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Referência nacional no tratamento de pessoas com transtornos relacionados ao jogo, o psiquiatra Hermano Tavares coordena o Ambulatório do Jogo Patológico do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), o primeiro serviço público especializado no Brasil. 

Com décadas de experiência clínica e acadêmica, ele acompanha de perto, e com muita preocupação, a escalada dos danos causados pelas apostas online, especialmente entre os mais jovens. Para ele, a legalização das plataformas de bets, somada à ausência de regulação eficaz, criou um cenário alarmante. “É como se tivéssemos instalado um cassino em cada bolso”, resume. 

Em entrevista à Radis, Hermano fala sobre os sinais de alerta de dependência, os grupos mais vulneráveis e o que o país pode, e deve fazer, para enfrentar essa nova crise de saúde pública.

Por que o crescimento das plataformas de apostas online tem gerado preocupação entre os profissionais da saúde mental? 

Apostar é um formador de hábito, assim como álcool ou tabaco, isso significa que tem potencial para causar dependência. Agora imagine que uma distribuidora de bebidas alcoólicas conseguisse a proeza de instalar um estoque renovável de cerveja ou outra bebida na geladeira de cada domicílio do nosso país. Louco, né? Mas foi exatamente isso que as bets fizeram ao estabelecer o amplo acesso das apostas esportivas em plataformas online que podem ser acessadas a qualquer hora, qualquer dia, por qualquer celular. O resultado esperado é a exposição de pessoas vulneráveis e o aumento da demanda por tratamento para o transtorno do jogo que já estamos observando. 

O total de adolescentes expostos às apostas aumentou drasticamente depois da legalização das apostas online no Brasil

O senhor tem atendido casos de jovens com vício em bets? De que forma esse vício costuma impactar a vida cotidiana — nos estudos, no trabalho e nas relações familiares? 

Na saúde não usamos o termo vício, ele se estabelece por antonímia ao termo virtude e introduz uma dimensão moral que não nos pertence. Preferimos o termo dependência ou adição que se refere a uma doença psicobiológica. Em outras palavras, uma doença do cérebro e da mente que se expressa no comportamento das apostas desregradas com profundos prejuízos emocionais, sociais e financeiros para o apostador. E sim, o total de adolescentes expostos às apostas aumentou drasticamente depois da legalização das apostas online no Brasil. Vale lembrar que, mesmo depois disso, apostar continua sendo proibido para menores de 18 anos! As dificuldades com apostas em menores de idade têm um impacto particularmente cruel porque atinge um indivíduo em formação. Isto aumenta o risco de desenvolvimento da dependência do jogo, assim como aumenta a suscetibilidade para outros formadores de hábito, compromete a formação acadêmica do jovem e prejudica sua futura inserção na sociedade. Além disso, porque eles não têm renda própria, o recurso à fraude e outras medidas ilegais para conseguir dinheiro para apostar são mais comuns do que nos adultos. 

Quais são os principais sinais de alerta de que uma pessoa pode estar desenvolvendo dependência em apostas esportivas online? 

São o que chamamos de 3 Cs: controle ou perda de controle (a pessoa gasta mais dinheiro ou mais tempo do que pretendia quando vai jogar); confronto (a pessoa usa o jogo para “confrontar” ou lidar com suas emoções negativas, isto é, aposta mais quando está triste, angustiado ou entediado; e caça (a pessoa persegue, “caça” um resultado). Para quem começa a ter problemas com jogo, torna-se comum apostar, perder e voltar no dia seguinte ou mesmo horas depois para apostar novamente e tentar recuperar o dinheiro perdido na aposta anterior. Qualquer um desses três sinais, mesmo que isoladamente, é um sinal preocupante de que a pessoa está na iminência de se complicar com as apostas, ou já está complicada.

Existe um perfil mais comum entre quem desenvolve esse tipo de dependência? 

Os grupos mais vulneráveis são classicamente os menos favorecidos, as pessoas que vivem uma exclusão social avançada ou parcial. Para pessoas nessa condição, o jogo parece um canto de sereia sedutor prometendo dinheiro e elevação social. Então não chega a ser uma surpresa que as pessoas mais vulneráveis são os mais jovens, os desempregados, as pessoas com educação incompleta, os solteiros ou solitários. 

E quais as relações com outras formas de dependência?

É bom lembrar também que quem já tem uma dependência como tabagismo ou alcoolismo tem maior risco de desenvolver o transtorno do jogo e porque esta condição tem um traço de herança genética. Se você tem um pai, uma mãe, irmão ou irmã com dificuldades com jogo ou com outra forma de dependência, é melhor pensar duas vezes antes de começar a apostar. Finalmente, toda pessoa emocionalmente fragilizada está mais vulnerável, então quem estiver passando por depressão, transtorno ansioso ou outro transtorno mental têm maior risco.

É prioridade máxima restringir a publicidade das bets

Na sua avaliação, proibir a propaganda de bets ou impor limites de acesso pode ajudar a conter o problema?

É prioridade máxima restringir a publicidade das bets. Queremos para as apostas nada mais, nada menos, do que já temos para o tabaco: publicidade restrita ao ponto de venda! Mas se o ponto de venda é online e está nos celulares de qualquer pessoa, como fazemos? Precisamos ser criativos e, mais do que tudo, ter um amplo debate com a sociedade. Penso que já passou da hora dos celulares, ao serem cadastrados com um CPF de menor de 18 anos, terem restrições de acesso a conteúdo impróprio, incluindo sites de apostas. O adulto que fosse flagrado violando essa regra ficaria sujeito às penas já previstas em lei. É uma medida perfeita? Não! Burlar seria fácil? Talvez, mas manda um recado para toda a sociedade, autoriza e facilita o trabalho de pais, tutores, professores e responsáveis em geral. 

E quanto ao papel da publicidade e dos influenciadores?

Tem que acabar a publicidade ligada a esportistas e influencers. No Canadá, por exemplo, atletas profissionais são proibidos de participar em ações promocionais ligadas às apostas. Em nosso país, o cadastro em sites de apostas oficiais já é realizado mediante apresentação do CPF e leitura facial, mas a fiscalização digital é imperativa para impedir que adolescentes tenham acesso a sites clandestinos e, mesmo no caso dos oficiais, a certificação de maioridade tem que vir antes de qualquer exposição visual a conteúdo de jogo. Então vamos combinar: acabou isso de site de notícias e canais de vídeo anunciarem em sites de apostas. Vamos parar de associar qualquer esporte e principalmente nosso amado futebol com a prática de apostar. O campeonato brasileiro já existia antes das bets e vai continuar existindo. Quando surgir a oportunidade, tenho certeza de que outros patrocinadores ocuparão este espaço. 

O que ainda precisa ser debatido pela sociedade brasileira quando falamos do impacto das apostas online na saúde mental? 

A proteção dos vulneráveis, principalmente os mais jovens, a restrição à publicidade e mais algumas coisas igualmente importantes: o jogo é assim tão bom para economia? Eu acho que não, ou os bancos não estariam tão preocupados com o aumento da inadimplência (dívidas), o comércio não estaria reclamando da redução das vendas e os varejistas (supermercados) não estariam acusando a redução do consumo de alimentos. Vamos lembrar que o lucro exagerado de alguns será a perda de muitos. O jogo não gera renda, ao menos não diretamente, porque não produz nada, apenas transfere a renda dos muitos perdedores para as mãos de alguns poucos vencedores, ou seja, ainda por cima é um mecanismo de concentração de renda. Mas participa quem quer, dirão alguns – sim, mas desde que apropriadamente informados. 

O governo precisa cumprir seu papel regulatório a contento e a indústria do jogo precisa ter uma comunicação honesta

Qual deve ser o papel do governo nessa indústria?

O governo precisa cumprir seu papel regulatório a contento e a indústria do jogo precisa ter uma comunicação honesta, declarando o caráter lúdico de jogar, sem prometer ganho financeiro improvável que não pode garantir. Eu penso que já passamos da hora de termos uma agência nacional reguladora das apostas, de prêmios e sorteios no país. Este órgão teria representantes de todos os três setores (sociedade civil, governo e indústria) e seria interdisciplinar com especialistas da saúde, da economia, do direito e dos sistemas de informação. Essa agência deve regulamentar, prevenir e tratar os malefícios causados pelas apostas, além de coibir elementos predatórios nos jogos (manipulação de resultados, fazer parecer que o apostador quase ganhou, botões de pare e outros recursos que sugiram um controle inexistente sobre os resultados etc.). E é preciso definir quem vai pagar essa conta. Todo o dinheiro arrecadado com taxação das bets deve ser destinado primeiro à prevenção e ao tratamento. Se sobrar, aí sim se pensa em outras áreas. Só então poderemos dizer que somos um país responsável com a questão do jogo.

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