dunker iniciou a popularização de conceitos de psicanálise no mundo digital em 2014. A proposta para o canal veio através de Lucas Bully, na época com 19 anos e estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), que reconhecia que o pai do seu amigo tinha um nicho de interlocutores que poderia se interessar por aquela opinião sobre os mais diversos temas na internet.
A fruição do pensamento de Christian, numa espécie de associação livre, começou a ser compartilhada com incentivo do jovem e de uma equipe flutuante de mais quatro pessoas, responsáveis pela iluminação, som e cronograma de postagens. O canal se transformou e até hoje ainda é uma fonte de renda para aqueles jovens de dez anos atrás.
Mas antes mesmo desse sucesso nas redes sociais, em que só no YouTube e Instagram Christian acumula mais de 800 mil seguidores e inscritos, o professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) se firmou na carreira como psicólogo, escritor e pesquisador.
Com dezenas de livros publicados, Christian ganhou um prêmio Jabuti em 2012 na categoria Psicologia e Psicanálise pelo trabalho “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento”, pela editora Zagodoni; e levou o segundo lugar entre os finalistas, em 2015, pela obra “Mal‑Estar, Sofrimento e Sintoma – uma psicopatologia do Brasil entre muros”, publicado pela editora Boitempo, na categoria Psicologia, Psicanálise e Comportamento da premiação.
Descendente de família alemã, que chegou ao Brasil fugindo da Segunda Guerra Mundial, Christian antes de ser reconhecido como uma das vozes mais influentes do pensamento contemporâneo brasileiro, trabalhou no início da vida adulta no Mc Donald’s, foi auxiliar de pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), jornaleiro, limpador de jardim, mecânico de automóvel e pedreiro.
Nesta entrevista, que complementa a reportagem que Radis fez sobre economia de atenção e efeitos na saúde mental, em que o professor também participou, conversamos com ele sobre o déficit e o excesso de diagnóstico para as diferentes classes sociais brasileiras, o que é necessário para um bom diagnóstico e como um tratamento de saúde mental deve ser compreendido e conduzido para melhora dos sintomas de quem busca ajuda.
Por que há um aumento hoje de diagnósticos em relação a transtornos da atenção?
Com a entrada da linguagem digital, você, no fundo, reatualizou algo que as reformas psiquiátricas dos anos 1960 (a italiana, a francesa, a americana e a brasileira) já tinham questionado, que era o negócio da saúde mental. Antigamente, esse negócio estava baseado em ter um hospital e colocar pessoas o resto da vida nele e ganhar subsídios do Estado para manter essas pessoas em um estado de cronificação. A gente não quis isso. Mas no lugar disso, agora vem surgindo a ideia de que você pode, por exemplo, empresariar o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Você pode justificar amplamente as dificuldades escolares das pessoas com um diagnóstico em vez de perguntar: “será que essa escola está apropriada para esse estilo cognitivo? Será que essa criança tem uma dificuldade de aprendizado, que pode remeter a várias circunstâncias?” Muitas vezes esse diagnóstico não é feito por um especialista. É um diagnóstico justificatório. “Olha, é por isso então que eu não vou bem no trabalho. É por isso que eu não vou bem na escola. É por isso que eu não consigo responder ao excesso de demandas.” E aí você não vai questionar que há um excesso de demandas. Você não vai questionar o neoliberalismo, você não vai questionar que uma das práticas mais comuns do neoliberalismo é te dar mais trabalho do que você pode em sã consciência, de forma saudável, fazer, né?
Recentemente o senhor foi alvo de críticas por um vídeo que postou em 2020 sobre psicanálise e TDAH (138 mil visualizações) em seu canal do YouTube, trazendo a discussão novamente em outro vídeo em 2024 (59 mil visualizações).
A briga que você acompanhou é com um sujeito que vem da administração de empresas e que vende a ideia de que sabendo usar o seu TDAH, você vai se tornar um superprofissional potente, cheio de qualidades e superdotado. Vamos dizer que é um novo negócio. A psicanálise e a psiquiatra também são, mas na nossa área essa discussão tem que ser sempre feita pensando que o que a gente está fazendo tem compromissos, implicações éticas e efeitos iatrogênicos. Há efeitos de: “ufa, agora eu entendi vários sofrimentos que eu tenho na minha vida. Agora eu pertenço a uma comunidade de pessoas que sofrem como eu.” Qual é a ilação subsequente? Então, eu posso enfrentar isso melhor, eu posso tratar, eu posso me modificar. E não dizer que eu sou assim e vou continuar assim e o que a medicação complementa e resolve é o máximo, enfim, que eu posso alcançar.
Nas classes mais empobrecidas, há um processo muito frequente de demora diagnóstica.
Como esses diagnósticos se comportam nas diferentes classes sociais brasileiras?
As classes médias e altas aceleram o diagnóstico. Então, a gente pode dizer que existe uma crise de inflação diagnóstica. Muita gente sendo diagnosticada e muita gente sendo coagida a certos tratamentos. Mas quando você olha para as classes mais empobrecidas, há um processo muito frequente de demora diagnóstica. A criança não aprende, mas ela vai passando na escola. É difícil achar uma fonoaudióloga, é difícil levar para o psiquiatra, é difícil concluir o diagnóstico, então, a intervenção é adiada. Resultado: um grupo com um excesso de diagnóstico, o outro grupo com carência. Esse grupo que pode pagar o método ouro para o tratamento, por exemplo, do autismo, vai indiretamente excluir esse outro grupo, para o qual esse método não é acessível. Então, o que se fez foi, de fato, cristalizar uma diferença que não se justifica em termos científicos, clínicos e éticos.
E um diagnóstico precoce também pode ser prejudicial?
Mesmo essas pessoas tendo acesso a esses profissionais, um diagnóstico antecipado pode fazer com que talvez uma família comece a desinvestir numa criança, do tipo: “Ah, ele tem isso. É assim mesmo”. Quer dizer, o diagnóstico tomado para justificar aquela forma de vida. De um lado, excluir para criar deficiências. E do outro, o diagnóstico para criar e facultar certas facilidades que os diagnósticos trazem, em termos de aprendizagem, também em termos clínicos e em termos subjetivos.
Tem muito diagnóstico sem terapêutica, que não é seguido de acompanhamento com psicoterapia, com psiquiatra, para ver se melhorou.
E depois do diagnóstico?
Tem muito diagnóstico sem terapêutica, que não é seguido de acompanhamento com psicoterapia, com psiquiatra, para ver se melhorou, se precisa renovar a receita, tomar a medicação indicada. Depois do diagnóstico, a pessoa começa um processo de doping. Ela arruma uma receita, toma uma substância ilícita. “Ah, eu não consigo me concentrar mesmo, mas se eu cheirar uma carreira de cocaína fica melhor. Tenho que fazer isso. Eu não consigo me acalmar, mas se eu tomo aquele whisky, aí vai… Eu não consigo me concentrar no sexo. Ah, então tomo isso”. E assim a gente vai criando uma situação, que não é só de automedicação, que tem lá os seus riscos, mas é de dopagem, de aceitação. E aí o problema, inclusive, vai saindo da saúde mental e entrando em outros discursos, o que é muito ruim e desnecessário. Discurso moral, jurídico, religioso. Um discurso que historicamente estava antes da aparição da saúde mental no sentido próprio do termo.
As questões de saúde mental não são nem morais nem inteiramente médicas no sentido estrito do termo.
Como poderíamos entender melhor esses limites no cuidado das questões que envolvem a saúde mental?
O que é difícil para as pessoas entenderem é que as questões de saúde mental não são nem morais nem inteiramente médicas no sentido estrito do termo. Elas têm duas margens. A hora que você diz assim: “Olha, a minha questão psíquica se resolve, porque eu tenho um déficit de dopamina ou serotonina”, você saiu do campo da saúde mental e medicalizou, neurologizou o seu problema. Ou seja, “não sou eu, é meu cérebro, é a genética. Eu nem posso me mexer sobre isso.” Não é bom assim, como também não é bom dizer: “Não, isso é um problema de falta de fé. Isso é um problema de você não ter pensamento positivo.” Não. Isso é um problema, no fundo, da sua educação, da sua família, da sua maneira de ver o mundo. Saúde mental está entre essas duas margens. A hora que você joga para um lado ou para o outro, perdeu. E os diagnósticos malfeitos acabam recorrendo a um lado ou a outro.
E como ter um bom diagnóstico?
O diagnóstico bem-feito é dado por alguém que sabe fazer diagnósticos: psiquiatra, psicólogos, psicanalistas. Hoje, a maior parte dos diagnósticos são feitos por áreas que não têm formação, escuta e prática diagnóstica com psicopatologia. Existe um déficit de psiquiatras e de profissionais especializados em saúde mental. Um bom diagnóstico é sempre evolutivo. Precisa de acompanhamento ao longo do tempo. Melhora, piora? E ele também é sempre diferencial. “Ah, você pode ter isso, mas você pode ter aquilo também. Pode ser o TDAH. Será que não é uma depressão? Será que não é um processo bipolar? Será que não é uma reação de luto? Será que não há uma reação a uma transformação na sua forma de vida?” Como é que você vai saber? Não tem biomarcadores. Não é que os transtornos mentais não tenham uma referência cerebral, é óbvio que tem; mas a relação ainda não está conclusiva ao ponto de haver exames. Portanto, o diagnóstico evolutivo é sempre diferencial. Existem testes, procedimentos, que aumentam a sua confiança no diagnóstico. Eles foram feitos? Em geral, são caros e tem poucos profissionais habilitados a fazer. Um diagnóstico bem-feito é um diagnóstico com extrema e ativa participação do paciente. Ele está ali como sujeito da própria investigação.
Como as redes sociais influenciam nesses diagnósticos?
Um bom diagnóstico não é classificatório. Aparece lá no TikTok: [uma escala de] 1, 2, 3, 4, 5. “Ah, sou eu”, por identificação. É importante consultar, às vezes, mais de um especialista. Porque há controvérsia. Mesmo tendo muitas pesquisas com evidências fortes numa direção, essas evidências nem sempre se traduzem pela melhor teoria, a melhor terapêutica disponível para esse ou aquele caso. Aquilo que funciona em regra pode não funcionar para essa pessoa. Daí a importância de se construir junto com os profissionais e, de preferência, em rede, com a sua rede de sustentação, com a sua rede de apoio. E, de preferência, no território. “Ah, vou procurar um especialista na clínica Mayo nos Estados Unidos.” Tá bom, você vai fazer um encontro e você vai voltar para aqui. Como é que vai acontecer esse acompanhamento?
O melhor caminho para o enfrentamento do sofrimento psíquico é algum tipo de conjugação entre: transformações da forma de vida, medicação suportiva e psicoterapia.
Qual seria o melhor caminho para um bom tratamento?
É preciso ver qual a gravidade, qual o quadro, mas genericamente o melhor caminho para o enfrentamento do sofrimento psíquico é algum tipo de conjugação entre: transformações da forma de vida, medicação suportiva e psicoterapia. A gente tem investido muito pouco nessa ideia, porque a psicoterapia vai demandar isso e aquilo, porque a medicação precisa ser acompanhada. E aí vai precisar transformar a forma de vida? Pior ainda. Vou ter que mudar de escola? É, às vezes sim… Já pensou nisso? Mudar de trabalho, mudar de profissão? Isso dá trabalho, né?
Um bom diagnóstico em saúde mental precisa:
- Ser feito por profissionais com escuta qualificada, conhecimento em psicopatologia e formação em saúde mental (psicólogos, psiquiatras e psicanalistas)
- Ser evolutivo (acompanhamento ao longo do tempo)
- Ser diferencial
- Consultar, às vezes, mais de um especialista
- Fazer exames e testes para excluir outras condições
- Compreender a forma como a pessoa enxerga o mundo
- Entender sua família, educação, território, rede de apoio
- Considerar a pessoa como aliada na condução de sua própria investigação



Sem comentários