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Um ecossistema ameaçado por um empreendimento predatório. Uma comunidade à mercê da ambição mesquinha e maliciosa de políticos e empresários corruptos. Um esquema de contrabando marcado por violência, heranças e prejuízos ambientais. Essas são algumas premissas do enredo de Água Turva, romance recente de Morgana Kretzmann. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A proximidade entre ficção e realidade faz parte do projeto literário da atriz e escritora gaúcha.

“Eu venho de um lugar onde quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção”, afirma. Esse lugar de que Morgana fala é onde se passa a trama de seu livro e de onde ela conversa com Radis por chamada de vídeo: sua região natal, próxima ao Parque Estadual do Turvo, no interior rural do Rio Grande do Sul. Foram quatro anos dedicados a construir com detalhes factuais o cenário fictício ao redor dessa unidade de conservação ambiental, localizada na fronteira entre Brasil e Argentina, no Noroeste do estado.

A vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 com seu romance de estreia Ao pó foi atrás de se especializar em Gestão Ambiental no Instituto Federal de Santa Catarina, entrevistar profissionais da área e visitar pessoalmente o Parque do Turvo diversas vezes para contar essa história, que se desenrola em torno da ameaça de uma hidrelétrica, cuja construção irá alagar a reserva ambiental, sumindo com o Salto do Yucumã, a maior queda d’água longitudinal do mundo, e o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil.

O pano de fundo turbulento movimenta as ações das três protagonistas: Chaya, guarda-florestal que vive pela proteção do Turvo; Olga, jornalista e assessora parlamentar do machista e criminoso deputado Heichma; e Preta, líder do grupo de caçadores e contrabandistas, Pies Rubros, que atuam pelo Rio Uruguai no lado argentino. O destino das três se cruza em meio a conflitos familiares e heranças geracionais, numa trama ágil que evoca a literatura policial para discutir o colapso climático e ambiental.

O que foi rotulado como thriller ecológico, hoje também integra o que tem sido considerado pelo mercado editorial de cli-fi, climate fiction, ou ficção climática, um gênero literário que se preocupa em tematizar a emergência climática e os impactos da ação humana sobre o meio ambiente. Para a autora, Água Turva é o resultado de uma realidade que é prioridade também para a ficção — “o que vejo como a maior urgência que vivemos no planeta e que não vai acabar agora”.

No bate-papo de quase uma hora, no fim de junho, Morgana conta sobre o processo de criação do seu segundo romance, o convívio da natureza com a espiritualidade e como a literatura pode ser uma ferramenta de mudança. Emocionada, ela também dá um testemunho sobre a tragédia que, poucos meses depois da publicação de Água Turva, devastou o Rio Grande do Sul exatamente por consequência do desequilíbrio ecológico. “Hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana”. Descubra na entrevista a seguir. 

Conte um pouco da sua trajetória até chegar na literatura. Como a escrita se tornou cada vez mais frequente na sua vida?

Nasci no interior do Brasil, na fronteira com a Argentina, num lugar muito ermo — que é onde eu estou nesse momento, por sinal. Estudei, porém, em escolas que sempre incentivaram esse meu lado artístico. A arte surgiu na minha vida muito cedo: dança, teatro e escrita. Com 9 anos, comecei a escrever meus primeiros e pequenos livros. Inclusive, eu os fabricava: grampeava as folhas e fazia os desenhos. Era uma maneira de criar o mundo que eu queria estar.

E como você foi da carreira de atriz para a de escritora?

Mais tarde, quando me mudei para Porto Alegre, comecei a trabalhar como atriz. Estudei no Tepa (Teatro Escola de Porto Alegre) e, depois, na Escola de Atores. Fui para o Rio de Janeiro fazer CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), uma das escolas mais conceituadas e importantes do Brasil. E foi no Rio que comecei a ter menos vergonha de mostrar o que escrevia. Nunca havia publicado nada, a não ser em blogs, onde deixava alguns textos, poemas e coisas muito loucas que não tinham nem gênero específico. Quando casei com o Paulo Scott, que também é escritor, eu já estava morando no Rio de Janeiro de novo e comecei a fazer um curso de extensão de Roteiro Cinematográfico na PUC-Rio. É nele que realmente começo a escrever e surge meu primeiro livro, Ao pó, com o qual ganhei o Prêmio São Paulo. Esse livro nasce como um roteiro, mas começa a virar um romance e eu passo sete anos escrevendo-o, tentando encontrar a linguagem, reescrevendo-o várias e várias vezes. Quando eu já era finalista do Prêmio [São Paulo de Literatura], começaram a surgir convites para editoras maiores.

E como nasceu o romance Água Turva?

Acabei optando pela Companhia das Letras, onde publiquei, então, o Água Turva, que é esse livro que fala sobre crimes ambientais e tem pinceladas do que é o aquecimento global. E os próximos livros, que já assinei com eles, também terão questões ambientais e sociais, que permeiam a minha arte. Nesse meio tempo, também me formei em Gestão Ambiental, não para trabalhar como gestora, mas para poder colocar [em Água Turva] os temas ambientais que o planeta vive, o que hoje vejo como a maior urgência que vivemos e que não vai acabar agora. Eu vou morrer e isso vai continuar sendo uma urgência. Queria estudar para poder escrever, não falar bobagem; para ter um pouco mais de domínio das coisas. E foi imprescindível, tanto que o meu trabalho de conclusão de curso era literatura e meio ambiente: a importância da literatura como ferramenta didático-pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores. O que posso dizer é que Água Turva seria a aplicação da pesquisa que fiz.

A literatura se torna então um instrumento para refletir sobre a realidade, correto?

Hoje, três meses depois do lançamento, percebo que o meu projeto de pesquisa não estava errado, já que realmente o livro está chegando em pessoas que, inclusive, diziam que não liam nada sobre meio ambiente porque parecia chato. Tem gente que na literatura compara [as discussões sobre] meio ambiente com ficção científica, como se isso estivesse longe da realidade. De repente, você começa a ver coisas reais, como o que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e pega um livro que trata de problemas ambientais e que também se passa aqui. Um livro que tem uma linguagem ágil. É um thriller que fala de assuntos afetivos, de uma saga familiar. Quando eu dizia que, através da literatura, as pessoas poderiam ter um novo tipo de afeto em relação ao planeta, percebo que, com Água Turva, isso está acontecendo.

Como foi transformar sua pesquisa acadêmica em ficção?

Eu não transformo pesquisa acadêmica em ficção. Eu faço ficção, como sempre trabalhei. Porém, os conhecimentos que adquiri durante a faculdade estão ali dentro, como as leis ambientais, sobre caça e unidades de conservação. Só para o Parque do Turvo eu viajei cinco vezes para entrevistar guardas florestais, funcionários, ribeirinhos, pessoas que moram do lado argentino e do lado brasileiro do parque. Tudo isso para entender os crimes ambientais que acontecem nessa região. Considero a geografia do Parque Estadual do Turvo perfeita para essa história, não só porque é uma unidade de conservação, mas porque está numa fronteira, dividida por um rio. Consigo tratar, então, não só de crimes ambientais, mas de toda uma gama de crimes que permeiam uma fronteira. Uma fronteira que não tem policiamento e tem as próprias leis. Quando crio os Pies Rubros, um grupo de caçadores de animais silvestres e contrabandistas que moram do lado argentino, é porque sabemos que nesse lugar há um acordo entre as pessoas do local, que vai além das leis que temos na nossa ou na constituição argentina. Queria escrever um livro policial que falasse de crimes ambientais e fronteiriços. E esse era o lugar mais propício para fazer isso.

O que a abordagem policial trouxe para o livro?

Tenho um incômodo muito grande quando colocam livros policiais como um gênero menor. Não é de maneira nenhuma. Quando digo que é uma obra policial, não estou diminuindo a minha história. Passei quatro anos escrevendo. Ele tem quase 300 páginas, foi feita uma baita pesquisa. Entrei dentro do Parque Estadual do Turvo com o meu irmão, num lugar muito ermo, junto com um guarda-florestal, para encontrar os acampamentos desativados de caçadores, as cevas, os trepeiros [caçadores que sobem em cima das árvores para preparar armadilhas e capturar animais]. Tudo isso foi super perigoso. Os caçadores estavam lá, tivemos que fugir. Toda essa sensação de fuga e de busca está no livro. Optei por essa linguagem por acreditar que faria as pessoas se interessarem ainda mais por uma obra com uma temática ambiental. Não é um livro “chato” sobre o meio ambiente — como algumas pessoas antigamente falavam.

Seu livro apresenta aspectos fantásticos e espirituais interessantes, tendo esse misticismo ligado predominantemente à natureza. Por que combinar essas duas abordagens?

Às vezes, as pessoas falam em “Brasil profundo”, “realismo mágico ou fantástico” e vários outros termos. Acredito que elas pensam que isso está muito longe, quase algo irreal, enquanto para mim, meus irmãos, minha sobrinha, meus avós e todos que vivemos aqui, é a realidade. Quando estou dentro do Parque do Turvo e um panapaná [nuvem de borboletas] se forma ao redor de mim, como no livro Cem anos de solidão do Gabo [Gabriel García Márquez], não descrevo algo que imaginei e sonhei. Eu vivi isso. Entrei no Parque do Turvo e uma nuvem de borboletas voou ao meu redor, e elas não fogem, não vão embora, você fica tomado por elas. Quando falamos de um personagem como o Sarampião, existem várias figuras aqui no interior, nessa fronteira — e não só aqui, mas em outras regiões também — que morreram e as pessoas rezam por elas. As pessoas realmente têm fé nelas. É claro que invento: o meu Sarampião não existe, mas poderia ter existido. Existiu um guarda-parque no Turvo há muitos e muitos anos atrás, meus avós chegaram a conhecê-lo, que tinha esse apelido, chamavam-no de Sarampião de brincadeira. Achei um nome tão incrível que criei uma família inteira e um santo ao seu redor. 

Essa abordagem que mistura o místico e a natureza parte, portanto, de suas próprias vivências?

Quando falamos de plantas medicinais, ontem mesmo, eu estava catando espinheira santa, quebra-pedra e funcho para fazer um chá. Meu pai quando está com pressão alta, toma os seus remédios, mas antes de dormir vai aqui fora, cata as folhinhas certas, lava, faz um chá e toma. Quando colocamos isso num livro, as pessoas, principalmente da cidade grande, veem como algo muito mágico, quando para nós é a realidade. Crescemos nesse Brasil que muitos nem acreditam existir e com o tempo vamos aprendendo com os mais velhos sobre essa medicina familiar, que está dentro do pátio da nossa casa e nunca mais esquecemos. O Sarampião nasce disso, quando ele salva as netas com os emplastos, os remédios e os chás. Eu entendo o termo realismo mágico. O livro vai ser publicado na Alemanha e, para eles, é realmente outro mundo. A palavra que eles usam é “encantados” e penso que é, em todos os sentidos da palavra: do arrebatamento e da magia. Eles não conseguem imaginar o que é o rio Uruguai, por exemplo. Eu escrevi uma crônica com uma lenda sobre esse rio para uma revista alemã e eles achavam que era tudo fantasia, e eu falo que não, o Rio Uruguai existe, gente! [risos]

Chaya, uma das personagens centrais do seu livro, delega para si o compromisso de cuidar e salvaguardar o Parque do Turvo. Que nível de poder uma sociedade pode ter sobre as questões ambientais ou das mudanças climáticas?

No livro, vemos a Chaya mais ativa, mas essa é uma luta comunitária. Existe um projeto de uma hidrelétrica no Rio Uruguai que se chama Garabi Panambi. Ele custaria 5 bilhões de dólares e existe desde a década de 1970. Se fosse construída — no livro, mudo o nome e crio a Gran-Roncador, já que faço ficção em cima de uma notícia —, essa hidrelétrica iria gerar uma quantidade de energia muito pequena para todo investimento financeiro, desgaste e crimes ambientais dispensados. O salto do Yucumã, por exemplo, o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, ficaria debaixo d’água. Perderíamos o último reduto da onça-pintada do Sul do Brasil, que fica entre Brasil e Argentina. A onça desce pela floresta e tem os seus filhotes no Turvo, atravessa o rio Uruguai a nado — é uma ótima nadadora. Espera a cria estar mais ou menos pronta para a caça, atravessa de volta, e ensina a oncinha a caçar dentro do Turvo. Isso tudo se perderia debaixo d’água, sem contar a região dos ribeirinhos, cidades e comunidades agrícolas ao redor. 

A literatura pode ajudar a sociedade a reagir contra interesses que ameaçam a preservação ambiental?

Em vários lugares falam a mesma coisa: “Vou construir uma hidrelétrica, e daí trazer universidade, empresas, asfalto, isso e aquilo”. É a mesma desculpa do investimento. Só que com 5 bilhões de dólares, constroem-se quantas universidades, empresas e asfalto? Quantas cidades podem se reerguer? O quanto se pode girar a economia desses municípios com 5 bilhões sem precisar colocar em risco o Salto do Yucumã, a Reserva do Turvo, o último reduto da onça-pintada? E não é dinheiro só de instituição privada. Na medida em que as comunidades se unem e entendem as discussões econômicas, sem serem enganadas, elas vão dizer ‘não’ para tudo isso. É o que tento colocar no livro, especialmente na cena da primeira reunião sobre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Tento colocar isso na boca de alguns personagens. É por isso que precisamos lutar social e politicamente no Brasil: pelo conhecimento. 

“Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos.”

O conhecimento liberta, não é mesmo?

Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos. E a literatura entra nessa questão. Quando entregamos um livro que trata de questões ambientais, raça ou colorismo, como o Água Turva, o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, e o Avesso da Pele, do Jefferson Tenório, e alguém lê e estabelece uma relação afetiva com esses temas, sabemos que essa pessoa constrói outro pensamento. Para conseguir dominá-la, sejam políticos, igrejas ou patrões, será mais difícil. Quando essas pessoas começam a pensar por si, seja por meio da literatura ou dos estudos, elas vão reivindicar o que elas querem. Precisamos lutar pelo estudo e pela leitura para que as pessoas pensem por si e não deixem uma meia dúzia de poderosos que mandam no nosso continente decidirem por nós. A gente pode decidir. No Água Turva, quando todos se levantam e vão embora com a Chaya, é uma comunidade inteira lutando contra meia dúzia de poderosos. E eles vão vencer. Nem sempre isso acontece na realidade, mas a minha esperança é que cada vez mais essas coisas aconteçam.

“Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção.”

Você acha, então, que a literatura pode servir a um propósito?

Acho muito complicado colocarmos o artista num lugar de imposição. O artista não deve nada, deve à sua própria arte. Ele faz aquilo que acredita, seja qual for o caminho. Eu, por exemplo, estou num momento da minha vida que cheguei a estudar gestão ambiental porque quero continuar falando sobre assuntos ambientais e sociais. São questões caras para mim. Eu venho de uma cidade muito pobre, de uma região paupérrima do Rio Grande do Sul. Aqui, nesse momento, por causa das enchentes, está faltando tudo. Falta comida, remédio, gasolina. As pessoas estão realmente passando fome e necessidade. Estou vendo isso agora, mas já vi tantas outras vezes. Venho de uma família de agricultores, muito pobres. Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção. É o que eu posso fazer. Mas você pode escrever um livro por puro entretenimento, e isso abrir as portas para quem nunca leu na vida ler outros livros.

E como a sua literatura dialoga com o protagonismo feminino?

Quero continuar falando sobre questões sociais, ambientais e, também, femininas. Me perguntam, mas você só vai escrever livros com protagonistas mulheres? Gente, tem milhares de livros com protagonistas homens. A porcentagem de livros com protagonistas mulheres é infinitamente menor do que com protagonistas homens. Por que vou escrever mais um livro com um protagonista homem? Quero escrever sobre mulheres. Em matéria de ficção, o meu prazer é muito maior em criar personagens femininas fortes, que lutam, que estão com um facão na mão, estão defendendo a sua comunidade e as suas famílias. Eu me sinto muito mais à vontade fazendo isso. 

Suas personagens são complexas, não são maniqueístas. Elas também têm relações complicadas e têm seus lados imperfeitos, como todos nós temos.

Teve uma pessoa na rede social que disse: “mas em Água Turva as personagens femininas são todas boas e os masculinos são todos maus”. Um cara que tinha feito uma ótima resenha respondeu: “Querido, você não leu o livro” [risos]. Quando as mulheres [do livro] têm que ser más, elas são muito más. O livro começa com a Chaya matando um homem sem pensar duas vezes.

Exato. A Preta também é uma personagem interessante nesse sentido. Ela tem uma raiva vinda de herança da avó, uma angústia muito grande por conta da família. Ela também é uma caçadora, então, de certa forma, ela prejudica o parque. Porém, é a sua maneira de sobreviver. É difícil julgar completamente esses personagens, não é?

A minha ideia era essa, principalmente a Preta, que é a minha personagem favorita. Ela surge por último durante o processo de criação. Eu defendo a Preta, inclusive. Ela faz o que tem que ser feito para defender aquilo que ela acredita. Agora, é correta a maneira que ela faz as coisas que ela precisa fazer? Não, não é. 

O que podemos fazer para quebrar o ciclo trágico que acompanha a crise climática?

Veja o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Estamos em ano de eleições municipais e precisamos pensar em pessoas que amem as suas cidades. Estamos cheios de prefeitos em cidades grandes e do interior, de todas as vertentes políticas, que parecem odiá-las. Se começássemos a votar em pessoas que amam o seu chão, o seu território, elas estariam hoje pensando em soluções ambientais para manter esses lugares. Vemos o que aconteceu em Porto Alegre. É um absurdo que o prefeito tenha colocado sacos de areia em cima de bueiros para que não abrissem as tampas e a água voltasse a alagar a cidade. Alguém precisa odiar demais a sua cidade para pensar nesse tipo de solução. Sinceramente, não tenho resposta para essa pergunta. Mas continuo achando que agora as coisas vão ser pautadas pela crise climática, e se tornar questões econômicas e, assim, mobilizar um número maior de pessoas. Quando digo um número maior de pessoas, são os poderosos, as pessoas que realmente mandam no mundo. Quem sabe, [a emergência climática] comece a ser vista de outra maneira. 

Como tem sido vivenciar o cotidiano após as enchentes no Rio Grande do Sul?

Cheguei aqui no Rio Grande do Sul na terça-feira [em junho], e hoje é o primeiro dia que parou de chover desde que cheguei. Tive que descer de avião em Chapecó [SC]. Não tem voo mais para o estado. As estradas estão horrorosas. Além da chuva, são estradas que não foram construídas para aguentar esse volume tão grande de caminhões. Você vê que está tudo muito destruído. Tem uma tristeza tão grande no ar que só estando aqui para entender. Tenho vontade de chorar. O Mário Quintana tem uma frase maravilhosa que diz que a gente sempre está voltando para casa, mesmo que ela não exista mais. Você vê o seu lar destruído, mas, ao mesmo tempo, é o seu lar. É uma tristeza muito grande ver tudo debaixo d’água: as estradas destruídas, os morros caídos e a tristeza das pessoas. Então, hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana.

“Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também.”

Que tipo de herança você quer que seus personagens e seu livro deixem para as gerações futuras?

Somos responsáveis pelas próximas gerações. É aquele ditado africano, que diz que quando uma criança nasce, a comunidade toda é responsável por ela. Precisamos pensar que mundo vamos deixar e como eles vão sobreviver nele. Se esse livro for lido daqui a 20, 30 anos, espero que ele leve a mensagem de que nem todos foram negligentes no Brasil e no mundo de hoje. Tivemos comunidades e indivíduos que tentaram lutar com as armas que tinham para melhorar e deixar o mundo habitável para as próximas gerações. Como disse Chico Mendes, ecologia sem luta de classes é jardinagem. Penso que não adianta lutarmos só pelas questões ambientais sem pensar nas sociais. É o que acontece no Rio Grande do Sul. As pessoas mais pobres estão vivendo um sofrimento que não conseguimos imaginar. No frio, na chuva, sem comida, muitos ainda sem lar. Perderam absolutamente tudo, ainda não conseguiram ajuda governamental para comprar o básico. Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também. Espero realmente que as próximas gerações entendam a história de Água Turva, da região de Dourado, da família Sarampião e de como a comunidade que vive ao redor do Parque do Turvo lutou para barrar essa construção que permeia o livro.

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