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Janaina, Juliana, Fernando, Beatriz e pelo menos outras 70 milhões de pessoas ao redor do mundo têm uma coisa em comum: algo não vai bem com seu sistema nervoso autônomo (SNA). E esse número pode ser ainda maior. Acredita-se que a estimativa oficial seja mascarada pela desinformação e pelo desconhecimento por parte de pacientes à procura de diagnóstico e dos próprios profissionais de saúde.

A condição partilhada por todos eles se chama disautonomia, uma disfunção do SNA que pode acarretar tonturas, desmaios, fadiga, oscilações constantes da frequência cardíaca e desregulação da pressão arterial e da temperatura, dentre outros descompassos no organismo. Os sintomas, muitas vezes incapacitantes, podem se manifestar mesmo durante o repouso ou até com movimentos simples, como se levantar. Diversas evidências indicam que o Brasil continua atrasado quanto a diagnóstico, pesquisa científica e tratamento dessa condição.

Apesar do nome simples e quase autoexplicativo, a disautonomia é uma doença complexa e pouco difundida. Por ser uma condição multifatorial, negligenciada e com múltiplas possibilidades de diagnóstico, essa descoberta torna-se um grande desafio.  Com isso, muitos indivíduos acometidos pela disfunção sofrem com suas consequências e levam muito tempo até a obtenção de respostas conclusivas. Pior do que essa demora é a invalidação dos relatos de pacientes pelos profissionais de saúde, o que ocorre em grande parte dos casos [Leia sobre gaslighting médico aqui].

As manifestações severas da disautonomia interferem significativamente no bem-estar e nas condições de interações sociais dos indivíduos acometidos por ela. O surgimento da disfunção pode estar relacionado principalmente a fatores genéticos, infecções virais, exposição a produtos tóxicos, doenças autoimunes e traumatismos (confira outras condições para esse desencadeamento clicando aqui).

Para compreender melhor essa realidade, Radis conversou com quatro pessoas que convivem com a disfunção e elas compartilham suas histórias, que vão da longa procura por diagnóstico até a luta por qualidade de vida.

Janaina: uma busca incessante por respostas

Janaina Pasinato. — Foto: acervo pessoal.

O ano era 2005. Janaina Pasinato, natural do Rio Grande do Sul, tinha 26 anos quando se recuperou de uma infecção causada pelo vírus Epstein-Barr. Meses antes, no fim de 2004, ela havia sofrido um acidente que lhe causou uma fissura no calcanhar e uma concussão, decorrentes do impacto de um salto de pé em uma piscina com menos água do que deveria. Por terem ocorrido em um intervalo muito próximo, os dois episódios concorrem até hoje como fatores desencadeantes da disautonomia desenvolvida por ela.

Janaina havia se formado em arquitetura e urbanismo. Sintomas como tontura, mal-estar e indisposição constantes surgiram pouco tempo depois e há 18 anos nunca mais lhe permitiram ser a pessoa saudável e bem-disposta de antes. “É uma maneira chata de falar, mas não sou mais uma pessoa integral, não sou uma pessoa inteira”, afirma.

A mudança de vida foi repentina. “De uma hora para outra, vira uma chave e você vive um luto de uma vida que você teve e não vai mais ter”, reflete. Daquele ano em diante, diversas intercorrências médicas passaram a fazer parte de sua rotina, em função de manifestações sintomáticas diversas, dentre elas: cardiovasculares, gástricas e hormonais: “Eu pensava: ‘o que está acontecendo comigo?’ Meu corpo inteiro não funciona”, relembra.

Nenhum dos especialistas consultados conseguia descobrir o que havia de errado. Anos mais tarde, já em 2012, passou por uma investigação aprofundada, em busca de possíveis doenças degenerativas, como a esclerose. Mas, apesar da maratona de consultas, exames e entradas em hospitais, mais uma vez nada de concreto foi encontrado.

“É uma desesperança. Você pensa: ‘Se tentou por todos esses anos e ninguém te deu uma resposta, vai ver tenho que viver assim pelo menos até que a ciência descubra o que está acontecendo’”, relata. Segundo ela, no auge das crises, o mal-estar é constante: “Você se sente mal o tempo inteiro. Eu chamo essa sensação de vale da morte”. 

Ainda que lutando contra as disfunções do seu organismo, Janaina buscou levar uma vida não restrita a consultas médicas e exames. Em uma década, especializou-se, cursou mestrado e conseguiu bons cargos, como o de engenheira de segurança do trabalho na Petrobras. Porém, em 2015, precisou tomar uma difícil decisão: interromper a carreira e retornar à casa dos pais. Era a disautonomia literalmente lhe tirando a independência. “Essa incapacidade para o trabalho se dá porque você não consegue mais ter uma cognição adequada, respirar adequadamente, ter condição cardiovascular. Todo o teu corpo está em pane”, descreve.

Disautonomia: taquicardia em repouso. — Foto: acervo pessoal.
Disautonomia: taquicardia em repouso. — Foto: acervo pessoal.

Ao recuar e olhar para si, Janaina recebeu o acolhimento e o apoio da família. “Em 2015, eu entrego meus pontos, praticamente não consigo mais ficar de pé. Daí, vim para Sananduva (RS), para ser acolhida pelos meus pais. Para ser cuidada. Confesso que cheguei a me despedir deles na época. Foi difícil, mas minha mãe e meu pai nunca desistiram e diziam: ‘Um dia a gente vai descobrir o que você tem’”, recorda-se.

E assim foi feito. Em 2016, a nuvem de incertezas começou a ser dissipada, quando em uma consulta cardiológica ela foi submetida ao teste da mesa inclinada (em inglês, tilt table test), um dos procedimentos padrões para diagnóstico da disautonomia, que avalia como a frequência cardíaca e a pressão arterial reagem às mudanças de postura corporal. Janaina tinha, enfim, o nome daquilo que há mais de uma década havia lhe tomado a qualidade de vida.

Aos 44 anos, ela conta que consegue ter “momentos bons” nos intervalos das crises e lidar um pouco melhor com sua condição, tendo acumulado informações e conhecido possibilidades de cuidados. Contudo, ainda há períodos conturbados, nos quais simplesmente levantar da cama já se torna um grande desafio: “Às vezes, eu posso até estar bem. Porém, a instabilidade e a incerteza do que vai acontecer me fazem recuar de assumir compromissos”, desabafa. 

Janaina faz uso de uma metáfora musical para explicar o que ocorre com o corpo em uma crise de disautonomia: “É como se o SNA fosse uma orquestra e, quando você está sofrendo da disfunção, tudo está desafinado. E para você conseguir voltar a ter uma vida normal, é preciso que tudo se afine”.

Desde a descoberta do diagnóstico, Janaina dedica-se a ajudar outras pessoas com disautonomia em grupos de apoio, partilhando informações e experiências. Ela criou e administra uma página no Instagram (@dys.autonomia) e trabalha na produção de uma espécie de cartilha introdutória, voltada para novos integrantes do grupo virtual que administra. Além disso, também atua na divulgação da disautonomia junto à sociedade. Foi dela a iniciativa de sugerir a pauta à Radis (Voz do leitor, Radis 244).

Juliana: uma médica à procura de diagnóstico

Juliana Dias. — Foto: acervo pessoal.

Uma das companheiras de Janaina na luta pela disseminação de conhecimento sobre a disautonomia é Juliana Dias, médica de família e comunidade da Prefeitura de Belo Horizonte (MG). Empossada no cargo em 2004, ela atuou durante oito anos em um Centro de Saúde e atualmente trabalha na área de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) da capital mineira. Juliana também é gaúcha, mas foi nas redes sociais que conheceu a conterrânea Janaina, em 2020, quando buscava apoio e orientações para compreender aquela nova condição em um universo ainda desconhecido, mesmo para uma médica.

“Descobri a existência do grupo de apoio pelo Facebook. Escrevi para Janaina e ela foi uma parceira extremamente acolhedora”, conta. Dali, o contato evoluiu para amizade e resultou em parceria. Hoje, ambas administram um dos grupos de disautonomia no WhatsApp, criado por Janaina.

A busca de Juliana pelo diagnóstico não foi tão longa como a da amiga, mas nem por isso menos angustiante. Embora os sintomas tenham começado a prejudicar sua rotina e motivá-la a procurar assistência médica apenas aos 41 anos, em 2018, os sinais já estavam presentes em sua vida bem antes. “Desde a infância percebo que tenho muita elasticidade, me destacava no ballet e brincava com a minha frouxidão ligamentar. Tive muitas dores de crescimento e dei um estirão meio desproporcional na adolescência, mas até aí tudo bem”, conta.

Mais à frente, durante sua formação em medicina, Juliana descobriu que essa mobilidade atípica tinha relação com uma síndrome rara, em que a disautonomia é uma das possíveis consequências. “Foi numa aula de genética, com um professor renomado em doenças raras, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que percebi que eu poderia ter a tal síndrome do contorcionista. Mas segui a vida”, relembra.

Anos mais tarde, contudo, a disautonomia se apresentou de forma mais intensa e seus efeitos não puderam mais ser ignorados. “Em 2018, tive uma pneumonia atípica com sintomas mais graves. Após esse episódio, a minha pressão, que sempre foi baixinha, começou a cair mais e mais. E agora levava muitos dias para eu me recuperar. Até que uma vez fiquei dois meses de cama. Busquei acupuntura, homeopatia, psiquiatria e os tratamentos não ajudavam”, narra.

Juliana Dias em uma sessão semanal de fisioterapia de reabilitação cardiovascular. — Foto: acervo pessoal.

Além desses sintomas incômodos, Juliana passou a ter dormência nos pés e episódios de problemas de memória e confusão mental, chegando a temer a ocorrência de doenças neurológicas, como o Alzheimer precoce. “Comecei a estudar o que poderia ser, suspeitei de disautonomia e depois conversando com um grupo de pacientes vi que não era a única. Fechei o diagnóstico com o tilt test em outubro de 2020”.

No ano seguinte, a médica descobriu que sua disautonomia tinha origem genética, devido à síndrome de Ehlers-Danlos, a tal condição de flexibilidade exagerada já percebida na infância. “Fiz vários exames, muitos deles pagos e caros para chegar a este diagnóstico”, afirma. O custo elevado de consultas e exames é outro fator que dificulta a descoberta e o tratamento da disfunção. “Em um ano de investigação, posso dizer que gastei o equivalente a um carro”, resignou-se em uma live em suas redes sociais.

Embora reconheça a potência do SUS, ela avalia que o sistema público ainda não é capaz de lidar integralmente com a complexidade da doença. “O SUS é todo poderoso. É claro que precisa destinar recursos, exames e pessoal capacitado para poder dar atenção às pessoas com disautonomia. De certa forma, alguns pacientes são atendidos pelo médico de família, cardiologista ou neurologista. A questão é que nem todos têm conhecimento do assunto”, pondera.

Entender melhor essa condição fez com que Juliana também pudesse encontrar compreensão em casa e até mesmo no trabalho. “O apoio da minha família é fundamental. Sinceramente não sei se teria conseguido seguir em frente sem sentir o amor que eles têm comigo. Mas essa condição impacta todas as áreas da minha vida: minha função de mãe, esposa, responsável pela casa, amiga, filha, irmã e, é claro, afeta também minha vida profissional”, relata.

Fernando: depois da covid

Fernando Santos. — Foto: acervo pessoal.

Fernando Santos passou a vivenciar um quadro de disautonomia após contrair o vírus da covid-19. Natural do Rio de Janeiro, o publicitário de 31 anos viu sua vida mudar radicalmente após abril de 2021. Depois de se recuperar da infecção, Fernando desencadeou uma disautonomia manifestada pela síndrome da taquicardia postural ortostática (Pots, na sigla em inglês). “Quando comecei a ter os sintomas cardíacos, eu já desconfiava que era por causa da covid, pois nunca tive problemas de saúde sérios antes e não tinha comorbidades”, afirma. 

A Pots é uma forma muito característica de disautonomia e acarreta frequência cardíaca acelerada. Ocorre principalmente quando a pessoa acometida da disfunção fica de pé e o fluxo de circulação sanguínea não funciona corretamente. A taquicardia pode ser acompanhada de leves alterações na pressão arterial, falta de ar, dor no peito, sensação de desmaio e confusão mental. Normalmente, em alguns minutos, os sintomas se estabilizam, mas em muitos casos a constância e a intensidade dessa disfunção são críticas. 

Em conversa com a reportagem, Janaina demonstrou uma preocupação específica relacionada à pandemia de covid-19, principalmente quando passou a acompanhar com mais atenção casos da chamada covid longa (Radis 239). Ela lembra que infecções virais são uma das causas de disautonomia e afirma que alguns relatos lhe soavam familiares. Perda cognitiva; a chamada nuvem ou névoa mental, proveniente da má oxigenação do cérebro e de falhas na circulação sanguínea; e mal-estar no peito: segundo ela, alguns desses sintomas são comuns à disautonomia.

A suspeita de Janaina é confirmada pela cardiologista Denise Hachul, considerada uma das principais referências médicas em disautonomia no país. A especialista abordou o tema durante o 76º Congresso Brasileiro de Cardiologia, realizado em formato online, em novembro de 2021. A médica correlacionou a disautonomia como uma das possíveis sequelas da covid-19 ao afirmar que o vírus SARS-CoV-2 é encontrado em células cerebrais e, portanto, poderia afetar o SNA, provocando disfunções em muitos pacientes. “A síndrome pós-covid [covid longa] é, especialmente, e na grande maioria dos casos, uma disfunção autonômica”, declarou em sua fala no evento. 

Nas palavras de Denise, entretanto,  a disautonomia pode ser revertida quando sua origem não é de ordem genética, como nos casos de sintomas pós-covid, desde que descobertos e tratados adequadamente. “A disautonomia é mais uma condição do que doença. Como existem várias formas, há muitas que têm controle e não cura — e outras podem desaparecer com o tratamento da condição que a provocou”, afirma à Radis.

Ao sofrer com essas consequências da covid, Fernando relata que meses após a infecção começou a ter sintomas neurológicos e cognitivos, como perda de memória recente e foco, queda de cabelo, dores musculares e nas articulações. “Eu estava em casa e de repente tive taquicardia e palpitações”, recorda. Hoje, ele afirma ter os sintomas mais controlados e credita o fato ao repouso correto, à ação do tempo e até mesmo à sorte: “Já que não há oferta de clínicas realmente especializadas e tratamento médico adequado para a maioria dos sintomas, principalmente no Brasil”, critica.

A disfunção autonômica viria a alterar radicalmente a rotina de Fernando, que até então levava uma vida ativa e de cuidados com o corpo. “Atualmente estou um pouco melhor da fadiga e consigo fazer o básico do dia a dia, como tomar banho, escovar os dentes e lavar louça. Mas não consigo ficar em pé por muito tempo, andar longas distâncias, fazer uma trilha, correr, jogar futebol ou praticar e competir o jiu-jitsu, que eu amava”, relata. “Minha saúde e vida estão alteradas para sempre ou ao menos enquanto não houver cura ou tratamento eficaz para a covid longa”, desabafa.

Fernando utiliza a internet para buscar informações que possam ajudá-lo a lidar com a disautonomia, ainda que a maioria do material encontrado seja em idiomas estrangeiros. “Tento trazer alertas e informações sobre covid longa [nas redes sociais]. Se não fosse minha capacidade de acessar e filtrar informações em inglês, eu estaria ainda mais perdido”, declara. E faz uma reivindicação: “Precisamos de aliados: cobertura midiática, apoio médico de verdade, validação, auxílio de políticas públicas, investimento em pesquisa e tratamentos biomédicos, para retomarmos nossas vidas de maneira minimamente saudável e podermos retornar ao mercado de trabalho”.

Entre idas e vindas em hospitais desde 2021, ele aponta uma defasagem médica grave. “Os médicos sabem muito pouco sobre como diagnosticar e tratar covid longa, fadiga crônica e disautonomia”, pontua. Contudo, Fernando enxerga uma possibilidade de mudança nesse cenário a médio ou longo prazo. “A esperança dos pacientes é que, infelizmente, com a pandemia e milhões de pessoas com sequelas, esse paradigma da ciência e da medicina mude. Existem estudos promissores sendo feitos internacionalmente, mas com velocidade, investimento e quantidade longe do ideal”, avalia.

Beatriz: a importância da escuta ativa

Beatriz Madaleno. — Foto: acervo pessoal.

Beatriz Madaleno tinha entre 15 e 16 anos quando perdeu o equilíbrio de sua bicicleta às margens do Lago Igapó, famosa atração turística de sua cidade, Londrina, no Paraná. Dias antes, já havia vivenciado uma sensação parecida em um supermercado. Os sintomas manifestados nas duas ocasiões foram tontura, taquicardia, suor frio e sensação de desmaio. Hoje, com 24 anos, a jovem lembra ter atrelado aquelas ocorrências ao calor ou mesmo à sua condição sedentária. 

Àquela altura, ela ainda não sabia, mas já sofria com as consequências da Pots. Os casos de tontura e taquicardia aumentaram em frequência e intensidade, motivando uma busca de quase sete anos até o diagnóstico, que apesar de ansiado caiu como uma bomba pela forma como foi revelado, em 2021. “Receber o diagnóstico da disautonomia foi muito doloroso para mim, porque o médico disse que não existia tratamento e que eu teria que conviver com isso para o resto da vida”, revela.

Diante do prognóstico desanimador, Beatriz se recorda de ter conversado em uma semana com cerca de 40 meninas de várias partes do mundo com o mesmo diagnóstico que o seu, tentando entender melhor aquela condição e possibilidades dentro e fora do Brasil. Mas até obter o diagnóstico, sua jornada foi longa: só em um ano, chegou a ir a 20 médicos. 

Durante esse processo, uma das principais suspeitas era de que os sintomas tinham origem emocional. Logo, transtornos de saúde mental, como ansiedade e burnout, foram apontados por alguns especialistas como possíveis causas para a instabilidade que Beatriz sentia em seu corpo. A jovem, entretanto, não se convencia dessas hipóteses. “Eu ainda era adolescente, meus pais me acompanhavam nas consultas e ouviam os médicos como autoridades. Eles sabem o que falam, estudaram para isso, né? Então, minha voz ia perdendo força e eu começava a ser questionada”, relata.

Beatriz chegou a receber uma receita controlada para tratar ansiedade, mas se recusou a aderir ao tratamento — afinal, ela sabia que o que sentia era de natureza física. “Teria piorado ainda mais o meu caminho, demorado muito mais para ter um diagnóstico”, reflete. Com o passar do tempo e o agravamento dos sintomas, as consultas médicas também se intensificaram. Antes da resposta definitiva para o seu problema, ela ainda seria submetida a tratamentos ineficazes para hipotireoidismo e labirintite, passando por procedimentos que só pioravam sua condição.

Foi durante o acompanhamento de um desses diagnósticos equivocados, com um otorrino, que o médico soube de um caso de tumor cerebral na família de Beatriz e passou a considerar a possibilidade de algo mais grave, recomendando uma investigação neurológica urgente. “Minha mãe ficou muito abalada com essa desconfiança, mas àquela altura eu só queria saber o que tinha. Lembro de dizer para ela que preferia saber que ia morrer no dia seguinte do que não descobrir o que estava acontecendo comigo”, revela. 

E foi nesse neurologista, em sua cidade, que pela primeira vez em anos Beatriz encontrou aquilo que buscava: um profissional de saúde que validasse seus sintomas e a escutasse. “Esse médico foi um anjo, porque ele olhou para mim e escutou tudo o que eu tinha para falar. Ninguém até então tinha parado para escutar e validar o que eu dizia”, conta.

“Lembro que ele falou: ‘Os médicos são muito orgulhosos. Eles preferem falar que é qualquer coisa do que dizerem que não sabem’”, recorda. Por não ter uma resposta, o profissional a encaminhou para uma colega com quem dividia o consultório, mais acostumada a pacientes raros. No dia seguinte à consulta, um sábado, Beatriz retornou ao local para avançar na sua busca. “A médica abriu o consultório e me recebeu. Ela me ouviu e, juro, não levou mais de três minutos. Ela olhou para mim, levantou-se, sentiu meu pulso e falou: ‘Eu acho que você tem uma coisa que se chama disautonomia’. Foi simples assim”, relata.

“Com escuta ativa e conhecimento — ela é endocrinologista e neurologista —, a médica conseguiu perceber rapidamente do que se tratava”, declara. Até bater o martelo, contudo, ainda seria preciso descartar outras possibilidades, “porque algumas manifestações de epilepsia e alguns tumores acontecem dessa mesma forma ”, conta Beatriz. Ao passar por novas consultas e baterias de exames, o diagnóstico foi confirmado pelo outro médico, mencionado no início do relato.

Beatriz soube mais tarde que a origem de sua disautonomia era genética, como consequência da síndrome de Ehlers-Danlos (SED). Ela também desenvolveu outra doença disautonômica, a síndrome de Ativação Mastocitária (SAM), que provoca fortes reações alérgicas, muitas vezes imprevisíveis, incluindo a certos cheiros. “Essa minha condição, com as três síndromes — Pots, SED e SAM — é chamada de trifecta nos Estados Unidos”, observa. Atualmente, Beatriz afirma lidar melhor com os sintomas, mas ainda passa por situações desafiadoras, especialmente em dias muito quentes ou em filas, quando não consegue atendimento prioritário e precisa ficar muito tempo em pé e parada na mesma posição [Leia uma entrevista sobre disautonomia e deficiência invisível aqui].

Hoje, a jovem cursa a faculdade de psicologia e atua como mentora e palestrante com foco na experiência do paciente, humanização dos atendimentos à saúde e cuidados centrados na pessoa, após ampla formação. Beatriz também construiu laços de amizade e cooperação em sua trajetória. Uma dessas amigas é Tamara Esteves, criadora da página @disautonomiabrasil, no Instagram, que as duas administram juntas, assim como um grupo de WhatsApp.

Beatriz e Tamara produzem e disseminam gratuitamente materiais de apoio sobre o tema e trabalham pela criação da Associação Brasileira de Disautonomia. Para concretizar a ação, a dupla tem se reunido com outras associações de pacientes e realizado consultoria jurídica. A proposta seria ampliar o acesso ao diagnóstico, a informações e cuidados, além de servir como um espaço colaborativo e que ajude a dar visibilidade à condição, ainda muito negligenciada no meio médico e científico.

Alguns cuidados e um apelo

Além dos tratamentos convencionais para regulação de determinados sintomas, com prescrição e acompanhamento médico, os entrevistados incentivam a adoção das chamadas medidas não farmacológicas e comportamentais para melhorar a qualidade de vida: alimentação equilibrada, sono e hidratação adequados, aumento do uso de sal na dieta (sempre que indicado pelo especialista) e prática de exercícios físicos dentro das condições e possibilidades de cada pessoa, além de evitar ambientes e situações com muita aglomeração e de calor mais intenso e até mesmo fazer uso de meias compressoras e roupas mais apertadas, que possam ajudar na circulação sanguínea, quando preciso.

Outra dica importante para preservação da integridade física em situações de desmaio é que, caso a pessoa sinta que poderá perder a consciência, procure sentar-se no chão ou até mesmo deitar-se em um local seguro.Um desejo comum a Janaina, Juliana, Fernando, Beatriz e tantas outras pessoas que vivenciam histórias parecidas é a desmistificação da disautonomia. Eles alertam que é preciso ampliar o alcance dessa discussão, entender que a disfunção do SNA afeta milhões de pessoas de diferentes maneiras e que muitas delas sequer têm conhecimento sobre isso — ou, pior, são desacreditadas sobre aquilo que sentem dentro de suas casas ou nos consultórios médicos. Disautonomia existe, é uma condição real, com manifestações sintomáticas e efeitos diversos. E todos nós precisamos falar, ouvir e aprender mais sobre isso. 

Alguns sintomas comuns da disautonomia

Um dos sinais mais frequentes de disautonomia é a dificuldade em ficar de pé por muito tempo devido à ocorrência de tontura, palpitação ou mal-estar, chamada de  intolerância ortostática. As pessoas com essa condição podem sofrer desmaios por conta da desregulação do fluxo sanguíneo no corpo e comprometimento temporário do funcionamento de órgãos centrais, como o cérebro e o próprio coração. 

Conheça os principais sintomas:

  • Dificuldade de ficar de pé
  • Tontura, vertigem e desmaios
  • Batimentos cardíacos rápidos, lentos ou irregulares
  • Pressão sanguínea baixa
  • Perturbações visuais
  • Dificuldades respiratórias
  • Mudanças de humor
  • Fadiga e intolerância ao exercício
  • Enxaquecas
  • Tremores
  • Padrão de sono interrompido
  • Problemas de regulação de temperatura
  • Problemas de concentração e memória

Fonte: Disautonomia Brasil (@disautonomiabrasil)

Fatores que podem desencadear a disautonomia

O sistema nervoso autônomo (SNA) é responsável pelo comando de ações vitais e involuntárias do nosso organismo, como o batimento cardíaco, a circulação sanguínea, a função respiratória e o controle da temperatura e da pressão arterial, além de funções digestivas e outras atividades fisiológicas essenciais que realizamos de forma inconsciente. Confira alguns dos fatores que podem ocasionar disautonomia:

  • Doenças degenerativas do SNA, como atrofia muscular espinhal (AME), doença de Alzheimer, Parkinson, distrofia muscular, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica (ELA), entre outras
  • Danos ao SNA por trauma físico, envenenamento ou intoxicações
  • Doenças autoimunes
  • Síndrome de Ehlers-Danlos (SED)
  • Doenças cardiovasculares
  • Diabetes
  • Mielite transversa
  • Tumor cerebral
  • Botulismo
  • Síndrome de Guillain-Barré
  • Infecções Virais

Saiba mais em: Dysautonomia International (http://dysautonomiainternational.org)

Fomento à pesquisa

As principais contribuições da Dysautonomia International, uma associação internacional voltada para distúrbios no SNA, com sede nos Estados Unidos, ocorrem por ações de fomento a pesquisas, educação médica, conscientização pública e programas de capacitação de pacientes. Só em 2022, o órgão disponibilizou cerca de US$ 800 mil — cerca de R$ 4 milhões — em bolsas para pesquisadores de todo o mundo. Para concorrer ao financiamento, os interessados tiveram que submeter seus projetos a editais com propostas para melhorias no diagnóstico, tratamento e qualidade de vida dos pacientes, conforme regras publicadas no site da associação.

Saiba mais em: Dysautonomia International (http://dysautonomiainternational.org)

As pessoas reagiram a este conteúdo
Comentários para: Disautonomia, essa desconhecida
  • 3 de abril de 2024

    Tenho Elhers Danlos. No meu caso o que mais impacta a minha vida, de maneira geral é a fadiga inexplicável e incompreendida.

    Responder

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