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“Eu sou mais velha que o SUS. Ainda sou do período do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] e lembro das restrições de acesso”. O relato de Altamira Simões, psicóloga, conselheira nacional de saúde e representante da Rede Lai Lai Apejo, revela o que era a regra no Brasil pré-SUS: só havia assistência médica aos trabalhadores que contribuíam com a Previdência Social, o que excluía uma parcela considerável da sociedade brasileira. “Não era para todo mundo”, resume Altamira. O amor pelo SUS transformou Altamira em uma militante da saúde pública, colocando o direito à saúde ao lado de outras pautas, como a luta antirracista, o enfrentamento à violência contra a mulher e o movimento antiproibicionista. 

“A minha experiência pessoal com o SUS está muito ligada ao fato de eu ser uma mulher preta, de Candomblé, lésbica, e poder encontrar em alguns profissionais o acolhimento dessas múltiplas identidades que eu possuo e me atenderem conforme essas especificidades”, narra. Para ela, defender o SUS é lutar pelo bem-viver de toda a população brasileira, “sobretudo as populações que estão à margem da política e do pensar de gestores e gestoras aos quais hoje estamos submetidos nesse país”. Na visão de Altamira, que é também coordenadora da Comissão Intersetorial de Políticas de Promoção da Equidade (Cippe) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o SUS é a grande conquista do povo brasileiro. 

A luta em defesa do SUS também deve se somar ao combate ao racismo estrutural e às desigualdades, na avaliação de Altamira. Segundo a conselheira, a forma como a população negra é acolhida nos serviços de saúde faz com que muitos não retornem para os cuidados de prevenção à saúde e só busquem assistência em casos graves. Ela enfatiza que a defesa do SUS não pode ser uma pauta exclusiva dos profissionais de saúde. “Defender a saúde é uma agenda única da população. Nesse período da pandemia, a gente vê como esse olhar sobre a saúde foi ampliado. Todo mundo começou a debater e visibilizar suas vozes na defesa da saúde”, ressalta a psicóloga, que lembra a importância de levar a bandeira do SUS para quilombos, aldeias indígenas e acampamentos ciganos. 

Leia a entrevista completa, que é parte da reportagem de Radis para a edição de dezembro sobre o papel do SUS na vida da população brasileira.

Nos 30 anos de SUS, quais seriam para você as maiores conquistas? O que o sistema promoveu em benefício da sociedade e o que ainda permanece como desafios e problemas a enfrentar?

Para mim, o SUS é a grande conquista do povo brasileiro. Ele é resultado da luta do movimento sanitarista, do movimento negro e de mulheres, enfim, de todos os movimentos sociais que atuavam a favor de uma saúde que trouxesse princípios como equidade, integralidade e universalidade, em que todas as pessoas tivessem acesso a uma saúde pública de qualidade. Com relação aos avanços, a gente teve grandes avanços nas décadas de 1990 e 2000, como pensar uma política de saúde específica conforme os grupos que compõem a nação. A gente teve aprovada a saúde integral da população negra, a saúde das mulheres, da população indígena e LGBT. E o que a gente encontra agora é o desmonte dessas políticas. Temos feito o enfrentamento ao desmonte de políticas que têm um olhar específico para as populações que vivem em situações de vulnerabilidade. E aí é que está o grande desafio: de 2016 para cá, a saúde pública tem sofrido o desfinanciamento e isso tem gerado redução de equipes de Saúde da Família, redução de Unidades Básicas de Saúde e de equipes multidisciplinares, esvaziamento da Política Nacional de Atenção Básica — que é a porta de entrada para a população mais carente. A gente tem vários problemas que não são do SUS, mas da gestão, que não tem como prioridade oferecer uma política pública, gratuita e de qualidade para a população brasileira.

A atenção básica é considerada o coração do SUS, mas vem sofrendo um processo de desmonte desde a PNAB de 2017 até a proposta recente de decreto que previa parcerias privadas nas UBS. Qual a importância da atenção primária e da saúde da família para a população?

A atenção básica é a porta de entrada dos usuários e usuárias do SUS. Pela sua especificidade e por estar inserida em territórios com inúmeras ausências de políticas públicas, territórios que vivem à margem da gestão, a maioria das pessoas que buscam esse serviço são as pessoas mais empobrecidas — que estatisticamente correspondem à população negra. Na atenção básica, estão contidos vários serviços, desde imunização até o acompanhamento de doenças prevalentes. E aí eu cito novamente a população negra, pois é na atenção básica que se faz um acompanhamento sistemático de hipertensão, diabetes e doenças falciformes. Então esse ambiente possibilita uma existência com cuidados mais de perto para essa população. 

E como o desmonte desse modelo afeta a população? 

Quando a gente se vê diante da intenção de privatização desse espaço, isso significa muitas vezes tirar um equipamento de saúde de um território vulnerabilizado e ficar ainda mais distante da população, que vai precisar de transporte para buscar esse serviço longe de sua moradia. Isso por si só já inibe o acesso. Desde 2016, com o golpe na presidenta Dilma, que o SUS vem sofrendo um desfinanciamento contínuo e a atenção básica é uma das principais políticas do SUS vítimas desse desfinanciamento. De lá pra cá, a gente não tem ampliação de territórios com assistência das equipes de Saúde da Família. Onde existe, está sendo reduzido o número de equipes, estão sendo reduzidas as visitas, reduzindo a cartilha de serviços. A gente acredita que, num futuro bem próximo, esse governo vai acabar com essa política pública. A redução de equipes no território tem inviabilizado que famílias tenham assistência e a gente vê o resultado no alto índice de contaminação e óbitos na pandemia. É a população negra a maior vítima da infecção e da pandemia. E dados de pesquisa apontam que essas pessoas, quando buscam assistência à saúde, elas já estão com os sintomas da covid agravados. A gente relaciona isso à redução das equipes, à falta de concurso público para agente comunitário de saúde (ACS), à ampliação dos territórios que estão dentro dos perfis dessa política, mas que continuam sem assistência.

Como o racismo e as desigualdades ainda são marcas presentes na saúde?

Nós, ativistas do movimento negro, sempre questionamos a forma como o racismo é estruturado na saúde de um jeito que nos afasta de buscar os serviços. Os indicadores de saúde revelam a população negra como uma das principais vítimas. E isso não é algo aleatório. Não é porque não temos cuidado com a saúde. A forma como somos manejados e acolhidos nesses espaços faz com que a gente muitas vezes não retorne mais para os cuidados de prevenção à saúde e só busque assistência quando já estamos em situações gravíssimas. Nossos diagnósticos de diabetes e hipertensão são muito tardios. O mesmo para a doença de Chagas, que é muito prevalente na população negra. No próprio pré-natal, enquanto as mulheres brancas conseguem fazer até oito consultas, as mulheres negras têm no máximo cinco, o que é insuficiente para acompanhar uma pessoa que vem com vários acúmulos e reflexos do racismo em sua vida. 

Você poderia citar outros exemplos do racismo estrutural na saúde?

Quando as mulheres negras — que estão fora do mercado de trabalho, estão sozinhas lidando com o seu lar e são chefes de família — chegam no serviço de saúde, em busca da ajuda, elas trazem todos os acúmulos que o racismo impõe. Muitas vezes chegam com queixa de insônia, tristeza ou medo; esses sintomas estão relacionados às repercussões do racismo, seja em sua vida ou na comunidade, com o excesso de violência a que os territórios pretos estão submetidos. E a gente não encontra eco nesses espaços. Isso a gente também encontra nos ambulatórios odontológicos, onde a quantidade de anestésico para uma pessoa negra é menor do que para uma pessoa branca; onde os tratamentos para a população negra são mais invasivos e recomendadas extrações; e algumas patologias, que podem ser provenientes de diabetes, são associadas à falta de higiene. Vários fatores asseguram pra gente que o racismo é que orienta esse manejo. A gente tem alto índice de morte materna e de violência obstétrica. Há uma falta de humanidade nesse tratar dos nossos corpos na saúde.

A mobilização contra o Decreto 10.530 mostrou a força do SUS no imaginário da população e a pandemia também evidenciou sua importância. Como é possível dar voz às populações invisibilizadas e ao mesmo obter seu apoio na defesa do SUS?

Eu sempre questiono quando profissionais de saúde assumem essa pauta como exclusiva deles e delas. Não há perspectiva de adesão popular no debate da saúde. É tudo muito fechado. É como se nós do movimento negro não fossemos qualificados para fazer esse debate e aí a gente vê um distanciamento de vários movimentos sociais desse espaço. A gente pode citar a hegemonia branca no controle social, desde o Conselho Nacional de Saúde (CNS) até os conselhos municipais. A gente vê uma maioria de pessoas brancas fazendo o debate da saúde. Como atrair a sociedade para esse debate? Defender a saúde é uma agenda única da população. Nesse período da pandemia, o olhar sobre a saúde foi ampliado. Todo mundo começou a debater saúde e visibilizar suas vozes na defesa da saúde. Coisa que a gente já fazia de modo muito tímido e invisibilizado nas comunidades, em espaços como quilombos e terreiros de Candomblé, nas aldeias indígenas, nos acampamentos ciganos. A gente conseguiu tornar nossa luta visível com a pandemia. É fundamental que se abra espaço para mais debates populares, para que as pessoas que utilizam o sistema, que estão na base, possam ser escutadas. A Fiocruz pode ser um desses canais que dão voz a essa população, porque têm seu nome reconhecido, é uma instituição muito respeitada. Ao colocar uma pessoa da comunidade para falar sobre saúde e da importância de defender o sistema único, trazer inclusive propostas para melhorar esse sistema a partir da sua fala, do seu corpo e do seu território, isso vai dar uma visibilidade muito grande e fazer com que a fala dessa mulher dialogue com outras mulheres de comunidade, como eu, porque a gente vai se ver representada. A ideia é que a luta seja ampliada para outros protagonistas e outras protagonistas.

Como unir a luta antirracista com a defesa do SUS e do direito à saúde?

É um dos desafios mais doloridos unir a luta antirracista com a luta em defesa do SUS. Eu confesso a você que tem dias que amanheço cansada. O racismo é tão estruturado na sociedade que pessoas que se afirmam como defensoras de direitos humanos, defensores da vida, têm práticas racistas e excludentes, de nos silenciar quando a gente questiona a importância da luta antirracista na defesa do SUS. Inserir essa luta na defesa do SUS é garantir a vida para nós, população negra, que estamos sendo ceifados de diversas formas. Não são apenas as balas que nos matam. O silenciamento nos mata, assim como a impossibilidade da gente acessar a política e os espaços de controle social. A gente percebe que mesmo nesses espaços que têm essa característica de defesa da vida há uma prática de resguardar os privilégios da hegemonia branca que nos impede de viver em uma sociedade com menos desigualdades sociais.

Gostaria que contasse um pouco sobre a sua própria vivência e experiência com o SUS. Como despertou seu olhar sobre a importância do SUS?

Eu sou mais velha que o SUS. Ainda sou do período do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] e lembro das restrições de acesso, o quanto era difícil mesmo para mim que constava na carteira de trabalho de meu pai. Esse era o único caminho para se acessar a saúde pública naquela época. Não era para todo mundo. Aqui em Salvador, só existiam dois hospitais. Após o SUS, há uma ampliação na construção de unidades, sem restrições no acesso. Lógico que nesse início não existia a possibilidade de especificidades, só a especificidade das patologias, mas não das pessoas e dos seus corpos. Quando entro no movimento social, com 16 anos, nas Comunidades Eclesiais de Base, começo a escutar sobre essa possibilidade de uma saúde ampla, que todos os brasileiros e brasileiras tivessem acesso e aí começo a entrar na luta em defesa do SUS, mesmo sem um conhecimento apurado e qualificado da dimensão do SUS como eu tenho hoje. Eu sou uma apaixonada pelo SUS, sou uma defensora aguerrida do SUS, não só da assistência, mas de todos os acessos que a gente tem, dos tratamentos que vêm dando certo dentro da minha família e da minha comunidade. As políticas que estão dando possibilidade da gente ter uma vida melhor, mesmo com todos os esforços de alguns setores da sociedade em mostrar um SUS que não presta, privatizar e assim reduzir nosso acesso. 

Que SUS ainda podemos construir e fortalecer a partir das lutas sociais?

A minha experiência pessoal com o SUS está muito ligada ao fato de eu ser uma mulher preta, de Candomblé, lésbica, e poder encontrar em alguns profissionais o acolhimento dessas múltiplas identidades que eu posso e me atender conforme essas especificidades. Isso não digo só na atenção básica, mas nos equipamentos de saúde mental e na assistência farmacêutica. São os espaços que eu usufruo mais. A experiência com o SUS é tão positiva que me transformou numa militante em que a saúde é a centralidade da minha militância, seja dentro da rede de mulheres negras, seja dentro do espaço antiproibicionista, no enfrentamento à violência contra as mulheres, seja no espaço de mulheres lésbicas e bissexuais. A defesa do SUS e da saúde encontra nesses espaços muito conforto para discutir e despertar o interesse para que essas organizações entendam que a defesa do SUS não é restrita a um grupo específico, mas deve ser a pauta central dos movimentos sociais, porque ela se integra com todas as outras bandeiras. Quando a gente fala da luta antirracista, quando a gente fala de uma nova política de drogas, quando a gente fala de redução de danos, quando está na rede de apoio falando do cuidado e acolhimento de mulheres em situação de violência, a defesa da saúde encontra eco nesses espaços. Não é contraditório. Ser ativista do SUS, defender o SUS, hoje constitui minha razão de viver. Porque defender o SUS é defender o bem-viver de toda a população brasileira, sobretudo as populações que estão à margem da política e do pensar dos gestores e gestoras aos quais hoje estamos submetidos nesse país.

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