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A décima sétima foi a primeira de Milena, Kátia, Sony, Raythyson, Maria Clara, e de boa parte dos delegados que estiveram em Brasília, entre 2 e 5 de julho. Uma pesquisa realizada durante o evento constatou que 65% dos presentes declararam estar estreando em uma conferência nacional de saúde. Vieram das mais diferentes regiões do país, com entusiasmo de principiante e muita coragem para defender suas causas. À Radis, contaram suas impressões e dividiram expectativas. Estavam mais do que preparados para fazer valer suas propostas e garantir a proteção de um sistema de saúde público e de qualidade. 

Milena Fondello e Kátia Amirati: encontro ao acaso e muitas causas em comum. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Milena Fondello e Kátia Amirati: encontro ao acaso e muitas causas em comum. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Na manhã do terceiro dia de Conferência, um ato público em defesa do SUS, da vida e da democracia reuniu os participantes em frente ao Museu Nacional da República, em Brasília. Entre carros de som e palavras de ordem, faixas e bandeiras, duas paulistas se encontravam por acaso. Haviam acabado de se conhecer. Milena Fondello vinha de Pindamonhangaba, é doula, mas estreava em uma conferência nacional pelo segmento de usuários, enquanto Kátia Amirati, enfermeira de formação, representava o segmento de gestores, eleita pela região da Lapa Pinheiros, na capital São Paulo.

A reportagem quis saber o que há em comum nas pautas defendidas por usuária e gestora? Onde elas se esbarram? Para Kátia, uma conferência nacional é a possibilidade de garantir, de fato, a participação e o controle social dentro do SUS. Ela, que já trabalhou como interlocutora das equipes de Consultório na Rua dentro da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, estava impactada pelo encontro com tantos colegas da rede nacional e de movimentos sociais. “Estamos todos disputando espaços, inclusive na política. Pensar que a população em situação de rua pode estar representada em uma conferência nacional de saúde reafirma que esse caminho vale a pena”.

A relação de Kátia com essa temática vem desde os projetos de graduação na faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Nas aulas de saúde coletiva, tive oportunidade de conhecer espaços de cuidado com a população em situação de rua, que vivia em um cenário completamente hostil, inóspito, do ponto de vista até da técnica de enfermagem”, lembrou à Radis

Kátia, do segmento gestores: "a Conferência como possibilidade de garantir a participação e o controle social dentro do SUS". — Foto: Eduardo de Oliveira.
Kátia, do segmento gestores: “a Conferência como possibilidade de garantir a participação e o controle social dentro do SUS”. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Aos poucos, ela foi construindo sua trajetória como enfermeira em uma equipe de Consultório na Rua até chegar aos espaços de gestão como servidora pública. “Hoje, poder trabalhar com essa pauta e estar em uma conferência defendendo esses valores é uma realização”.

Já Milena, cuja trajetória é alicerçada no movimento de mulheres, disse que entende a conferência como “um espaço de reconstrução”. “Depois dos últimos 4 anos, ter contato com um Brasil tão diverso, saber como vêm sendo criadas as políticas públicas e poder fortalecer isso nacionalmente, é um momento de muito esperançar”, comentou. Dois dias antes, ela vibrou com a presença de quatro ministras na abertura da 17ª — além de Nísia Trindade, da Saúde, estavam Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima; Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas; e Cida Gonçalves, das Mulheres. “Vocês estão entendendo o quanto isso é potente?”. 

Milena vem de Pindamonhangaba e representa o segmento de usuários: defesa das mulheres e do parto humanizado. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Milena vem de Pindamonhangaba e representa o segmento de usuários: defesa das mulheres e do parto humanizado. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Foi durante o curso de formação para doula que Milena — que também havia cursado veterinária — despertou para a militância. “Sempre fui completamente alienada da política. Não entendia. Não fazia sentido para mim. Eu pensava: ‘Não sou ativista’”, recordou, como se falasse de um passado muito distante. A experiência com a realidade de mulheres que dependem do SUS e as dificuldades em defesa do parto humanizado lhe conduziram a novos propósitos. 

Nas eleições de 2020, Milena disputou uma vaga na Câmara Municipal em sua cidade. Teve 565 votos e foi a candidata à vereadora mais votada do campo das esquerdas, mas não se elegeu devido ao coeficiente eleitoral. Em Pindamonhangaba, das onze cadeiras do legislativo municipal, apenas uma é ocupada por mulher. O desafio trouxe muitos embates e, pelo menos, uma certeza: “Eu não pretendo mais sair candidata. Sinto que aquele não é o meu lugar. Gosto de ajudar na construção de políticas públicas, mas não na linha de frente”.

Foi em nome disso que se candidatou à delegada em todas as etapas das conferências de saúde até chegar à nacional. Tinha interesse nas propostas sobre saúde das mulheres, direitos reprodutivos e, em especial, humanização da assistência ao parto. “Fui entender a violência de gênero através da violência obstétrica”.  

Em sua cidade, um município de grande porte com uma população de 170 mil habitantes, ela contou, não tem anestesia para o parto normal no SUS. “Numa mesma maternidade que atende por convênio e pelo SUS, as mulheres do convênio têm direito a anestesista e as mulheres do SUS, não”, relatou. “Eu venho lutando contra isso há oito anos, mas me sentia muito sem voz. Então, decidi que o caminho é o controle social”. Ela comemorava o fato de aquele ser um espaço de diálogo, inclusive para argumentar com quem pensa diferente. Em seu Grupo de Trabalho (GT), ela conseguiu, após uma conversa de 15 minutos, convencer outra delegada de que o aborto era uma questão de saúde pública.

Outros estreantes

Raythyson e Sony: amigos de militância e boas impressões na primeira conferência nacional. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Raythyson e Sony: amigos de militância e boas impressões na primeira conferência nacional. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Raythyson Dias e Sony Silva são amigos de militância. O primeiro veio da pequena Baraúna, no Rio Grande do Norte, é agente comunitário de saúde, estudante de biomedicina e faz sua estreia em conferências nacionais pelo segmento trabalhador. O segundo chegou em Brasília com a delegação de 120 pessoas do estado do Ceará, é fisioterapeuta, coordenador da vigilância sanitária no município de Palhano e participava da 17ª pelo segmento gestor.

Sony é abreviação do nome comprido, Francisco Sonyanderson. “Estar aqui hoje depois de anos de negacionismos, que levaram o SUS e a população mais pobre e vulnerável a mais sofrimento, e depois de uma pandemia, que dilacerou nosso país, é muito gratificante”, resumiu à Radis. Aos 24 anos e apesar de marinheiro de primeira viagem em conferências nacionais, ele traz uma bagagem de veterano. Em 2020, foi um dos 10 destaques brasileiros como visitador do Programa Criança Feliz, que reconheceu o trabalho e as boas práticas para o desenvolvimento infantil adotadas durante a pandemia.

O cearense Sony, estreante com bagagem de veterano: cabeça erguida sempre. — Foto: Eduardo de Oliveira.
O cearense Sony, estreante com bagagem de veterano: cabeça erguida sempre. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Na 17ª, defendia um SUS igualitário para todos, todas e todes. Homem gay, como fez questão de ressaltar, sabia que tinha muito pelo que lutar. “Estou percebendo que as propostas voltadas para o público LGBT, infelizmente, ainda sofrem com o preconceito enraizado”. Durante as votações nos grupos, ainda causavam alvoroço determinadas demandas da população LGBTQIAPN+ por um SUS mais plural e diverso que garanta a equidade. [Leia mais aqui].

Mas se depender de Sony, não tem trégua. “Uma coisa que aprendi em todos esses anos de luta é que não posso me perder no caminho, e que eu nunca vou baixar minha cabeça”. Foi de cabeça erguida, ostentando um chapéu de couro da sua região e segurando nas mãos a bandeira do seu município, que ele pediu licença à reportagem para juntar-se à comitiva do seu estado para uma foto com o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto. Missão cumprida. Sony disse que a Conferência Nacional de Saúde foi um primeiro passo e prometeu seguir de olho acompanhando e monitorando as propostas que saíram do relatório final. 

O potiguar Raythyson, um agente comunitário de saúde em defesa dos trabalhadores. — Foto: Eduardo de Oliveira.
O potiguar Raythyson, um agente comunitário de saúde em defesa dos trabalhadores. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Ao seu lado, Raythyson garantia o mesmo. “É daqui que saem todos os elementos para consolidar as políticas públicas de saúde que depois vão chegar na ponta, em nosso município, no nosso estado”, declarou o potiguar. Em sua estreia como delegado, estava atento a todas as demandas dos trabalhadores — inclusive, aquelas voltadas para assegurar o piso da enfermagem, disse. “Mas em específico estou defendendo a minha classe dos agentes comunitários de saúde”. Um dia antes, Raythyson esteve ao lado da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Conacs), numa manifestação à entrada do plenário na Conferência. Enquanto dava entrevista à Radis, foi requisitado para assinar moções de grupos os mais diversos que circulavam pelo local. Uma delas, voltada para a saúde dos idosos; a outra, de apoio às entidades que defendem pessoas que sofreram agressões ou vivem em sofrimento. Fazia questão de ler cada um dos requerimentos e se mostrar solidário às causas. Estava confiante com o Brasil plural que viu se desenhar em Brasília. “Estou muito feliz em poder presenciar toda essa diversidade de povos e culturas”, disse, acentuando os ‘dês’ e ‘tês’ característicos de seu sotaque.

Doenças raras e uma causa comum

Eleita delegada pelo segmento de usuários, Maria Clara Migowski representava a Associação Carioca de Distrofia Muscular. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Eleita delegada pelo segmento de usuários, Maria Clara Migowski representava a Associação Carioca de Distrofia Muscular. — Foto: Eduardo de Oliveira.

“Não se pode calar a voz do povo. Se a gente não falar, as coisas não acontecem”. Maria Clara Migowski acabou de completar 60 anos e foi com esse espírito que ela viajou para a sua primeira participação em uma conferência nacional de saúde, uma experiência que considera fundamental para a construção de um sistema de saúde mais próximo do que deseja. “Quando existe a representatividade do usuário, é possível apontar o que pode ser mudado e trazer propostas para o que queremos ver acontecer”. 

Integrante do Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, foi eleita delegada pelo segmento de usuários e representava a Associação Carioca de Distrofia Muscular. “Estou lutando pela causa das doenças raras e, mais especificamente, pela distrofia muscular”, explicou e, como que se antecipando à pergunta seguinte, arrematou: “Mas a minha luta não se limita a essas pautas”. 

Maria Clara é a terceira filha de um casal que se descobriu portador de doenças raras tardiamente. O pai foi diagnosticado com a síndrome de Machado-Joseph, uma doença neurológica grave que causa a perda da capacidade motora e não tem cura. Na mesma época, a mãe manifestou os primeiros sintomas da distrofia muscular, um tipo de distúrbio genético que geralmente provoca fraqueza e perda de tecido muscular, comprometimento do coração e do sistema respiratório.

Durante votação no GT, ao lado de Joana: "a gente cresce com a diversidade". — Foto: Eduardo de Oliveira.
Durante votação no GT, ao lado de Joana: “a gente cresce com a diversidade”. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Pouco a pouco, ela viu a família sucumbir às patologias. Primeiro, a irmã mais velha que, com 14 anos, recebeu o mesmo diagnóstico da mãe — aos 18, ela parou de andar, e aos 24, faleceu —, enquanto o irmão viveu até pouco mais de 50 anos, quando morreu vítima da mesma síndrome do pai. Maria Clara tinha apenas 6 anos de idade quando apresentou sintomas da distrofia muscular.

“Por conta da minha patologia, os médicos não me deram muita esperança de passar da adolescência”, contou à Radis. Contra todos os prognósticos, aos 19 anos, ela já dava aulas. Tornou-se professora, ainda que tenha se aposentado cedo. Faz 25 anos que é uma militante da saúde pública. “Costumo dizer que já estou na minha terceira adolescência, com muito gás e disposição para lutar”. 

Mesmo chegando à 17ª para brigar pelas minorias — “Nós somos os invisíveis dos invisíveis”, disse —, não militava apenas em causa própria. Ela sabe que o SUS será tanto mais forte quanto mais gerar benefícios para todos. “Independentemente de ser doença prevalente ou doença rara, se a gente entender que o SUS deve ser fortalecido, isso vai trazer benefício para todos”.

Despreparo e preconceito

Em defesa de um SUS forte e para todos. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Em defesa de um SUS forte e para todos. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Moradora de Rocha Miranda, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, ela conhece de perto as dificuldades de quem habita a periferia de uma grande cidade e todos os entraves da mobilidade urbana, e sofre com uma quase total ausência de calçadas e um transporte público precário — algo que, para uma pessoa com distrofia muscular, se transforma em verdadeiro martírio. 

Até 2021, Maria Clara deslocava-se por cerca de 20 minutos para percorrer a distância de um quilômetro de sua residência até a estação de metrô mais próxima. Mas, depois de um acidente em que quebrou o fêmur e perdeu totalmente o controle do tronco — uma das limitações provocadas pela distrofia muscular —, passou a depender de transporte especial. Nessa ocasião, viu falar mais alto o preconceito e a incapacidade das pessoas para lidar com as doenças raras. Em uma emergência em um hospital do Rio de Janeiro, ouviu uma profissional de saúde tratar com descaso seu estado físico. “Como se fosse uma simples questão de esforço para que eu conseguisse levantar da maca”, criticou.

A cadeira de rodas não é empecilho para Maria Clara. Em sua estreia na 17ª, ela elogiou a estrutura, mas constatou que ainda falta um tanto até que a sociedade aprenda a respeitar as pessoas com deficiência. “O transporte foi o grande nó”, disse ela, que estava hospedada em um hotel distante 32 quilômetros do Centro Internacional de Convenções do Brasil onde se realizou o evento. “E eu costumo dizer que, sem transporte, a gente não tem cidadania. Isso não é uma exclusividade da conferência. É uma realidade nacional”.

Ela estava com a sua acompanhante, Joana Lima. Foi a amiga quem tomou à frente quando o motorista que deveria levá-las no trajeto do aeroporto até o hotel mostrou seu despreparo — ainda mais ao se levar em conta o contexto de uma conferência nacional de saúde. “Ele nos perguntou se éramos obrigados a vir pra cá”, contou à Radis. Num misto de indignação e cansaço, dessa vez, Maria Clara deu calado por resposta. Foi a acompanhante quem tomou à frente: “Ela está aqui porque ela foi eleita”, recordou, com uma pitada de orgulho, mais tarde à Radis.

Entre delegadas: “Não são as pessoas que são deficientes. Quando o espaço não é acessível, o espaço é deficiente”. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Entre delegadas: “Não são as pessoas que são deficientes. Quando o espaço não é acessível, o espaço é deficiente”. — Foto: Eduardo de Oliveira.

“A gente briga muito por acessibilidade, não só contra a barreira arquitetônica, mas principalmente contra a barreiras atitudinais”, explicou, fazendo referência a atitudes ou comportamentos que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades. “Essas barreiras estão ligadas ao preconceito e são a raiz de todas as outras”.

Foi também por isso que, desta vez, Maria Clara se candidatou e foi eleita como delegada para a Conferência Nacional de Saúde. “Se você quer mudança na sociedade, você tem que dar a cara à tapa e estar em todos os locais. Do contrário, as pessoas não reconhecem que o espaço é deficiente”, declarou, praticamente desenhando o óbvio: “Não são as pessoas que são deficientes. Quando o espaço não é acessível, é o espaço que é deficiente”. 

Este ano, como resultado das Conferências Livres das Distrofias Musculares e ainda de Patologias não transmissíveis, doenças imunomediadas e doenças raras, uma série de propostas foram votadas durante a nacional. Entre elas, a ampliação dos Centros de Referência para doenças raras — hoje, existem no país 18 serviços de referência de doenças raras, número insuficiente para atender uma população em um país de dimensões continentais como o Brasil —; a incorporação e acesso às novas terapias para doenças raras no âmbito do SUS; e a retomada do Comitê Interministerial de Doenças Raras com garantia de participação da sociedade civil.

“A gente ainda tem muito a conquistar. Mas eu tenho esperança de que as coisas vão mudar. A humanidade está caminhando para isso. Acho que a gente cresce com a diversidade, quando há trocas e quando as pessoas conseguem olhar para além do seu próprio umbigo”, concluiu a delegada estreante. “Isso foi o que houve de mais bonito nesta Conferência”.

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