A

Menu

A

Participe da Pesquisa Radis 2025

Em dezembro de 2021, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) propôs uma nota técnica que inclui a eletroconvulsoterapia (ECT) como tratamento da agressividade no transtorno do espectro autista, o que provocou reação de diversas instituições e grupos da sociedade civil organizada.

Marcia Baratto, doutora em ciência política pela Unicamp, especialista em direitos humanos e coordenadora geral da Rede Europeia de Apoio às Vítimas Brasileiras de Violência Doméstica (Revibra), vê o encaminhamento da pauta da ECT com preocupação, especialmente quanto à rigidez com que o direito regula aquilo que a justiça considera ou não desumano. Ela alerta que hoje vale, infelizmente, o entendimento de que se o paciente foi avisado dos efeitos colaterais e consentiu, não é tratamento desumano, nem tortura.

A exata natureza do consentimento precisa ser amplamente debatida, se realmente queremos intervenções em saúde alinhadas a princípios éticos. É o que mostra um dos casos mais emblemáticos de uso da ECT, retratado no filme “Um estranho no ninho”, com Jack Nicholson, em que a paciente foi submetida a 21 sessões em um ano — “quase o dobro do recomendado”, conforme matéria do Mail Online, em julho de 2020.

Em uma das internações psiquiátricas pelas quais passei, conheci a psicóloga Valéria (nome fictício), uma mulher com diagnóstico de depressão maior. Ela contou que, em 2019, numa clínica de elite de uma das maiores capitais do país, foi submetida a 21 sessões de ECT, no período de três meses. As sessões, que ela aceitou fazer “por puro desespero”, ocorriam sob monitorização cardíaca e respiratória, em uma sala com o médico responsável, uma médica anestesista, um auxiliar de enfermagem e a mãe da paciente. Em dado momento, o médico responsável disse que ela deveria ser acompanhada por um profissional “que entendesse de ECT”, já que o psiquiatra dela supostamente não entendia.

Valéria amarga terríveis efeitos colaterais. Cita problemas cognitivos em esferas como atenção, percepção e memória, chegando a passar meses sem conseguir manter o foco ou um raciocínio coerente ao conversar. É recorrente que não consiga se lembrar de pessoas e acontecimentos importantes de períodos muito anteriores à ECT: “sinto como se parte de minha vida — e de mim mesma, portanto — tivesse sido retirada”. A questão, entretanto, não tem sido vista de forma humanizada. Marcia Baratto diz que, infelizmente, são raras as vezes em que a perda parcial de memória é classificada como “efeito severo” da ECT.

A interrupção das sessões, no caso de Valéria, deu-se a pedido da própria paciente, já que o médico queria continuar. Ela conta que se ressente por não terem oferecido o tratamento fitoterápico com Cannabis antes de passar por 21 sessões de eletrochoque até que ela mesma — “quem menos tinha condição de decidir algo nessa história” — desse um basta. Ela teve muitos prejuízos cognitivos e não concorda com a imposição dessa abordagem sobre ninguém.

Se uma mulher adulta e formada em psicologia não se sentia apta a decidir sobre a ECT em seu momento de sofrimento, o que dizer de pessoas autistas e suas famílias, muitas vezes abandonadas à própria sorte, dada a generalizada falta de suporte e políticas públicas para pessoas com deficiência?

Quando se trata, sobretudo, de autistas não oralizados e sem acesso à comunicação alternativa, a questão do consentimento requer um olhar ainda mais criterioso e não pode ser delegada à família ou aos responsáveis antes de uma análise do que é realmente consentir, quais os verdadeiros riscos de uma intervenção e qual o limite recomendado. Muito menos antes que se esgotem opções de intervenção não invasivas e não controversas, como a integração sensorial e as adaptações ambientais, por exemplo.

Em mais uma ação de desmonte da Reforma Psiquiátrica empreendida pelo atual governo, há risco flagrante de violação dos direitos humanos dos autistas, tendo em vista principalmente a peculiaridade do consentimento quando há barreiras de comunicação, nos termos da Lei Brasileira de Inclusão. Além disso, ao nos excluir da formulação de suas recomendações, a Conitec viola a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Não fosse o bastante, a nota técnica sequer menciona o consentimento, configurando-se como violência do Estado contra pessoas que deveriam ser protegidas por políticas públicas alinhadas aos direitos humanos, conforme nota da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça).

Não pode haver respeito aos direitos humanos sem a possibilidade do pleno consentimento. Se não sabemos o que é isso, devemos, em comunidade, descobrir.

* Mulher autista adulta, escritora, educadora e empreendedora
Sem comentários
Comentários para: Eletrochoque em autistas: quem cala consente?

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

  1. Pós-tudo
Pessoas com deficiência (PcD) compõem uma população heterogênea, com crescimento intensificado em anos recentes em função do envelhecimento da população, do avanço da medicina, das crises sanitárias, da ascensão de novas condições à categoria de deficiência. Hoje estima-se que mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo tenham alguma deficiência (15% da população […]
  1. Pós-tudo
A disputa de agendas com repercussões na economia, na política e, consequentemente, na garantia de direitos sociais têm tensionado o governo Lula. Segundo o economista Pedro Rossi, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o governo federal tem arbitrado entre duas agendas econômicas, uma distributiva e outra neoliberal. No Sistema Único de Saúde (SUS), o […]
Próximo
Filtrar por Categorias
2016
Acervo
Imagens
Emergência Yanomami
Edição
2020
2021
2022
2023
Entrevista
17ª Conferência Nacional de Saúde
60 anos do golpe
Água
Autismo
Ciência
Covid-19
Cultura popular
Desastres socioambientais
Emergência Climática
Emergência Yanomami
Etarismo
Hepatites
Inclusão
Meio ambiente
Mpox
Neurociência
Palestina
Perfil
Popularização da Ciência
Racismo alimentar
Radis 40 anos
Refugiados
Sanitaristas
Saúde do trabalhador
Saúde Indígena
Saúde Mental
Trajetórias negras
Vacinas
Especial
queimadas 2024
Notícias
Opinião
Editorial
Pós-tudo
Programa Radis
Artigo
Glossário
Revista Radis
Autor
queimadas 2024
Reportagem
17ª Conferência Nacional de Saúde
60 anos do golpe
9º CSHS
Aborto
Abril Indígena
Agosto dourado
Agroecologia
Agrotóxicos
Água
Álcool
Aleitamento Materno
Amazônia
Arte
Atenção Básica
Atenção primária
Câncer de mama
Carnaval
Cidadania
Ciência
Ciência e Tecnologia
Comigrar
Comunicação e Saúde
Comunicação Popular
Comunicação Pública
Conferência Nacional de Saúde
Consciência Negra
Covid 5 anos
Covid-19
Tragédia e luto no Brasil
Cultura popular
Democratização da mídia
Dengue
Desastres Naturais
Direito à Comunicação
Direitos
Direitos ambientais
Direitos Humanos
Divulgação Científica
Doenças negligenciadas
Doenças Raras
Doenças respiratórias
Educação
Emergência Yanomami
Equidade de Gênero
Especial
Etarismo
Experiências do SUS
Favela
Financiamento
Fitoterapia
Gênero
Gestão do Trabalho
Hepatites
História e Saúde
HIV/aids
Homenagem
IAS 2023
Inclusão
Intolerância
Juventude
Legalização do Aborto
Linha do Tempo
Livros
Medicalização
Medicina da família
Meio Ambiente
Memória
Memória Radis
Mineração
Mpox
Mudanças Climáticas
Neurociência
Nutrição
Olimpíadas
Palestina
Pandemia
Participação Social
Pessoas com deficiência
Pessoas em situação de rua
PNI
Populações Tradicionais
Popularização da Ciência
Povos Indígenas
Povos Tradicionais
Pré-Natal
Promoção à Saúde
Promoção da Saúde
Queimadas
Racismo
Racismo alimentar
Radis 40 anos
Raio-x da Saúde
Reforma agrária
Refugiados
Resenha
HIV
Retrospectiva
Retrospectiva 2021
Saberes Populares
Sanitaristas
Saúde Coletiva
Saúde da Família
Saúde da mulher e da criança
Saúde Digital
Saúde do Idoso
Saúde do Trabalhador
Saúde dos atletas
Saúde e Trabalho
Saúde global
Saúde Indígena
Saúde Materna
Saúde Mental
Síndrome de Down
Sobreviver
SUS
SUS 30 anos
Trabalho
Transplante
Vacina
Vacinação
Violência Urbana
Vitiligo
Wolbachia
Serviço
Arte
Artigo
Documentário
E-book
Evento
Exposição
Filme
Internet
Livro
Playlist
Podcast
Publicação
Série
Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga. Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga.