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No Natal de 2020, Edilza Maria de Lima disse para si mesma: “Acabou!”. Era o fim de um casamento que já durava 12 anos e, desde o primeiro deles, dava sinais de que “havia alguma coisa errada”. Moradora de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, naquele final de ano ela decidiu que “queria ser feliz”. Antes, porém, houve assédio e dissimulação e violência psicológica e vergonha e mais violência e uma ameaça que lhe fez sair de casa e ingressar com uma medida protetiva contra o seu agressor.  

Depois de anos em que lhe parecia mais fácil ficar calada, ela agora faz questão de falar. Imagina que a sua história seja semelhante à de muitas outras mulheres que vivem um cotidiano de violência que não pode mais ser escondido nem ignorado. “Você pode contar a minha história de ponta a ponta”, disse Edilza, neste testemunho concedido à Radis por meio de uma chamada de vídeo — e que você lerá abaixo.

“Meu nome é Edilza Maria de Lima. Venho de uma família que tem muitas mulheres fortes, mas me sentia incompleta pelo fato de não ter um filho. Então, queria me casar para que o filho que eu, por acaso viesse a ter, tivesse um nome. Na minha certidão de nascimento, não tive o nome da minha mãe — só o do meu pai — e queria que com o meu filho fosse diferente, que ele tivesse tudo certinho para não sofrer nenhum tipo de discriminação. Acabou que eu nem podia engravidar. Cheguei a fazer um tratamento in vitro, mas não tive filhos.

Nessa época eu já tinha construído a minha casa. Enquanto estive casada, sofri muitas violências e, quando me separei, ainda descobri outras. Por exemplo, soube que houve uma aposta para saber quem seria o dono da casa — que eu tinha construído com esforço próprio. As pessoas se acham donas umas das outras e fazem coisas que seriam impossíveis de se pensar. Mas, vamos lá, ao começo.

Em 2007, me casei. Com o tempo, percebi que tinha alguma coisa errada. A pessoa usava de violência, inclusive no trânsito, para mostrar que podia mais do que eu. Para você ter uma ideia, tirei a carteira de motorista e 10 anos depois ainda não conseguia dirigir. Porque ele dizia que só homem sabia dirigir, que só homem era esperto no trânsito. Tanto que tive crises de choro terríveis. Ele colocava o carro em cima de outros veículos, tirava aqueles ‘fininhos’ passando de raspão… Várias vezes aconteceram acidentes do meu lado do carro. Era uma direção ofensiva. Esse era um tipo de violência psicológica que, na verdade, só vim identificar como violência muito tempo depois. Mas além desse tipo de coisa, havia dissimulação, preconceito, racismo. Por exemplo, por eu ser de religião de matriz africana, era pejorativamente chamada por ele de ‘macumbeira’. Ele me fazia sentir como se fosse inferior a ele, cotidianamente. 

Por incrível que pareça, percebi que havia alguma coisa errada já no primeiro ano de casada.  Ficou pior e mais grave quando saí do emprego em que estava, mas já acontecia antes. Naquela época, eu trabalhava com publicidade e todo o sistema me obrigava de certa maneira a seguir um padrão. Para me encaixar e ser aceita, eu não usava meu cabelo cacheado. Hoje, sei que meus cachinhos representam o que eu sou, de onde vim, pra onde vou, mas quando parei de trabalhar na publicidade para ficar com o meu pai que precisou de cuidados especiais em casa, deixei de me submeter àquele padrão. Nem tinha dinheiro para isso nem achava mais necessário. Pois ali ele passou a reclamar do meu cabelo, dizia que estava horrível, que era desorganizado. Eu deixava tudo isso pra lá porque parecia ‘mais fácil’ agir assim. A gente vai empurrando com a barriga, calando para não agredir o outro, e o outro está te matando aos poucos.

Isso foi acontecendo ainda durante muito tempo. Eu vivi nesse casamento por 12 anos e a tendência dessas agressões foi piorando. Era o modo como ele dizia as coisas direcionadas a mim. Como eu estava sem salário, era comum ouvir dele: “O dinheiro daqui de casa, sou só eu que coloco” — e não era, tá? — “Você só gasta!” Seguia dizendo que eu nunca honrava com os meus compromissos, quando na verdade era tudo dividido, tim tim por tim tim, na ponta do lápis. Era aquele negócio de ficar falando absurdos contra mim e a gente acaba absorvendo aquilo como verdade. Violência psicológica é terrível, abre um leque para outras violências. 

Depois da morte do meu pai, decidi me virar trabalhando por conta própria com reaproveitamento de pneus, como artesã, fabricando peças que depois vendia para ter uma renda e conseguir pagar algumas contas da casa. Eu estourei todos os meus tendões, estourei o meu corpo trabalhando para não depender de ninguém. Mesmo assim, quando sugeri que tivéssemos um chuveiro elétrico, ele disse que o chuveiro quente gastava energia. Ele dizia que eu ainda não estava pagando a conta de luz, então não tinha direito a isso. Ouvi a célebre frase: “Vá trabalhar para pagar a conta de luz!” Quando consegui pagar a conta da luz, eu comprei um chuveiro elétrico pra mim.

Isso foi só o começo das desgraças. Como artesã, eu tinha que pedir de presente os materiais e tinta para fazer as peças. Ele tinha ferramentas em casa e condições para me ajudar, mas negava tudo. Numa ocasião, enquanto trabalhava, tomei um susto e derrubei uma peça que já estava pronta para vender, assustando o gatinho que ele tinha trazido para morar conosco. Pois ao ouvir o miado, ele se levantou do sofá de onde estava assistindo à tv e partiu aos gritos pra cima de mim dizendo que “ia me pegar”. Nesse dia, tirei minha aliança. A partir de então, a gente ficou separado, eu não queria conversa. Só que não me posicionei o suficiente para colocar ele para fora de casa. Isso foi quatro anos antes de acontecer a violência mais forte. 

Ilustração digital de Felipe Plauska.

Ele só saiu quatro anos depois porque a medida protetiva foi vinculada à retirada dele de casa. E ele saiu escoltado pela polícia. Imagina se eu teria condições de tirar ele daqui sozinha… Não teria! Era como se eu estivesse errada o tempo todo. Só depois percebi que ele agia como um psicopata. Quando chegava visita, ele era uma pessoa. Quando estava comigo, era outra. E ficava nessa oscilação.

Mas naquele dia, quando ele disse que ia me pegar e retirei a aliança, viajei com uma amiga (que depois se tornaria minha esposa, mas nessa época, a gente não tinha nenhum tipo de relacionamento além da amizade). Fomos para Caruaru [a 135 quilômetros do Recife] com outros amigos. Meus amigos tentavam me mostrar o quanto eu estava sofrendo. Estava claro até na minha aparência. Eu estava esquelética, cadavérica, e nem percebia. Quando estamos assim, somos sugados para um lugar muito ruim. Mas fui acolhida e, diante de tudo o que eu relatava, ali, naquele momento, percebi que de fato vivia um processo de violência. 

Nossa distância foi só aumentando. Fui ficando cada vez mais longe dele e tentando estar onde me sentia bem. Os pais da minha amiga me apresentaram a agroecologia e me acolheram. Nos finais de semana, eu ia para o terreiro e ficava lá. Depois de algum tempo, ele passou a me acompanhar, sempre com má vontade, agredindo verbalmente as pessoas. Só tratava minha amiga como ‘sapatão safada’. Ou seja, ele queria me agredir e agia assim. Eu ia esperneando para não ser enterrada viva.

Veio a pandemia e tudo piorou. A gente teve que enfrentar o que estava debaixo do tapete. Foi quando a avó da minha amiga passou por uma situação de saúde muito difícil e fiquei com a família dela me revezando nos plantões no hospital. Quando voltei para casa depois de 15 dias, eu havia acabado de adormecer quando ele abriu a porta do quarto num solavanco tão brusco que, até recentemente, eu ainda levava um susto ao ouvir uma porta abrir. Para a violência ser maior, ele abriu a porta gritando alto: “Cadê as fronhas, hein? Há 15 dias que tá tudo sujo, eu não sei cozinhar nem lavar roupa, eu tô sem comida!”. Ou seja, eu era empregada, lavadeira, cozinheira, a serviçal, para fazer o que ele precisasse, inclusive, para ter relação sexual sem que eu quisesse. Até isso aconteceu. E eu às vezes permitia que acontecesse para que pudesse dormir e ficar pelo menos uma semana sossegada. 

E era briga e era revanche e era assédio e eram gritos para todo mundo ouvir. Quem tem vergonha não gosta de passar vergonha! Mas ele queria me colocar em xeque diante das pessoas. E isso tudo aconteceu, mais violência e mais vergonha. Foi assédio moral, foi tudo junto. Mas isso faz muito tempo! Graças a Deus, me livrei! 

Foi num final de ano que decidi ser feliz. Naquele dia eu dei o meu grito: “Acabou!” Era Natal de 2020 e eu decidi que queria ser feliz. Estávamos na casa de praia com as pessoas com quem eu queria estar, com nossos amigos todos e ele fazendo um monte de ameaça. Ele queria fechar a casa, desligar a água, fazer o que sempre fez. Mas decidi que, dessa vez, eu não ia ligar e que, simplesmente, iria ser feliz. Então, eu fui. Vê que besteira: a felicidade significava ir à praia ver o pôr do sol, tomar café na praia, brincar na praia até anoitecer, voltar pra casa todo mundo sujo de areia à noite. Ele acabou me mostrando que a minha felicidade não estava nem do lado dele nem de nenhum outro homem.

Ilustração digital de Felipe Plauska.

Acho que a violência acontece e é tão difícil de superar porque a gente é criado numa cultura machista. Pra você ter uma ideia, mesmo ciente de toda a violência um dos meus irmãos chegou a dizer que ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’. E ele disse isso porque ouviu o meu ex-marido falar para outro irmão que ia até Caruaru comprar uma arma pra me matar, se eu estivesse pensando em ficar com a minha atual mulher. Era como se meu irmão precisasse ficar refém dele e não me ajudar. 

Agressão física no sentido estrito eu não sofri. No dia que ele tentou, parti pra cima dele e o derrubei. Nem meu pai nunca me bateu. E quando aconteceu esse episódio da arma, eu nem pensei duas vezes: fui até a delegacia e prestei queixa pelo fato de ele ter dito que faria. Quem é covarde pode até não fazer, mas manda fazer. 

Naquele dia, ele tentou me agredir dentro de casa, depois pegou o carro e passou o dia inteiro fora. Pensei que ele tinha viajado para comprar a tal arma. Então, peguei um uber e fui embora de casa para o sítio de meus amigos. E não pude mais voltar pra casa até que a medida protetiva saísse. Só que isso demorou seis meses. Ela venceu em setembro de 2021. Ele ainda foi no meu trabalho e bateu no capô do carro querendo o carro para ele. Mais uma violência.

Para poder me reinventar e reconstruir a minha vida, eu procurei apoio. Fui primeiro ao Centro de Referência de Atendimento à Mulher Clarice Lispector, no Recife. Mas como havia feito o boletim de ocorrência contra ele na cidade vizinha, em Jaboatão, que é a cidade onde vivo, depois migrei para o Centro de Referência Maristela Just. Eles foram essenciais. Também segui me reinventando como artesã. Comecei a trabalhar com as ervas que produzia e a fazer sabonetes, sprays, tudo de forma agroecológica para vender nas feiras. Nessa época, contei também com o apoio de uma “vaquinha” online — o pessoal se juntou pra que eu conseguisse comprar novamente meus equipamentos de trabalho. Ele, meu ex, queria me quebrar, tirar o meu sustento. Mas comecei a fazer essas coisas. Isso é o que me sustenta até hoje.

Quando a medida protetiva retirou ele da minha casa, há um ano e meio, eu finalmente pude voltar. Nesse dia, eu estava no centro do Recife, fazendo compras e recebi uma ligação avisando que eu podia voltar pra minha casa. Da cidade mesmo, peguei um uber e vim. Mas não foi o fim. Descobri com a agente de polícia que as chaves da minha casa haviam ficado com um sobrinho dele e que eu deveria arrumar uma terceira pessoa para pegar com ele. Não achei isso certo, a chave tinha que ter sido confiscada. Pois sabe o que aconteceu? Quando cheguei aqui, a chave estava no batente da porta. Ele havia saído escoltado, mas depois ainda voltou aqui. Quando olhei a chave, eu gelei. Porque nesse momento ele poderia estar à espreita. Na verdade, ele tinha voltado para catar o que queria. Faltava tudo relacionado a carro, aspirador de pó, alguns presentes, todas essas coisas ele levou. E ainda estourou a TV, deixando a marca de uma mão nela. Como se fosse um recadinho pra mim. Mais uma violência.

O que eu diria para as pessoas que se encontram em situação de violência? Eu diria: procure ajuda. É você quem decide. Agora, procurar ajuda não quer dizer simplesmente ir a uma delegacia especializada de atendimento à mulher, porque o acolhimento ainda acontece de uma forma muito complexa. Mas você pode procurar os centros de referência. Existem várias formas de você chegar até eles. “Vai pro mercado”, desiste de ir pro mercado e procure ajuda, por exemplo. Você vai lá, conta a sua história e tenta se empoderar. Eu sonho em um dia fazer da minha história uma forma de empoderar outras mulheres para que elas tenham renda e possam se libertar. Eu trilhei esse caminho. É um caminho longo, mas não é impossível de trilhar. E o caminho só se faz caminhando.”

[Edilza está feliz. Depois de um ano morando com a nova namorada, ela conta que já receberam as “bênçãos de todos os encantados” em uma cerimônia realizada com amigos. Agora, espera finalizar o processo de divórcio do ex-marido para celebrar o casamento civil. Se tudo der certo, a data já está marcada. Será em 23 de abril de 2023.]
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