“A equidade é um olhar diferenciado para as pessoas que são diferentes em suas necessidades”, afirma Heliana Hemetério, conselheira nacional de saúde, ao ser convidada a refletir sobre o significado deste princípio considerado um dos pilares do SUS, ao lado da universalidade e da integralidade. “Não podemos tratar os direitos da população negra, LGBTQIA+, das pessoas em situação de rua, dos povos de rios e floresta e comunidades tradicionais, dentro do discurso da igualdade universal, porque essas populações nunca foram tratadas com igualdade”, declara.
Militante histórica dos direitos da população negra e das pessoas LGBTQIAPN+, Heliana considera que a noção de igualdade é insuficiente para garantir saúde a parcelas da população sempre colocadas em um lugar de subalternidade. É preciso incluir a equidade na conversa, não apenas na formulação das políticas públicas como também no cotidiano dos serviços de saúde. “Não vamos conseguir um atendimento de qualidade no SUS, se não levarmos em consideração a interseccionalidade”, afirma.
Mulher negra, na luta por direitos desde os anos 1980, ela ajudou a organizar o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas, em 1996. Sempre trabalhou com a interseccionalidade entre as questões de raça, classe social, gênero e orientação sexual. Integrante da mesa diretora do Conselho Nacional de Saúde (CNS) como representante da Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas (Candaces), ela acredita nas potências do SUS, em seus 35 anos de existência, mas não esconde as críticas necessárias para o que sistema garanta o que está previsto na Constituição: o direito à saúde de todas as pessoas.
“Os médicos deveriam ter sensibilidade, maior conhecimento e menos preconceito para cuidar dessas mulheres que têm orientações sexuais diferenciadas”
“Promover a escuta da sociedade civil e o controle social foi um grande presente que o SUS trouxe”, afirma, em relação aos legados do sistema. Contudo, ela chama atenção que é preciso dar continuidade às poucas conquistas e conseguir avançar em outras, sobretudo em relação às pessoas que mais precisam e ao enfrentamento do racismo e das discriminações. “Os médicos deveriam ter sensibilidade, maior conhecimento e menos preconceito para cuidar dessas mulheres que têm orientações sexuais diferenciadas”, afirma.
“Para essas políticas darem certo, as populações têm que estar juntas. Não adianta implementar ações sem escutá-las”
Promover políticas de saúde voltadas para as populações historicamente marginalizadas exige que essas pessoas sejam incluídas na discussão. “Para essas políticas darem certo, as populações têm que estar juntas. Não adianta implementar ações sem escutá-las”, defende.
Aos 74 anos, Heliana Hemetério conversou com Radis, para a edição especial sobre os 35 anos do SUS [Leia a matéria sobre equidade] e afirma que segue na luta por direitos, mas deseja uma renovação na militância, com maior envolvimento da juventude. “Temos uma juventude com muito conhecimento, mas completamente digital. O ativismo presencial é muito importante”, declara.
“Não podemos tratar os direitos da população negra, da população LGBTQIA+, das pessoas em situação de rua, dos povos de rios e floresta e comunidades tradicionais, dentro do discurso da igualdade universal, porque essas populações nunca foram tratadas com igualdade”
O princípio da equidade não está explícito na Lei 8.080, que criou o SUS. Fala-se em “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”. Qual é a importância do debate sobre equidade na saúde?
Equidade é quando a gente dá mais a quem recebe menos. Vou dar um exemplo: não podemos tratar os direitos da população negra, da população LGBTQIA+, da população em situação de rua, dos povos de rios e floresta e comunidades tradicionais, dentro do discurso da igualdade universal, porque essas populações nunca foram tratadas com igualdade. Equidade seria o entendimento de que essas populações sempre estiveram no espaço da subalternidade na construção dessa sociedade. Elas nunca tiveram igualdade. É só olhar o sistema, o cotidiano das pessoas desses segmentos. Qual é a igualdade que a sociedade oferece à população em situação de rua? Com que direitos eles são vistos? Qual é o acesso deles às políticas públicas? Qual é o direito da população negra? Nós temos uma população negra hoje em dia de mais ou menos 56%, de acordo com o último Censo, e olha onde está a população negra. E as mulheres? As mulheres conseguiram alguns direitos. As pessoas sempre dizem que as mulheres alcançaram alguma autonomia. Mas que mulheres? Mulheres brancas, de classe média, que têm acesso à educação, ou mulheres negras periféricas, lésbicas, trans, em situação de rua? Temos que pensar no tratamento de direitos a partir da equidade.

“Temos que pensar no tratamento de direitos a partir da equidade”
As opressões e discriminações se sobrepõem na sociedade brasileira e não é possível pensar as necessidades das minorias políticas de forma estanque ou isolada. Como a interseccionalidade contribui para a promoção da equidade em saúde?
A importância disso é o atendimento de qualidade. Não vamos conseguir um atendimento de qualidade no SUS, se não levarmos em consideração a interseccionalidade. Você não pode atender uma mulher negra urbana que mora em comunidade da mesma maneira que você atende uma mulher branca, pobre, que mora no subúrbio. Qual é a diferença? A diferença está no tratamento da sociedade com essa mulher. O tratamento que um jovem branco recebe da segurança não é o mesmo do jovem negro. Trago a questão da segurança, pois não tem um mês que ocorreu a chacina no Rio de Janeiro [operação nos Complexos da Penha e Alemão, em 28/10], em que mataram não sei quantos traficantes, mas nós sabemos que isto não é real. O que há no Rio de Janeiro é uma briga de facção e das milícias. Mataram alguns jovens ligados ao tráfico, mas essa é a maneira de se fazer justiça? A equidade já começa aí. Se aqueles jovens tivessem recebido desde o nascimento um tratamento equânime na sociedade, com certeza a maioria deles não estaria no tráfico.
É preciso então se atentar para essas diferenças?
Uma mulher negra que mora em comunidade, que vive sob pressão diária, seja da milícia, seja do tráfico, vai apresentar problemas de saúde que não vai bastar apenas dar uma medicação para ela. Precisamos saber a origem daquela hipertensão, daquela diabetes, daquela insônia, que é completamente diferente de uma mulher branca, de classe média alta, que mora num bom condomínio. Como vamos tratar a população indígena que está vendo a sua cultura ser dizimada todos os dias, vivendo o embranquecimento dentro desse sistema? Vemos a crise no território vivida pelos Xavante, assim como aconteceu com os Yanomami, os Avá-Canoeiro, os Ticuna. Vamos cuidar de uma mulher indígena da mesma forma que uma mulher branca, que mesmo sendo pobre e vivendo naquele território, tem o poder da branquitude? Recentemente, recebemos um relatório absurdo da situação vivida pelo Povo Xavante. Como é que essa mulher chega para ser atendida, uma mulher indígena, que acham que ela tem que ir sozinha fazer o pré-natal, que não tem direito a um parto normal e tem que fazer uma cesariana? Toda a cultura dela é jogada fora.
“A equidade é um olhar diferenciado para as pessoas que são diferentes em suas necessidades”
Como a equidade funciona na prática?
A equidade é um olhar diferenciado para as pessoas que são diferentes em suas necessidades. Como é atender a população de rios e florestas que vive em localidades que levam de 3 a 7 dias para se chegar? Que médico é esse [que vai atender]? Sabemos que os médicos de família são discriminados dentro da própria classe médica. Os médicos especialistas, cardiologistas, neurologistas, são muito reconhecidos. Mas aquele médico de família que conhecia sua mãe, sua avó, sabia da doença delas, esse não é reconhecido. Como vamos mexer nesse SUS que está fazendo 35 anos, que ainda é muito novo, e não conseguiu dar todas as respostas? E não vai dar tão cedo, porque a privatização está aí o tempo todo, além do Congresso pressionando o tempo todo.
E os profissionais que estão na ponta entendem a equidade?
Se você pensa que todo mundo que está na saúde entende a equidade, esse é outro detalhe. Não, as pessoas não entendem. As pessoas não entendem que, para a saúde ter resultado, é preciso ter equidade. É preciso reconhecer que nem todo mundo precisa de tudo, o tempo todo. É preciso olhar aquela pessoa pelo território de onde ela vem, a raça, a orientação sexual, a religião. Eu não posso conversar com uma mulher neopentecostal como converso com uma mulher de religião evangélica tradicional, ou de religião afro-brasileira ou católica. Cada uma tem os seus princípios. Precisamos escutar primeiro e a partir disso vamos dialogar. Não podemos chegar com um “pacote” pronto. Temos que perguntar: “Disso que temos para oferecer, o que você realmente necessita?” Eu posso estar oferecendo coisas que ela não necessita, porque estão inseridas em uma política que trabalha ainda com igualdade, e não com equidade.
“O racismo transpassa a sociedade o tempo todo”
Por que o enfrentamento ao racismo estrutural e à discriminação contra pessoas LGBTQIA+ é tão importante para o SUS?
Na realidade, deveria ser realmente importante. O SUS ainda não olha para essas pautas com a importância que deveria. Para ser universal e inclusivo, ele tem que ter um outro olhar para essas pessoas. Você não pode chegar perto de uma mulher lésbica e perguntar a ela o que ela usa para não engravidar, se a priori ela não vai engravidar. Os médicos deveriam ter sensibilidade, maior conhecimento e menos preconceito para cuidar dessas mulheres que têm orientações sexuais diferenciadas, como as lésbicas e as bissexuais, incluindo a identidade de gênero diferenciada, como mulheres e homens trans. Quando falamos da questão racial, o racismo transpassa a sociedade o tempo todo. Nós vivemos a nova escravidão. A abolição histórica ficou no papel, porque a população negra não teve a abolição até hoje. A gente vê outras maneiras de escravidão, como o trabalho escravo, quando se paga a empregada doméstica com menos de um salário, quando não se assina a carteira, quando não se dá o direito a férias. São outras maneiras de manter a subalternidade dessa população. Temos dificuldade de implementar uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que já deveria estar implementada, mas quando chegamos nos estados e municípios, não interessa ao secretário municipal ou estadual de saúde. O racismo está presente, e não é diferente no Conselho Nacional de Saúde.
Qual é a importância do território para se promover equidade?
Sempre pensamos no território de forma urbana, capitalista. Não se pensa no território como a Mãe Terra, o território que nutre e alimenta, que leva a água e a fé. O território é sempre visto como um lugar para plantar e colher para enriquecer. Esses povos [indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais] trazem na sua cultura outra maneira de ver o território. São esses povos que estão em condição de subalternidade, que não tem a equidade reconhecida, como os indígenas, a população negra, os povos de rios e florestas, são essas populações que sustentam esse mundo capitalista. Esse mundo capitalista que pega tudo de bom que eles oferecem. Cada dia estamos mais envenenados com agrotóxico, com vários aditivos, saindo de uma história de uma população saudável para uma população completamente doente. Nós somos uma sociedade doente. Todo mundo toma remédio para tudo.
Como a construção de políticas voltadas para populações específicas contribui para fortalecer o SUS? Em outras palavras, por que estamos falando de um SUS universal e mais forte e não mais fragmentado?
A dificuldade é olhar o outro e ver a partir dele e não da gente. Sabe aquela frase que diz: “Nada de nós sem nós”? Para essas políticas darem certo, as populações têm que estar juntas. Não adianta implementar ações sem escutá-las. Não adianta definir caminhos para a população trans se não escutar as trans. E digo mais: temos que escutar as trans brancas e negras, pobres e não pobres. Porque as trans brancas têm uma história, as trans negras têm outra história. Quando conversamos com mulheres que são profissionais do sexo, descobrimos que as brancas ganham mais do que as negras. A raça atravessa o capital até nisso. Aliás, você não pode conversar com as trans como se todas fossem profissionais do sexo. Nós estamos vendo um percentual de trans que estão na universidade e algumas já são doutoras reconhecidas. Como é conversar com elas sobre as dificuldades que têm no cotidiano enquanto uma trans, doutora, universitária? Como é a disputa nesse espaço com um corpo trans? Se você é uma lésbica feminina, você tem um tratamento da sociedade; se você é uma lésbica desfem [que não aparenta feminilidade], tem outro tratamento; se você é uma lésbica desfem e preta, é outro tratamento. É nisso que temos que estar atentos para a construção do SUS universal: universal é isso.
“Precisamos inclusive desconstruir os nossos próprios preconceitos”
Qual é a importância do enfrentamento ao preconceito e ao racismo?
Precisamos inclusive desconstruir os nossos próprios preconceitos. Porque eu posso ser uma pessoa da luta antirracista e ser LGBTfóbica. Posso ser uma lutadora da causa LGBT e ser uma pessoa racista ou discriminar a população em situação de rua todos os dias. Uma coisa é estarmos todos nós juntos na construção da política para a população em situação de rua. Mas quando saímos à rua, o nosso comportamento em relação a essa população modifica muito pouco. Quando falo isso, é olhar para as pessoas em situação de rua sem que a gente apresente rejeição. A mesma coisa em relação ao racismo. O que é preciso para a promoção de equidade? Nós precisamos modificar o nosso olhar como pessoas, como cidadãos. Um homem branco, hetero, católico, de nível superior é um perfil. E esse perfil terá de lidar com os outros dentro da sociedade. Como fazer essa conta? Precisamos também voltar a discutir sociedade de classe. Uma coisa é ser negro e rico, como os jogadores de futebol, os grandes cantores, os pagodeiros, que estão na mídia. Mas eles serão sempre os cantores negros, embora pensem que “não são tão negros”, que se livraram do racismo. Não podem fazer uma bobagem, pois a cobrança é maior sobre eles. Como construir equidade se as pessoas não conseguem olhar para o outro? A gente olha para os outros ainda com preconceito. E eu pergunto: como você está educando seu filho, seus netos?
“Quando nós viajamos para fora e a gente fala de SUS, primeiro eles não entendem direito como o SUS funciona. E segundo, quando eles começam a entender, eles não sabem o que é controle social, eles não conseguem entender essa construção das conferências”
Nesses 35 anos de SUS, quais as maiores conquistas e os maiores desafios?
O grande desafio é dar continuidade às poucas conquistas e conseguir as outras. Não resta dúvida que o SUS é o maior sistema de saúde do mundo. Quando nós viajamos para fora e a gente fala de SUS, primeiro eles não entendem direito como o SUS funciona. E segundo, quando eles começam a entender, eles não sabem o que é controle social, eles não conseguem entender essa construção das conferências. Promover a escuta da sociedade civil, o controle social, foi um grande presente que o SUS trouxe, esse entendimento do direito à saúde para todas as pessoas. E quando a gente fala todas, são todas realmente. A covid é o maior exemplo disso. Se não fosse o SUS, teríamos muito mais mortes. Foi o SUS que segurou tudo, foi o SUS dos trabalhadores, da gestão, do controle social. Foi a maior experiência que nós vivemos. O grande desafio é ampliar isso, fazer com que a população entenda o papel importante que ela tem, que cabe à população o fortalecimento do SUS. A gente sair desse olhar que pensa que o plano de saúde é a solução. A gente vive isso: todo mundo sonhando com um plano de saúde, adentrando esses planos populares que não levam absolutamente a nada, que atende só a uma parte das necessidades e não atende com equidade. Estamos saindo desse momento difícil [dos governos anteriores], mas ainda muito adormecidos. Precisamos de mais força, de mais pessoas, de gente mais nova para essa luta.

“Promover a escuta da sociedade civil, o controle social, foi um grande presente que o SUS trouxe, esse entendimento do direito à saúde para todas as pessoas”
Como sua trajetória como militante dos direitos das pessoas negras e LBGTQIA+ se liga com a saúde?
Eu venho do movimento de mulheres negras e do movimento negro do Rio de Janeiro. Começo minha militância no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), depois eu me junto às mulheres negras do Rio de Janeiro, no Fórum de Mulheres Negras. Em 1990, vou para o movimento LGBT, o Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro, responsável pelo primeiro seminário de mulheres lésbicas em 1996, um seminário que é pensado pelo Coisa de Mulher, uma instituição de mulheres negras. Depois disso, vou para o grupo Arco-íris do Rio de Janeiro a convite do Cláudio Nascimento e começo então esse debate do racismo dentro do movimento. Existiam pessoas discutindo o racismo no movimento LGBT. Eu já tinha essa trajetória do movimento de mulheres negras e do movimento feminista. O feminismo teve as protagonistas negras, mas o racismo não estava na prioridade desse debate. Por isso, [surge] o debate sobre feminismo negro, exatamente pelas questões específicas das mulheres negras pautadas em raça e classe. E no movimento LGBT, a mesma coisa, não se discutia as questões raciais, nem de classe. O movimento LGBT é muito branco ainda, de classe média, acadêmico. Mas agora [está mudando], com as lideranças negras, de gays negros, principalmente as lésbicas negras, as trans negras, tem o Candaces de onde eu venho. Ainda falta muita coisa em relação a direitos. A gente fala em direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mas não se inclui as lésbicas e seus filhos. Agora estamos debatendo o envelhecimento LGBT, pois a política de idoso não traz esse recorte. Essas são as minhas pautas. É impossível construir um SUS de direito sem discutir realmente a equidade, cada um com seus direitos, mas que em algum momento eles vão se encontrar. Nesse momento, sou conselheira nacional de saúde, na segunda gestão da mesa diretora, e a partir disso pretendo me aposentar, os jovens estão aí para trazer as novas bandeiras, porque a gente cansa. Esse é outro problema: temos uma juventude com muito conhecimento, mas completamente digital. O ativismo presencial é muito importante.



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