A maior Conferência Nacional de Saúde da história somou 4.048 delegados, eleitos pelas conferências estaduais e no Distrito Federal e livres, além da delegação de povos indígenas. Para ultrapassar a marca de 6 mil participantes, a 17ª contabilizou ainda convidados, equipes de relatoria, organizadores e apoiadores das atividades autogestionadas.
Um dos fatores determinantes para a ampliação da participação e diversidade de temas representados na 17ª foram as conferências nacionais livres, que somaram-se às conferências municipais, estaduais e distrital, e desta vez também puderam indicar delegados e submeter propostas e diretrizes ao relatório que foi debatido em grupos de trabalho (GTs) e nas plenárias deliberativas, em Brasília. Ao todo, 99 conferências livres enviaram propostas e representantes à etapa nacional, contabilizando 326 delegados.
Em conversa com Radis, Fernanda Magano, secretária-geral da 17ª e integrante da mesa diretora do Conselho Nacional de Saúde, pontuou que a inovação ampliou a visibilidade de pautas mais específicas no campo da Saúde na Conferência: “Temas que têm a ver com as necessidades de determinados grupos sociais, às vezes, não chegavam e desta vez foram amplamente trabalhados”.
Fernanda apontou que as conferências que obtiveram maior participação foram as de Pessoas com Deficiência (PcDs), a Livre, Democrática e Popular de Saúde, organizada pela Frente pela Vida (Radis 241), e a de Saúde da Mulher. Em relação aos temas mais visibilizados, ela indica que saúde quilombola, população LGBTQIAPN+ [lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais, pan-sexuais e não-bináries], pessoas com autismo e preconceitos ligadas ao envelhecimento — o idadismo — ganharam destaque na edição.
Todo o poder emana do povo
Ao blog do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE), a sanitarista e pesquisadora Sonia Fleury destacou a força da participação popular no evento: “Sem dúvida, a 17ª será reconhecida como a conferência da diversidade, espelhando o momento atual, no qual as lutas identitárias ganham força e visibilidade na sociedade brasileira”, escreveu.
Segundo a conselheira nacional Ana Lúcia Paduello, integrante da mesa diretora do CNS pelo segmento dos usuários e palestrante no eixo 3 (Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia), a participação social é fundamental para que as políticas públicas se materializem conforme as necessidades da população: “Sem participação social, vão entregar para nós um SUS que eles querem, e não é o SUS que nós precisamos”, reflete.
A psicóloga Emanuela Nascimento, que palestrou na mesma mesa de Ana Lúcia, concorda com a visão da conselheira: “O controle social para mim é a base do SUS. A política de saúde, a universalização do SUS, sua magnitude, ela só vai se manifestar com concretude se realmente houver o controle social. Então, espaços como a conferência, de discussão, educação em saúde, sobretudo na atenção básica, são manifestações desse controle social”, aponta ela, que atua em movimentos populares na periferia do Recife (PE) e defende o direito à cidade, ao território, ao lazer e à cultura como práticas de saúde.
Ambas defendem um SUS livre de privatizações e fortalecido. “Então, a gente precisa lutar por um SUS 100% público, estatal, de qualidade e com controle popular e que todo brasileiro o entenda como um patrimônio e defenda o SUS para si”, emenda Emanuela.
Na plenária final, Vitória Davi, representante da União Nacional dos Estudantes (UNE) no CNS, reiterou a 17ª como um marco de retorno da participação popular na formulação de políticas públicas: “É a atividade do controle social que marca a retomada da democracia, a reconstrução do SUS e a reconstrução do Brasil e dos brasileiros”, frisou.
Desafios de ser gigante
Apesar da celebração pela retomada do protagonismo do controle social na Saúde e pela diversidade obtida na 17ª, o quantitativo de participantes foi um desafio para a organização: “Estamos pondo na conta de uma conferência de sucesso, mas que teve percalços. E aí, para avaliar para as próximas, acho que a gente vai ter que balizar essas coisas. Porque, claro, vem um ânimo das pessoas, todos querem ampliar ainda mais, mas tem os gargalos. E não podemos pôr em risco algo que tem uma trajetória tão bonita constituída”, analisou Fernanda, ao ser questionada sobre a manutenção do modelo ampliado com o novo formato de atuação das conferências livres nas próximas edições.
A preocupação com a qualidade das discussões e do próprio documento a ser enviado ao Ministério da Saúde foi outro aspecto importante apontado: “Isso criou-nos um problema, um problema bom, que foi o tamanho do relatório, porque ficou bastante extenso e os grupos de trabalho pelearam um pouco nele, tentando resolver essa questão para podermos trabalhar um documento consolidado na plenária final”.
Como comparação, Fernanda destaca que na 16ª a totalização de propostas e diretrizes não chegou a 500, enquanto na 17ª as proposições saltaram para quase 1.500, que foram distribuídas em quatro eixos e 48 GTs. No fim, o encontro nacional aprovou 240 diretrizes e 1.190 propostas para saúde pública do Brasil.
O amanhã em disputa
Ainda que temas de cunho mais progressistas tenham se destacado, tanto em números de propostas como nas manifestações realizadas, a busca por ampliação de representatividade reuniu também grupos conservadores que conseguiram levar à etapa nacional pautas alinhadas às ideologias de direita — retrato fiel de um país ainda polarizado politicamente.
Tal constatação convergiu com uma desconfiança de que as Conferências Livres poderiam significar, também, meio de acesso de propostas que dificilmente passariam nas discussões municipais e estaduais. Conferências temáticas como Pelo Direito à Vida, à Saúde Materna e ao SUS e Garantir Direitos Plenos em Todas as Etapas do Ciclo de Vida encaminharam proposições e delegações contrárias ao aborto, por exemplo, acirrando ânimos e tensionando algumas das discussões e votações nos GTs.
Os impasses e tensões também foram observados em outros temas sistematicamente combatidos pela extrema direita, como direitos das populações LGBTQIAPN+, saúde sexual e reprodutiva, políticas de saúde para pessoas negras e quilombolas, legalização da cannabis medicinal e política de memória das vítimas da covid-19.
Fernanda Magano analisou essas disputas: “Precisamos reconhecer que tivemos aqui uma grande gama de pessoas freirianas, amigos do SUS, do esperançar, mas também alguns demonstrativos de grupos, digamos, reacionários, com destaques muito estratégicos em temas que não são consenso, pedindo sua supressão total”.
A secretária-geral da 17ª confirmou que os principais ataques se concentraram em pautas de equidade racial, de gênero e de costumes, como as discussões relacionadas à descriminalização do aborto. Fernanda lembrou ainda que tais divergências fazem parte da democracia e que a disputa por visibilidade e poder também emerge nesses espaços, mas ressaltou que excessos não foram tolerados. “A gente tem cuidado para não permitir as manifestações de ódio, as sinalizações de repúdio por repúdio, sem embasamento. Essas posturas precisam ser controladas”.
Quatro dias para quatro anos
Embora o cronograma oficial indique o fim da etapa nacional da 17ª no dia 5 de julho, seus impactos e desdobramentos ecoarão pelo menos até 2027. Isso porque a lei de criação do SUS prevê que as propostas e diretrizes aprovadas na conferência norteiem o Plano Nacional de Saúde (PNS), que será formulado para o quadriênio 2024-2027, a exemplo dos planos estaduais e distrital de Saúde. Já os municípios deverão revisitar seus planejamentos a partir das deliberações da 17ª, pois só iniciarão seus novos ciclos em 2025. Além disso, o financiamento, por meio do Plano Plurianual (PPA), também deverá contemplar as prioridades traçadas na conferência. Logo, não seria exagero dizer que as discussões e decisões ocorridas em Brasília durante quatro dias irão ressoar por muito mais tempo.
Sem comentários