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O registro do arco-íris no piso do Centro Internacional de Convenções do Brasil feito pelo médico Hésio Lacerda. — Foto: Hésio Lacerda.
O registro do arco-íris no piso do Centro Internacional de Convenções do Brasil feito pelo médico Hésio Lacerda.

Na tarde fria e seca de 3 de julho, um facho de luz dourada atravessa os vidros do Centro Internacional de Convenções do Brasil e se refrata, imprimindo no piso de porcelanato uma faixa com as cores do arco-íris. O registro, feito pelo médico mineiro Hésio Lacerda, parecia indicar o caminho até o local onde a população LGBTQIAPN+ presente à 17ª defenderia sua principal demanda na Conferência: um SUS que acolha toda a diversidade. 

A direção apontada pelas cores levava a uma sala no segundo andar do centro de convenções, onde Hésio e um conjunto de delegados e convidados, com perfis variados e vindos de diferentes lugares do país, participavam de um encontro que, no futuro, talvez seja visto como um marco na história das conferências. Em comum, o fato de integrarem a comunidade LGBTQIAPN+, sigla que agrupa lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais e não-bináries em uma mesma luta.

Todos chegaram a partir de uma convocação, feita no aplicativo de mensagens WhatsApp, para discutir estratégias de atuação nos grupos de trabalho, de modo a defender suas pautas nas votações e ampliar a participação dessa população nas discussões sobre o futuro (e o presente) do SUS. O fórum virtual, por sua vez, surgiu da iniciativa de integrantes da Aliança Nacional LGBTI+. Foi sendo anunciado pelos corredores e rapidamente ganhou adesão — funcionando até o final do evento para monitorar em tempo real as votações de interesse da comunidade.

Sara Gonçalves, Layza Lima (de cabelo comprido) e Nathalia Bittencourt, da Aliança LGBTI, posam com o então presidente do CNS, Fernando Pigatto. — Foto: acervo pessoal.
Sara Gonçalves, Layza Lima (de cabelo comprido) e Nathalia Bittencourt, da Aliança LGBTI, posam com o presidente do CNS, Fernando Pigatto. — Foto: acervo pessoal.

“A ideia era ampliar a discussão, então abrimos o grupo no WhatsApp e começamos a procurar um espaço para uma reunião presencial”, contou à Radis Layza Lima, coordenadora titular da área de Mulheres Trans e Travestis da Aliança Nacional LGBTI+ e coordenadora da Diversidade Sexual e de Gênero da Prefeitura de Serra (ES). A sala 43 foi ocupada depois de inúmeras solicitações à organização da 17ª CNS terem sido ignoradas, como explicou Laylla Monteiro, assistente de Pesquisa Clínica para População Trans do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Ela declarou à Radis que a reunião foi organizada quando lideranças identificaram casos de transfobia em Brasília no período em que acontecia a conferência e perceberam a ausência de discussão sobre as demandas da população LGBTQIAPN+ na programação do evento — a despeito da adoção da expressão todes [linguagem neutra de gênero, que inclui pessoas não-binárias e intersexo] em pronunciamentos e documentos.

“As gays, as bi, as trans e as sapatão; estão todas reunidas pra fazer revolução.”

Manifestantes ocupam o plenário oficial da 17ª, carregando uma imensa bandeira com as cores do arco-íris. — Video: Adriano De Lavor.

Radis atendeu à convocação do grupo virtual e acompanhou as articulações, que resultaram na redação de uma nota de repúdio aos episódios de violência de gênero e na organização de uma manifestação na tarde daquele mesmo dia — integrantes do grupo se dirigiram à plenária principal debaixo de uma enorme bandeira do arco-íris, enquanto repetiam o canto “As gays, as bi, as trans e as sapatão; estão todas reunidas pra fazer revolução”. 

Equidade, universalidade e integralidade

Que revolução é essa que esperam promover? Nada além do cumprimento dos princípios fundamentais do sistema único de saúde, com maior ênfase na equidade. Equidade quer dizer respeito às necessidades, diversidades e especificidades de cada cidadão ou grupo social. Esse conceito reconhece que não somos todos iguais e, por isso, que é preciso combater as desigualdades.

“Dizer que a população LGBT consegue acessar de maneira plena o SUS é uma utopia, uma mentira.”

“Esse é o momento de o SUS, de fato, se comprometer a fazer aquilo que precisa fazer, mas infelizmente não faz, que é garantir acesso pleno à saúde”, resumiu Sophie Nouveau, integrante do Comitê Técnico Estadual de Saúde LGBT do Rio Grande do Sul. Em entrevista à Radis [disponível aqui], ela alertou: “Dizer que a população LGBT consegue acessar de maneira plena o SUS é uma utopia, uma mentira”.

Para ativistas e delegados presentes à 17ª, só a efetivação da equidade garantirá que os direitos de todas as pessoas — para além da população LGBTQIAPN+ — sejam realmente respeitados e, consequentemente, suas especificidades levadas em consideração no âmbito dos serviços de saúde.

Hésio, o médico que registrou com seu celular o arco-íris no piso do centro de convenções, opinou que a equidade, além de fortalecer o sentimento de empatia, garante a justiça, já que considera as diferenças culturais, sócio-regionais e econômicas na política e nas práticas de saúde. Para ele, que atua na Estratégia Saúde da Família na cidade de Ubá (MG), sem equidade também não se conquista outro princípio do SUS, a universalidade. “A gente não consegue garantir um SUS universal se não garante assistência para essas pessoas. Quando a gente fala da população trans, da população travesti, de pessoas intersexos e diversos outros setores da comunidade LGBTQIAPN+, a gente se depara com um SUS que ainda está muito precário”, diagnosticou, fazendo questão de valorizar a oportunidade de discussão que se abria com a conferência.

Cleonice Araújo, ativista de Caxias do Sul (RS), grava depoimento para o Instagram da Radis: “Nós queremos saúde integral”. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Cleonice Araújo, ativista de Caxias do Sul (RS), grava depoimento para o Instagram da Radis: “Nós queremos saúde integral”. — Foto: Eduardo de Oliveira.

O respeito às demandas e especificidades de cada grupo não diminui a importância da garantia da integralidade, chamaram atenção outros ativistas. Cleonice Araújo, primeira vereadora suplente trans de Caxias do Sul (RS), lembrou que trans e travestis só são incluídos nas políticas de saúde sob o ponto de vista do HIV/aids. “Nós somos muito mais, nós queremos saúde integral, principalmente para os jovens”, disse, em depoimento gravado para o Instagram da Radis. “A conferência fala que ‘amanhã é outro dia’; para mim, hoje é um novo dia, mas nós precisamos transformá-lo em um dia positivo”, enfatizou.

“A gente não quer apenas o processo transexualizador, a gente quer mais que isso, quer um acompanhamento de saúde integral. A gente quer ir ao dentista, ao ginecologista, ao cardiologista. É preciso haver de fato uma política integral da saúde LGBTQIAPN+”, reforçou Theodoro Rodrigues, homem trans, assessor técnico da Secretaria da Igualdade Racial do Estado do Ceará. Ele apontou a necessidade de se construir um SUS mais plural e mais diverso, de maneira que as especificidades de cada grupo sejam respeitadas, e sua participação nas decisões, assegurada: “Falar em equidade é falar em participação”.

Acolhimento contra LGBTfobia

Mas quais são as demandas específicas levantadas pelos participantes? É unânime entre os entrevistados de Radis a constatação de que existe uma “LGBTfobia estrutural” que dificulta o acesso e a garantia dos direitos já assegurados. Em quase todos os depoimentos, emergiu a reivindicação por maior acolhimento nos serviços e práticas de saúde. “Infelizmente os nossos profissionais não estão preparados para atender gays, travestis e transexuais”, constatou Orlaneudo Lima, gestor em serviço de saúde na cidade de Milhã (CE). 

Por este motivo, Orlaneudo estava empenhado em defender as propostas que pudessem fortalecer a implementação efetiva de serviços direcionados às demandas da população LGBTQIAPN+ nos serviços municipais, fosse na orientação e acompanhamento de processos específicos, como a hormonioterapia (evitando, segundo ele, verdadeiras “automutilações”) ou na oferta de atendimento em saúde mental. Ele relatou que são muitos os casos de suicídio registrados na região do Sertão Central cearense, onde o preconceito, aliado ao desmonte dos serviços, têm sido responsáveis pela precarização da saúde de jovens gays, lésbicas, travestis e transexuais. 

Cleo também se mostrou preocupada com a invisibilidade (ou visibilidade enviesada) da população LGBTQIAPN+ no interior, mesmo se referindo a outro contexto, na região Sul do Brasil. “Pessoas LGBTs estão se suicidando por conta da exclusão familiar e social. É muito importante que a gente fortaleça as questões de saúde mental nos espaços do interior”, avaliou. Para ela, a situação da população que tem menos acesso à saúde, de travestis e transexuais, é bem mais preocupante quando está longe das capitais. 

Na entrevista que concedeu à Radis [leia aqui], a ativista Pitty Barbosa, de Guaíba (RS), destacou que as travestis que vivem em situação de vulnerabilidade são esquecidas pelas ações de saúde — em especial as negras, as que vivem em situação de rua, as que estão envelhecendo. Ela insistiu em denunciar algo que considerou falta gravíssima, tanto na 17ª quanto nas políticas do SUS: a ausência de qualquer menção ao envelhecimento de travestis e transexuais vivendo com HIV. 

“Mulher travesti, mãe, avó, filha, sou da terceira idade, tenho 61 anos”, se apresentou Pitty, que integra a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a Rede Nacional de Mulheres Travestis e Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/Aids (RNTTHP). Ela considerou que o SUS ainda é excludente — “O SUS é para as pessoas brancas elitizadas, pessoas hétero” — e denunciou: “A fome mata as travestis. O crack mata as travestis. Nós estamos morrendo!”.

Sacerdote afro e gay, pertencente aos povos de terreiro e da comunidade LGBTQIAPN+, pai Kauê de Oxalá (ou Babá Delê), de Maracás (BA), chamou atenção para a importância de se estreitar o diálogo entre as pautas das populações ditas minoritárias, destacando que homofobia, transfobia, machismo e sexismo também se ancoram em práticas de racismo e de intolerância. Ele reivindicou um maior acolhimento para travestis e transexuais, nos serviços do SUS, ao mesmo tempo em que demandou respeito às comunidades tradicionais e o combate à intolerância religiosa: “É preciso respeitar as diversidades”.

Médico de família e de comunidade que atua no ambulatório trans da Secretaria Municipal de Florianópolis, Marcello Medeiros Lucena identificou outro ponto nevrálgico na oferta de serviços no SUS: a visão “binarizada” de gênero [masculino e feminino como únicas classificações, distintas e opostas], mesmo em espaços de discussão da saúde LGBTQIAPN+. Apresentando-se à Radis como “transmasculino não-binário”, Marcello advertiu que a predominância da visão homem/mulher dificulta o acesso à saúde de pessoas que são diversas: estas ou se obrigam a performar uma identidade para se encaixarem nos padrões de atendimento ou se afastam do SUS. “Não é isso que a gente quer. Queremos um SUS universal e equânime, então é preciso desbinarizar a saúde”, recomendou. 

Sophie fez coro à fala de Marcello, alertando para a repercussão deste cenário na vida e na saúde das pessoas. “O cenário de preconceito e de discriminação se reflete na saúde. As pessoas procuram o serviço e não são tratadas da maneira adequada, não conseguem atendimento. Além disso, os recursos não são distribuídos de maneira igual para todas as regiões”, alertou, chamando atenção para a disparidade que há entre diferentes lugares do país.

“Saúde LGBTQIAPN+, saúde da população negra e saúde das pessoas com deficiência são sinônimo de pluralidade e de diversidade, têm que ser levadas em consideração, não são problemas, mas sim solução, já que beneficiam não somente um grupo, mas toda a humanidade.”

Sophie, no entanto, apontou para o lado propositivo e democrático da conferência, espaço em que muitas vozes se encontram para definir os destinos do SUS. “O que a gente traz à Conferência Nacional de Saúde é o esperançar”, afirmou, ressaltando a necessidade de o coletivo que estava em Brasília se comprometer com pautas que promovam a equidade para todos, todas e todes. “A gente está aqui para mostrar que saúde LGBTQIAPN+, saúde da população negra e saúde das pessoas com deficiência são sinônimo de pluralidade e de diversidade, têm que ser levadas em consideração, não são problemas, mas sim solução, já que beneficiam não somente um grupo, mas toda a humanidade”, disse a ativista gaúcha.

Cleo também valorizou a oportunidade de troca de experiências e destacou a importância de quem veio antes e abriu caminho para a participação social — que, agora, ela e colegas da comunidade ajudam a ampliar. Reverenciou a memória de Fernanda Benvenutty, técnica de enfermagem, pioneira no ativismo trans, falecida em 2020. “Hoje eu me sinto completa”, definiu, avaliando que, depois de participar de muitas conferências, não se sentia mais “um pássaro longe do ninho” e conseguia enxergar avanços na construção de políticas mais inclusivas. 

Hésio Lacerda, médico de família em Ubá (MG): “sem equidade não se garante universalidade”. — Foto: acervo pessoal.
Hésio Lacerda, médico de família em Ubá (MG): “sem equidade não se garante universalidade”. — Foto: acervo pessoal.

Theo considerou que a 17ª terá, no futuro, valor comparável ao da 8ª Conferência Nacional de Saúde, pelo resgate do SUS, valorização da ciência e defesa da diversidade. “Estávamos todos aguardando esse momento em que o Brasil visse o Brasil, em que o Brasil discutisse o Brasil. Nada melhor do que vir à 17ª e participar de tudo isso”, declarou. Ele indicou que houve momentos difíceis, em que foi preciso ser firme para defender as propostas do grupo, mas assinalou que, por meio da conversa, conseguiu importantes adesões às causas que defende. Theo contou ter percebido durante a 17ª apoio de heterossexuais e pessoas cisgênero para que se enfrente a LGBTfobia: “É importante valorizar o encontro que tivemos aqui”.

“Participar da 17ª conferência nos dá esperança”, afirmou Hésio. Para muito além das questões técnicas e de gestão, números e metas, o que ficou, para o médico, foi o reencontro com a defesa do SUS e a certeza de sua diversidade.

Diversidade de pessoas, diversidade de propostas, diversidade de origens, orientações e olhares. Diversidade que não divide, mas sim fortalece; diversidade que ultrapassa o desejo por igualdade e vislumbra a efetivação da equidade. Diversidade que acolhe e respeita as diferenças; diversidade que enfrenta adversidades.

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