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Originalmente o termo gaslighting foi utilizado para sinalizar violência psicológica sutil em que a mulher é manipulada pelo opressor, especialmente em ambientes domésticos e de trabalho. Seria uma variação do verbo gaslight, cuja tradução para o português é algo como distorcer. Contudo, uma expressão adaptada desse termo tem emergido de uns tempos para cá. Trata-se do ‘gaslighting médico’, condição na qual os pacientes sentem-se invalidados pelos profissionais de saúde que os tratam sem a devida importância. 

No caso de uma doença complexa e de difícil diagnóstico, como a disautonomia, cujos sintomas podem ser vagos ou similares a diversas outras patologias, o cuidado e o acolhimento do profissional deveriam ser redobrados ao invés de minimizados, como revelam alguns dos depoimentos colhidos por Radis [Leia reportagem completa sobre a disautonomia aqui].

“A pior parte é a falta de validação, quando não acreditam que nossos sintomas são físicos e não psicológicos. A saída mais fácil que a maioria [dos médicos] opta é considerar que essa gama de sintomas é psicossomática, receitar antidepressivos e dispensar o paciente”, pondera Fernando Santos. Ainda segundo ele, essa negligência e a “psicologização de sintomas” é “histórica em várias doenças crônicas mais complexas, que recebem pouco investimento e atenção”. 

“Os pacientes vão sendo ignorados e varridos para debaixo do tapete, como se fossem um incômodo para a ciência e a medicina”, ressalta. Entre as pessoas entrevistadas pela reportagem que vivem com disautonomia, não foi raro encontrar relatos de negligência, descaso e até mesmo violência médica.

A jornada do paciente

Diversos desses relatos indicam que profissionais de saúde desconhecem e invalidam a experiência dos pacientes com disautonomia. “É aí que a gente vê que a jornada do paciente é tão importante”, relata Beatriz Madaleno. Ela própria, antes de ter suas queixas acolhidas e compreendidas, passou por situações de despreparo em sua investigação clínica. “Segundo os médicos, ou não era nada, ou eu era ansiosa ou eu era sedentária. Só havia essas opções de diagnóstico”, relata.

No caso de Beatriz, nem mesmo a pista do diagnóstico foi suficiente para torná-la mais crível. Certa vez, em um atendimento de emergência decorrente de uma taquicardia forte e persistente, conta que foi desacreditada pelo médico e invisibilizada, mesmo informando que estava em investigação de disautonomia. A situação de desdém piorou, segundo ela, quando se recusou a aceitar um calmante prescrito pelo profissional.

Possivelmente se sentindo desautorizado, o médico passou a ignorá-la, dirigindo-se apenas a seu pai, insistindo que o quadro apresentado se tratava do que chamou de transtorno de humor. “Aí, nesse dia, eu percebi: a partir daqui, mesmo tendo o diagnóstico, realmente vou ser invisível, as pessoas não vão me ver e não vão acreditar em mim”. 

Beatriz afirma que a invalidação é ainda mais penosa quando afeta a credibilidade da família e até mesmo do próprio paciente. “Chega a um ponto que nem você acredita em você. E tem pessoas que passam a ser questionadas pela própria família, de tanto ser invalidado”, ressalta, acrescentando que não foi o seu caso, pois sempre recebeu apoio de seus familiares.

Defasagem na formação médica 

Janaina Pasinato aborda outra preocupação decorrente do descaso médico, que são as iatrogenias ocasionadas por efeitos colaterais de intervenções equivocadas. “Tem gente que tem diagnósticos absurdos. Eu mesma, em 11 anos, fiz tratamento para enxaqueca sem dor, epilepsia sem manifestação, síndrome do pânico sem crise de pânico, síndrome de estresse, tudo e mais um pouco, tomando medicamentos que só pioravam [os sintomas]”, conta.

Ela também aponta que o desconhecimento dos médicos leva a falsos diagnósticos relacionados à saúde emocional e relata que a maior parte dos pacientes com quem teve contato declara que foi inicialmente diagnosticado com estresse, depressão, ansiedade ou pânico. “Como não entrar em pânico com sintomas de comprometimento de todo o corpo sem que os médicos acreditem no nosso relato e achem que é coisa das nossas cabeças?”, indaga. 

Já Beatriz afirma que nem as evidências físicas eram capazes de dissuadir os profissionais que insistiam em limitar as possibilidades de diagnóstico a seus próprios conhecimentos. “O mal-estar era tanto que, enquanto aguardava atendimento, eu não conseguia nem ficar sentada sem me sentir tonta. Como a pessoa não consegue sequer ficar de pé e os médicos continuam insistindo em ansiedade?”, questiona. 

Para Fernando, receber uma resposta concreta para aquele conjunto de sintomas que passou a acompanhá-lo após a covid foi um alento. “Ter um diagnóstico foi um alívio e uma validação enorme, pois confirma que não é ansiedade e os sintomas não são coisa da cabeça”, completa. “A desvalidação é pior do que a própria doença, porque [sem a confirmação de um diagnóstico] você vai ser questionado o tempo todo”, completa Beatriz. 

Ao analisar a forma como suas demandas costumavam ser negligenciadas, Janaina problematiza a formação médica. “Os médicos não estão preparados para o diagnóstico de disautonomia. Não tiveram conhecimento em suas faculdades ou na vida profissional”, pontua. Segundo ela, esse desconhecimento pode levar a diagnósticos errados. “É frequente ouvirmos relatos de que os médicos nunca ouviram falar do assunto e precisamos apresentar a patologia para eles”, complementa. 

Juliana Dias — que além de paciente, é médica — também comenta a defasagem dos profissionais. “A disautonomia é uma condição complexa que exige exclusão de diversos diagnósticos que também geram fadiga e tontura até que se possa afirmar que se trata deste problema cardiovascular e neurológico. Outro fator que dificulta o diagnóstico é o capacitismo que está arraigado na sociedade”, reflete. Ela também destaca a necessidade de conscientização sobre o sintoma de fadiga mental. “Talvez se os profissionais de saúde soubessem ouvir e dar crédito a estes sintomas, já seria um começo”, analisa.

Sensibilidade no acolhimento

Fernando descreve experiências negativas diante de vários médicos em pouco mais de um ano de seus sintomas pós-covid. “Quando fui às consultas com neurologistas e cardiologistas, era nítido que estavam defasados sobre o tema. Um cardiologista chegou a dizer que eu não tinha Pots [síndrome da taquicardia postural ortostática] porque seria raro e só ocorreria em mulheres”, conta.

Segundo Juliana, a avaliação de um geneticista também pode ser um caminho importante que auxilia no diagnóstico. “Como profissionais de saúde, mal sabemos dar encaminhamento às pessoas com quadros tão desconhecidos”, reflete. 

Para Fernando, o gasligthing denunciado por ele e pelas demais entrevistadas ocorre, também, por conta de uma tensão que pacientes atípicos geram na classe médica: “Pacientes e doenças difíceis de tratar são um incômodo lembrete de suas limitações”, avalia. Já Beatriz enfatiza a importância de que os médicos e demais profissionais de saúde entendam que há, sim, opções de tratamento e alívio para melhorar a qualidade de vida dos pacientes de disautonomia, ainda que nem sempre seja uma cura definitiva. 

E mais: é necessário que os profissionais tenham sensibilidade para enxergar essas pessoas como indivíduos plenos, para além da condição que os acomete: “Primeiro, muitos médicos não entendem que a gente tem opções de tratamento. Mas até os que entendem não percebem o impacto na nossa saúde familiar e social, e que essa condição afeta a nossa saúde como um todo”, conclui Beatriz.

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