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Liderança do Núcleo de Alimentação, Saúde e Ambiente da Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas da Fiocruz (Nasa/CST/Cogepe), a nutricionista Wanessa Natividade Marinho conversou com Radis sobre racismo alimentar, seus impactos na saúde e o que deveria ser feito para atenuar essa grave questão. 

“São diversas as formas de manifestações de preconceitos ou discriminações que aconteceram na história da humanidade e todas se relacionam por problemas sociais originários ou desenvolvidos pelas diferenças existentes na sociedade. Dentre as principais, podemos mencionar a origem socioeconômica ou classe social, de sexo, de gênero, de religião, de etnia, de “raça”, de idade, de nacionalidade, entre outros”, afirma, antes de completar seu raciocínio: “E, diante da complexidade e dinamismo da sociedade no tempo e no espaço, vamos encontrando e descobrindo inúmeras formas de manifestações de discriminação, e o racismo não é diferente neste complexo, múltiplo e diversificado mundo dos preconceitos, o que torna difícil trazer um conceito único e, por consequência, um único caminho a percorrer para combatê-lo”.

Como explicar o racismo no Brasil?

Os fatos históricos são relevantes para trazer maior clareza ao abordar os problemas sociais no Brasil. O cenário cotidiano de morfologia dos fenômenos e fatos sociais nos tem colocado num contexto de bastante dificuldade para compreender e desnudar as práticas racistas no país, principalmente pelas especificidades que o diferenciam das outras formas de manifestações de racismo ocorridas em outros países.

Por tratar-se de uma prática social, o racismo não pode ser compreendido apenas como um problema racial, mas como uma questão que afeta toda a sociedade, e que se faz presente no cotidiano do brasileiro, em todas as esferas sociais, nas comunidades religiosas, nas etnias, nos sexos, nos gêneros, culturas, idades, entre outros, o que deflagra o conceito de racismo estrutural. Portanto, pode-se dizer que a sociedade brasileira tem o racismo como elemento que alicerça sua estrutura social, política e econômica.

Assim, diante das diversas formas de discriminação e preconceito, a discriminação racial ou o racismo possuem peculiaridades comportamentais, através da naturalização do pensamento, para promover de forma explícita ou velada, a exclusão de pessoas negras de atividades ou funções na sociedade, em razão da característica biológica, para afastá-las, em última instância, das posições de poder amplamente exercidas por homens brancos. Observe que neste cenário, mesmo sendo brancas, as mulheres também são excluídas dessas posições ou espaços de poder.

 A população pobre, preta e periférica é a que mais sofre com a má alimentação? 

Ao analisar mais detidamente a situação de raça e a segurança alimentar e nutricional da população brasileira, por meio da pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan),  via Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil (Vigisan), verificou-se que o quantitativo superior a 60% dos lares chefiados por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas sofre com algum tipo de insegurança alimentar. No entanto, debruçando-se sobre a situação específica do gênero, raça e a segurança alimentar, os dados revelaram que o quantitativo dos domicílios chefiados por mulheres autodeclaradas pretas e pardas, o que se aglutina em raça negra, salta para 69,9% com a condição de insegurança alimentar (Rede Penssan, 2023). 

A interseccionalidade das duas dimensões sociais de gênero e raça mostra-se relevante para analisar o efeito que se espraia por toda a estrutura social de discriminação e exclusão social, sobretudo nas famílias chefiadas por mulheres negras no Brasil. A partir desses aspectos sociais poderemos analisar outras situações relacionadas às desigualdades entre trabalhadores e trabalhadoras, assim como brancos e negros com vínculos com uma instituição pública de saúde, e dimensionar se outros aspectos estruturais da sociedade brasileira surgem com efeitos nas pessoas negras e mulheres no âmbito da alimentação.

Como podemos definir o racismo alimentar?

Dentro deste complexo e amplo cenário de práticas racistas podemos destacar o racismo alimentar. Uma forma de discriminação que se manifesta na disponibilidade, acessibilidade e qualidade dos alimentos. A ausência de supermercados e mercados de alimentos frescos em áreas predominantemente negras, conhecidos como desertos alimentares, limita o acesso a opções saudáveis.

O apagamento e esvaziamento das tradições africanas, e a modificação da cultura alimentar, que antes era concentrada na agricultura familiar, foi impactada pelo uso das tecnologias e da mudança do solo, para a produção de commodities a fim de atender o mercado internacional, o que gerou um impacto na produção e consumo alimentar. 

Dessa forma, os alimentos in natura são substituídos por ‘alimentos’, em sua maioria, ultraprocessados para atender a demanda populacional que possui cada vez menos tempo para fazer e consumir seu próprio alimento. A vida nos grandes centros urbanos engendrou mudanças profundas de hábito alimentar da população brasileira. Como primeira mudança, podemos citar a resistência de parte da população para consumir o “alimento” ultraprocessado e manter a essência e tradição do cultivo de alimentos in natura. A segunda, aceita esse processo de modificações e absorve novos padrões de consumo, negando os padrões e tradições do cultivo dos alimentos. E, o terceiro, que mantém parte da essência dos alimentos da agricultura familiar e, concomitantemente, está disposta a aceitar o novo. 

É possível  mensurar essa desigualdade alimentar?

Quando nos debruçamos sobre as pesquisas, percebemos que a insegurança alimentar, que é definida pela falta de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente para uma vida saudável, atinge mais uma parte específica da população brasileira. 

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do quarto trimestre de 2023, cerca de 21,6 milhões de domicílios (27,6%) eram afetados por algum grau de insegurança alimentar. Mas se considerarmos o quantitativo de pessoas em situação de vulnerabilidade social de acesso aos alimentos em qualidade e quantidade adequadas e suficientes, sem afetar a outras necessidades vitais à sobrevivência, teremos um aumento significativo nesses números, sobretudo naquelas pessoas invisibilizadas socialmente.

O nutricídio, termo cunhado por um médico americano, é uma realidade no Brasil?

Trata-se da privação sistemática de alimentos nutritivos em comunidades marginalizadas, contribuindo para a perpetuação de desigualdades sociais e de saúde. No Brasil e no mundo, essas realidades são evidentes, pois grupos étnico-raciais enfrentam desafios específicos relacionados à segurança alimentar e nutricional, como acesso limitado a alimentos frescos e saudáveis, exposição a “alimentos” ultraprocessados e falta de políticas públicas eficazes para enfrentar essas disparidades. Essas questões são intensificadas pela interseccionalidade com outras formas de opressão, como o sexismo e a pobreza.

A situação de racismo alimentar impacta de maneira significativa o desenvolvimento infantil das crianças negras. A falta de acesso a alimentos nutritivos pode resultar em deficiências nutricionais, comprometendo o crescimento físico e cognitivo, além de aumentar o risco de doenças crônicas não transmissíveis. Além disso, a discriminação e o estigma associados à falta de alimentos podem afetar negativamente a saúde mental e emocional das crianças, influenciando seu desempenho acadêmico e social.

Importante salientar que a amamentação, uma prática fundamental para a saúde materno-infantil, é igualmente impactada por essas desigualdades. As mães negras frequentemente enfrentam barreiras adicionais, como a falta de apoio social e de saúde, discriminação no ambiente de trabalho e desafios econômicos que dificultam a manutenção da lactância. Essas barreiras não apenas afetam a capacidade de amamentar, mas também têm repercussões duradouras para a saúde, desenvolvimento das crianças e vínculo materno. 

 O que pode ser feito para atenuar esse problema? A alimentação (qualidade dela) deveria ser uma política de governo?

Para enfrentar essas disparidades, é essencial implementar medidas que abordem o racismo alimentar de forma ampla. Primeiro, é necessário garantir que todas as comunidades, especialmente as mais carentes, tenham acesso a alimentos in natura e minimamente processados, ou seja, que estejam pautados nas premissas do Guia alimentar para a população brasileira. A expansão de mercados e feiras de alimentos saudáveis, juntamente com iniciativas de agricultura urbana, pode melhorar significativamente a disponibilidade de produtos alimentares de qualidade.

As políticas de trabalho, licença maternidade e paternidade também precisam ser reformuladas para apoiar a amamentação. Licença maternidade adequada e condições favoráveis no local de trabalho, como espaços dedicados à amamentação, são essenciais para permitir que todas as mães possam praticar a amamentação sem enfrentar barreiras. Bem como a ampliação da licença paternidade. Compreendo que o pai é essencial no apoio da mãe, da criança, e em todo processo familiar. 

Investir em serviços de saúde comunitária que atendam especificamente às necessidades das populações negras pode oferecer suporte contínuo e eficaz, promovendo a segurança alimentar nutricional e a saúde da população.

No caso dos adultos, o racismo alimentar contribui para disparidades de saúde persistentes, aumentando o risco de obesidade, diabetes, hipertensão e outras doenças relacionadas à dieta inadequada. Esses impactos são agravados pela falta de acesso a serviços de saúde de qualidade e por condições socioeconômicas desfavoráveis enfrentadas por comunidades racializadas. Neste sentido, é importante ressaltar que a comida não transcende a simples ingestão de alimentos para satisfazer as necessidades humanas. A alimentação deve ser encarada como um processo que, simultaneamente, busca manter o organismo em pleno funcionamento, enquanto fortalece e promove laços comunitários, integrando-a em outras esferas de significado e conexões.

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