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  1. Pós-tudo

A saída para a crise sanitária é política

O Brasil está enlutado. Estamos prestes a chegar à marca de 600 mil óbitos em um pouco mais de 1 ano e meio de epidemia e milhares de famílias perderam algum de seus entes queridos para a covid-19. Estudos mostram que aproximadamente 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Esse sentimento de luto acompanha o de espanto pela crise ambiental, que transforma nossos biomas em cinzas e seca nossas reservas hídricas, e pelo horror ético, diante de um governo que reafirma diuturnamente seu desprezo pela democracia.

Alguém disse que os problemas da democracia se resolvem com mais democracia. O povo brasileiro constituiu uma das mais destacadas referências democráticas do mundo contemporâneo, a Constituição de 1988. É a Carta Magna que estabeleceu a saúde como direito e, desde os anos noventa, o Sistema Único de Saúde — nosso querido SUS — vem contribuindo com a saúde da população brasileira. Sem dúvida, a catástrofe da covid-19 teria sido ainda mais devastadora sem o SUS.

Ao longo e ao largo deste país, milhares de trabalhadores da saúde têm se empenhado, e se empenham dia a dia para defender a vida, para evitar mortes. A força de trabalho do SUS está exaurida, exausta. Quase um ano e meio de pandemia sem descanso, sem férias e — em alguns casos — sem segurança suficiente no trabalho.

Desde os primeiros meses da pandemia, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e demais entidades científicas da saúde e outros campos de conhecimento vêm pautando na mídia e apresentando diretamente aos Poderes estudos, análises e planos. Desde o início sabíamos que a testagem oportuna, associada ao isolamento quando necessário, e a aceleração do ritmo de vacinação seriam as condições indispensáveis para reestabelecer a saúde do povo brasileiro.

Contudo, o governo federal seguiu alheio e de costas à produção científica da nação, em clara atitude necropolítica. O presente que habitamos é um tempo de violências. A enxurrada de barbaridades a que assistimos todo dia destina-se a impedir nossa capacidade de pensar, de sonhar, de criar. Enquanto milhares de trabalhadores e cientistas se esforçam para salvar vidas, enquanto milhares de famílias brasileiras não conseguem pagar o gás para preparar uma refeição decente, assistimos ao desrespeito à coisa pública numa escalada de terror, na qual o presidente, não satisfeito em torrar o dinheiro público passeando de motocicleta, criou um verdadeiro circo de afronta à democracia numa data que deveria festejar um marco histórico tão significativo como o bicentenário da independência.

Diante dessa conjuntura, a Saúde Coletiva Brasileira reafirma estar de prontidão. Estamos de pé e para nos pôr de joelhos terão de cortar as nossas pernas. Não deixaremos que o estado de confusão que provoca este governo nos tire a capacidade de pensar, de refletir e de seguir apontando os temas estratégicos para a saída da crise sanitária, nossa melhor contribuição à sociedade. Perante tudo o que vivemos, é ainda mais evidente que a medida mais urgente e eficaz para defender a saúde do povo brasileiro é o imediato afastamento do Presidente da República.

Estamos firmes, mas desejamos também estar sensíveis à ternura. Falar da ternura em tempos de ferocidade não é nenhuma ingenuidade, é um conceito profundamente político, já apontou o psicanalista argentino Fernando Ulhôa.

De uma ciência implicada com o humano como a Saúde Coletiva espera-se esse papel de colocar o acento na necessidade de resistir à barbarização dos laços sociais que atravessam nossos mundos.

A pandemia vai passar, este governo infame vai passar e nós precisaremos estar prontos, com soluções a oferecer para reconstruir sobre as ruínas. A este cenário cruento, vamos contrapor o desenvolvimento de “um lugar e um tempo” — como dizia Winnicott — no qual possamos pensar e inventar soluções para os mares mais calmos que aguardam nosso braço pela frente. Mesmo que nesse exato momento o porvir nos pareça turvo, não desistiremos, jamais, de fazer o novo tempo democrático florescer.

Rosana Onocko Campos é presidente da Abrasco e professora livre-docente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (DSC/FCM/Unicamp)
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