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Responda rápido: quem tem ou já passou dos 60 anos pode ser considerada uma pessoa “doente” apenas por ter chegado a essa idade? A princípio, a pergunta pode até causar estranhamento e parecer sem sentido para você. Pois saiba que isso poderia ter acontecido se a Organização Mundial da Saúde (OMS) tivesse validado uma proposta para enquadrar a “velhice” na nova CID, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. Caso isso tivesse ocorrido, a partir de 1º de janeiro de 2022, nada menos do que 33 milhões de brasileiros que estão na faixa acima de 60 anos teriam os “sintomas” ou “as consequências” de uma “doença” chamada “velhice”.

A proposta desta classificação se torna ainda mais contraditória porque partiu da própria OMS, que estimula avanços nas políticas de envelhecimento para ressignificar os sentidos da velhice a fim de evitar o etarismo, o preconceito decorrente da idade (Radis 216). Em março de 2021, a organização lançou um relatório com um chamado urgente à ação para combater a discriminação por idade considerando ser esse “um flagelo insidioso na sociedade”.

A inclusão desse novo código na CID foi anunciada em junho de 2019 e não atraiu muitas atenções até o falecimento do príncipe Philip, marido da rainha da Inglaterra, em abril de 2021, que teve “morte por idade avançada” como causa registrada em seu atestado de óbito. Mas, em março daquele ano, o príncipe tinha sido internado para tratar uma infecção e fazer um procedimento cardíaco, condição que pode ter levado à sua morte. O fato é que o atestado jogou luz sobre um assunto que tinha ficado no limbo e, a partir daí, movimentos e organizações da sociedade civil perceberam que havia um pedido de substituição do termo “senilidade” (código R54), na CID 10, por “velhice sem menção de psicose, senescência sem menção de psicose; e debilidade senil” (código MG2A), na CID-11, no rol de doenças do capítulo 21. Aos poucos, foi formado um movimento internacional pedindo que a OMS reconsiderasse a proposta de codificar o envelhecimento biológico como doença.

No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) afirmou em nota (9/8) que a mudança implicava “em desrespeito à dignidade da pessoa idosa, o que afrontava os princípios fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e o Estatuto do Idoso”, entre tantos outros marcos legais. Além disso, para o CNS, a proposta poderia “mascarar problemas de saúde reais para a pessoa idosa, aumentar o preconceito e o estigma às mesmas, interferindo no tratamento e pesquisa de enfermidades e na coleta de dados epidemiológicos”. O CNS comemorou o recuo da OMS e, em nota (17/12), disse ser uma “vitória da população idosa, da sociedade civil organizada e do controle social”.

O epidemiologista Alexandre Kalache, do Centro Internacional de Longevidade, e também presidente da Aliança Global de Centros Internacionais da Longevidade, foi um dos articuladores do movimento que aglutinou a sociedade civil. Kalache já foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da OMS e, por meio de suas conexões, conseguiu mobilizar apoio dentro e fora do país. Quando falou à Radis, em 27 de novembro de 2021, por uma plataforma de vídeo, o médico e geriatra estava em Londres acompanhando os grupos que buscavam sensibilizar os representantes da organização para a escolha de um termo mais aceitável para a CID-11. Na conversa, ele resgatou que antevia a dificuldade em alterar o termo “velhice” (old age) por um outro.

Foi aí que, em 17 de dezembro, a organização optou por substituir senilidade por “envelhecimento associado ao declínio da capacidade intrínseca” na nova CID. Presidente do ILC-Brasil e coordenador do Grupo Temático Envelhecimento e Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Kalache considerou que a decisão marca “um dia histórico de conquista da sociedade civil brasileira que beneficiará pessoas idosas de todo o mundo”. Segundo ele, todos os avanços que foram conseguidos duramente pela OMS poderiam ter sido derrubados pela relação entre velhice e doença. “O fato de estar na CID certamente seria interpretado por médicos, seja por ignorância ou preguiça, como o médico real fez”, diz [leia abaixo].

Durante grande parte de 2021, ativistas da área do envelhecimento indicaram melhor adequação do termo “declínio da capacidade intrínseca”. Mesmo assim, especialistas como Cristina Hoffman, representante da Coordenação de Saúde do Idoso do Ministério da Saúde, observaram que a escolha também não é definitiva. “No futuro pode haver um termo que faça referência à fragilidade do idoso, que é o que nós achamos mais adequado, e que pode vir acompanhado de uma breve descrição [na CID]”, afirmou em uma live (1/12) que reuniu especialistas na campanha “Velhice não é doença”, transmitida no YouTube (https://bit.ly/33a2uGe). No encontro, o médico Sérgio Paschoal reconheceu a urgência em aprofundar a discussão técnica já que, para ele, o “declínio da capacidade intrínseca”, embora seja muito prevalente na velhice, não leva ao preconceito etário porque pode ocorrer em qualquer fase da vida.

Impactos e implicações

O documento de apresentação da CID-11, de 2019, revela as implicações que iriam além da simples mudança de termos. Nele, a OMS reconhece que a classificação é utilizada “por seguradoras de saúde cujos reembolsos dependem da codificação de doenças; gestores nacionais de programas de saúde; especialistas em coleta de dados; e outros profissionais que acompanham o progresso na saúde global e determinam a alocação de recursos de saúde”. Na prática, a proposta permitiria, por exemplo, não identificar a causa de morte de uma pessoa idosa com várias patologias, negar um seguro para uma pessoa idosa saudável que, por conta de sua idade, já seria vista como “enferma”, e planos de saúde poderiam criar regras mais duras para dificultar o acesso à assistência médica de pessoas idosas na fase em que há muitas fragilidades. Ainda, a velhice, apenas observada por seu parâmetro cronológico, poderia entrar na lista de doenças não cobertas pelas operadoras de saúde, abrindo espaço também para que futuramente fases como “adolescência” ou “infância” passassem a ser entendidas como “enfermidades”.

Para Vânia Lúcia Leite, representante de usuários no CNS, a inclusão da velhice na CID iria camuflar o processo e os impactos vividos ao longo do ciclo de vida já que o termo poderia levar à compreensão equivocada de “velhice” como sendo um sintoma, um sinal ou um achado clínico. “Quando a idade avança, os sinais e sintomas das doenças e problemas de saúde, em decorrência de alterações do organismo relacionadas ao processo de envelhecimento, podem se manifestar de forma complexa, incomum ou até mesmo irrelevante”, salienta. Além disso, ela observa que profissionais de saúde não capacitados adequadamente e que são responsáveis pelo atendimento dos idosos poderiam “subavaliar e subdiagnosticar as reais condições de saúde das pessoas idosas, deixando de atender ou tratar a enfermidade ou problema de saúde”.

Vânia destaca que a velhice é um processo natural, que inicia ainda dentro do ventre materno e decorre de mudanças psicológicas, biológicas e sociais. “Ela ocorre em ritmos diferentes para cada pessoa, influenciada pelo modo de vida, pela condição de saúde de cada um, pelo meio ambiente. Assim, é errado definir velhice como condição de saúde, baseada exclusivamente na idade. Mesmo que a idade cronológica possa ser considerada fator de risco para diversas doenças crônico-degenerativas, ela é muito heterogênea”, considera.

Entenda o processo

De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), cerca de 75% das mortes no Brasil ocorrem devido a doenças crônicas não transmissíveis, sendo que mais de 70% delas acometem pessoas idosas. “É preciso dar (mais) destaque ao tratamento e à prevenção de doenças que acometem pessoas acima dos 60 anos, adotando políticas públicas que levem em consideração o rápido envelhecimento da população”, diz o site da entidade. Na política de envelhecimento ativo da OMS, o padrão de idade de 60 anos, estabelecido pelas Nações Unidas, é usado para “descrever pessoas mais velhas”. O documento propõe que “é importante reconhecer que a idade cronológica não é um marcador preciso para as mudanças que acompanham o envelhecimento”.

Em nota (17/12), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) observou que, desde 2015, uma articulação da indústria farmacêutica com pesquisadores repaginou a defesa da velhice como doença. Segundo Kalache, o poder da indústria antienvelhecimento (anti-aging) pesou na decisão da OMS. “O lobby é poderoso”, disse Kalache. Segundo ele, a indústria movimenta bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos e no mundo com um discurso que promete e busca a “juventude eterna”. Assim, o processo de alteração de termos seguiu no âmbito da OMS e, em 18 de junho de 2018, a velhice como doença foi incluída inicialmente como código de extensão e submetida à consulta. Em maio de 2019, a classificação foi sancionada como resolução na 72ª Assembleia Mundial de Saúde para adoção pelos Estados Membros.

Segundo a OMS, a CID é a base para identificar tendências e estatísticas de saúde em todo o mundo e fornece uma linguagem comum que permite aos profissionais de saúde compartilhar informações em nível global. Ao todo são 55 mil códigos identificadores de doenças. A 11ª versão da CID conta com novos capítulos, um deles sobre medicina tradicional — embora milhões de pessoas utilizem a medicina tradicional em todo o mundo, ela nunca havia sido classificada nesse sistema. Outro novo capítulo, sobre saúde sexual, reúne condições que antes eram categorizadas de outras formas (por exemplo, a incongruência de gênero estava incluída em condições de saúde mental) ou descritas de maneiras diferentes. O transtorno dos jogos eletrônicos também foi adicionado à seção de transtornos que podem causar adicção, bem como o estresse pós-traumático. Já o burnout foi incluído como um “fenômeno ocupacional” e ganhou uma definição mais detalhada.

O que é a CID?

Criada em 1893, a Classificação Estatística Internacional agrupa uma série de doenças e de situações em que há necessidade de atendimento clínico. Adotado pela OMS em 1948, o documento utilizado por profissionais de mais de 150 países está em sua décima primeira edição. Sua principal função é monitorar a incidência e prevalência de doenças, por meio de padronização universal, problemas de saúde pública, sinais e sintomas, causas externas para ferimentos e circunstâncias sociais, apresentando um panorama amplo da situação em saúde dos países e suas populações. A CID 10, que esteve em vigor até 2021, foi traduzida para 43 idiomas e estava presente em 115 países. A nova versão é totalmente eletrônica e o texto será traduzido para a versão em português.

5 perguntas para Alexandre Kalache

Por que velhice não é doença?

Velhice é o número de anos que cada pessoa vive. Não tem outro entendimento. O que importa é a percepção e o mau uso dessa interpretação. Seria muito fácil para os médicos, por ignorância ou preguiça, ter uma caixinha em que eles colocassem um tique apontando velhice como doença. Se o médico real caiu nesse erro, imagina os médicos que não receberam treinamento para isso já que só 10% das escolas médicas brasileiras tem uma disciplina chamada Geriatria.

O que é senilidade?

Esse é um termo muito vago e que não pode ser medido. Só que estava na CID 10 e potencialmente poderia causar muito ruído, e estava causando. Resolveram corrigir e a emenda saiu pior do que o soneto. Por isso, foi uma vitória que a sociedade civil conseguiu derrubar essa proposta. Porque há fortes interesses da indústria antienvelhecimento que estão por trás disso tudo. Movimentam bilhões anualmente. Eles estão infiltrados e têm mecanismos sutis para influenciar.

Como definir fragilidade?

Essa é uma síndrome que não é exclusiva do envelhecimento e que pode levar à morte ou à internação hospitalar aos 30 ou 45 anos. Vimos isso na epidemia de aids em que jovens tinham uma condição que levava à fragilidade, morriam porque estavam fragilizados. Uma doença cardiovascular, uma anemia profunda pode levar a uma fragilidade, que pode ser definida, medida, prevenida, tratada ou ter seus efeitos postergados. A velhice é um fator que pode aumentar o risco de uma pessoa vir a ter uma fragilidade.

Qual a sua visão sobre o envelhecimento?

Envelhecer é bom. Morrer cedo é que não presta. Mas as pessoas estão envelhecendo sobre o risco de serem rotulados como “velhos” e isso faz com que não se faça intervenções que poderiam ser feitas para corrigir, por exemplo, um problema cardiovascular, hipertensão ou diabetes porque a pessoa vai morrer de velhice. Por outro lado, abre a porta para intervenções que podem ser devastadoras, como tratamento com hormônios e a busca pela juventude eterna.

Outras fases da vida poderão ser vistas como doenças?

Pergunto se eles admitem se alguém pode morrer de “infância”, “adolescência”, “puberdade” ou “idade adulta jovem”. Tem uma série de transtornos e desvios de personalidade que podem acontecer nessas fases, potencializando riscos de suicídio, depressão, anorexia, que está concentrada no grupo de mulheres mais jovens. Mas ninguém vai ser insano em classificar essas fases como doença.

SAIBA MAIS
Recomendação CNS:
https://bityli.com/YlnIv
Nota Abrasco:
https://bityli.com/ksKEy
Relatório mundial sobre o idadismo:
resumo executivo - https://bityli.com/xRDiG
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