Nas semanas que antecederam a 17ª, jornais, revistas e portais de notícias não cansaram de publicar que partidos políticos que formam o chamado “Centrão”, liderados pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), estavam condicionando apoio ao governo Lula ao comando do Ministério da Saúde. No alvo da cobiça, o posto de Nísia Trindade Lima, primeira mulher no comando da pasta desde sua criação, há 70 anos (Radis 245).
Na noite de 2 de julho, na primeira de suas três visitas ao evento, Nísia entrou cercada por outras ministras — das Mulheres, Cida Gonçalves, dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva — sem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que estava confirmado para a cerimônia de abertura, mas por questão de agenda só compareceu ao encerramento. Convidada a declarar aberta a 17ª Conferência Nacional de Saúde, a ministra pegou o microfone para pedir que todos abrissem o evento coletivamente, dando as mãos. E, assim, gerou uma das imagens símbolo desta edição, de união em torno não só de um nome, mas de um projeto coletivo.
No decorrer da noite, diversos grupos subiriam ao palco para defender a permanência de Nísia no cargo — povos indígenas, mulheres, LGBTQIAPN+, delegações de vários estados. Entravam empunhando faixas, deixavam pequenos presentes e saíam levando selfies com a ministra. A plenária lotada deu seu recado, em alto e bom som, repetidas vezes: “Nísia fica! Nísia fica!” e variações como “Oxente, oxente, oxente, a ministra tá com a gente” e “Olê, olê, olê, olá, Nísia”.
Os discursos tiveram como tom principal a defesa da permanência da ministra. A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) afirmou que “o SUS não é negociável”. “Nós queremos Nísia Trindade porque nós precisamos do SUS, de vida, de dignidade”, disse Cida Gonçalves, ministra das Mulheres.
A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, contou que, em sua primeira visita ao gabinete do Ministério da Saúde, observou o painel com fotos dos que ocuparam a cadeira desde a criação da pasta, em 1953: todos homens. “Na saúde, na educação e em outras políticas sociais, as mulheres são maioria dos profissionais que cuidam das pessoas, portanto ter uma ministra da Saúde é muito importante, especialmente uma que se firma pela competência e pelo compromisso com a ciência e com a vida”, completou.
Força coletiva
“Eu me sinto apenas uma representante dessa força coletiva do SUS”, respondeu a ministra, em seu discurso. No lugar de personalismos, ela dedicou a maior parte do seu tempo para falar da “força coletiva de defesa da democracia”. Citou o Conselho Nacional de Saúde, “que resistiu durante os anos mais difíceis da nossa história recente”. Citou também os que pavimentaram o caminho, os que lutaram ao longo da história pela democracia e pelo direito à saúde, os que levantaram a bandeira da igualdade.
Olhando para a plenária, e agradecendo o apoio que recebeu de cada grupo, destacou a beleza da unidade dentro da diversidade: “O importante é nós pensarmos que somos diversos, mas estamos unidos na luta pelo SUS e na luta pela democracia”. Lutas, segundo ela, ainda necessárias, apesar de hoje já ser um novo dia. “Não podemos ter ilusões: temos um caminho duro pela frente e precisamos estar mais unidos do que nunca na nossa diversidade”, disse, fazendo referência aos ataques golpistas de 8 de janeiro. “Precisamos, sem abrir mão das nossas diferenças, fortalecer a nossa unidade.”
Nísia relatou que naquele 2 de julho, na Bahia, ao participar dos festejos pela independência do estado — parte da população baiana resistiu contra os portugueses e as autoridades locais, consolidando a Independência do Brasil —, cantou duas vezes o hino da Bahia, que prega que “com tiranos não combinam brasileiros, brasileiros corações”.
Compromisso com a 17ª
Ao ver o amigo Arlindo Fábio Gómez de Souza, professor emérito da Fiocruz que foi relator da 8ª, lembrou que, em 1986, ela estava em Brasília, com ele, vivendo a conferência que inaugurou a participação social. E se comprometeu com as decisões dos delegados que fizeram o mesmo trajeto, rumo à capital federal, 37 anos depois: “Não queremos uma Conferência apenas como ato, que é muito importante. Queremos uma Conferência com um documento forte que o Ministério da Saúde vai implementar, porque esse é o nosso compromisso”.
A participação social voltou, reforçou ela. A saúde, na dimensão de projeto coletivo contra as desigualdades e pela conquista do bem viver, voltou. “São vocês, somos nós que estamos de volta. Está de volta a ciência como base para políticas públicas. Após esses tempos de negacionismo, que ainda não foram superados, está de volta o diálogo e a reconstrução federativa; ainda que possamos ter divergências, mas está de volta a construção coletiva. É isso que dá força à democracia.”
Como bem resumiu a deputada Erika Kokay (PT-DF), “assim como, para termos direitos, temos que ter o chão básico da democracia, os direitos também levam a democracia para todo canto”.
Dia do fico
Nísia voltou ao Centro de Convenções na manhã do dia seguinte, 3 de julho, para anunciar o aumento de verbas para serviços residenciais terapêuticos e centros de atenção psicossocial [leia mais na Súmula desta edição], em entrevista coletiva — atraindo a imprensa comercial, que pouco valorizou o fato de a sociedade estar ali debatendo soluções para um sistema de saúde no qual só parece ver problemas.
Em sua terceira passagem, na manhã de 5 de julho, esteve ao lado do presidente Lula, em uma cerimônia de encerramento adiantada — inicialmente, estava programada para a tarde. Coube ao presidente colocar um fim definitivo às especulações sobre sua permanência no cargo. “Precisou uma mulher para fazer mais e fazer melhor do que todos [os ministros anteriores] fomos capazes de fazer”, discursou, no que pode ser considerado o dia do “fica, Nísia”.
Depois de abraçar o Zé Gotinha, personagem disputado para fotos durante o evento, Lula afirmou que as conferências têm determinado as melhorias na qualidade da saúde desse país: “Todas as conquistas que nós temos na saúde são obra e trabalho de vocês, que participam das conferências nacionais de saúde exigindo do governo que faça as coisas melhorarem”.
O presidente ressaltou que a democracia ainda corre risco: “O fascismo está solto nas ruas desse país e nós precisamos derrotá-lo. Nós precisamos derrotar o ódio, nós precisamos derrotar as fake news, nós precisamos derrotar a mentira, nós precisamos derrotar a pobreza”.
Falando novamente à plenária, Nísia afirmou que “o Ministério da Saúde é o ministério do SUS”. E repetiu o pedido para que os participantes dessem as mãos: “Cada delegado e delegada, cada conselho, cada um de nós, estamos reconstruindo o Brasil.”
Saúde em todas as políticas
Outra bandeira da conferência foi o aprofundamento da transversalidade nas políticas públicas. A ministra Nísia afirmou ser “central” no governo o compromisso com o combate às desigualdades: “Não há saúde quando há fome, não há saúde quando não há acesso à educação e à cultura, não há saúde quando o meio ambiente é ameaçado, não há saúde quando as mulheres, as crianças, os idosos sofrem violência. Por isso nós estamos aqui e por isso vamos lutar no governo e na sociedade”. Avaliou também que “saúde não existe sem outras políticas públicas”.
A ministra Sonia Guajajara lembrou da ação emergencial interministerial na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, em janeiro deste ano. O Ministério da Saúde decretou emergência de saúde pública e atuou na região conjuntamente com os ministérios dos Povos Indígenas, do Desenvolvimento Social, da Justiça, da Defesa e dos Direitos Humanos e com a Secretaria-Geral da Presidência e o Gabinete de Segurança Institucional. “Assumimos juntos o compromisso de garantir ações de saúde para o povo yanomami e decidimos retirar os invasores do território, porque ali não existia somente uma crise nutricional, mas também uma crise por invasão”, disse.
“O que saúde tem a ver com ambiente?”, perguntou a ministra Marina Silva, para responder que “tem tudo a ver”. “Com as mudanças do clima, as doenças se alastrarão cada vez mais, e já estamos vendo o aumento de enchentes, alagamentos e soterramentos, que deixam as pessoas em condição de insegurança”.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, tomou emprestadas palavras do médico sanitarista Sergio Arouca em seu histórico pronunciamento na 8ª, sobre o conceito ampliado de saúde: “Saúde tem que significar que as pessoas têm direito à comida, à casa, ao trabalho, a um salário condigno, água, vestimenta, educação, a informações, como dominar o mundo e transformá-lo, têm direito ao meio ambiente protegido e uma vida digna e decente”. Pigatto foi uma das poucas vozes a mencionar na cerimônia de abertura a urgência de o país aumentar o orçamento do SUS — mesmo em meio à votação do regime fiscal do governo Lula, que precisava ser aprovado para acabar com o teto de gastos (Radis 249), o que não havia acontecido até o fechamento desta edição. O presidente do CNS apresentou como demanda a elevação dos investimentos em saúde pública para 6% do Produto Interno Bruto (PIB) até o final da atual gestão.
Sem anistia
“Sem anistia” foi uma das frases-chave da 17ª. O presidente do CNS, Fernando Pigatto, exigiu responsabilização pelas milhares de vidas perdidas em decorrência do descaso com a covid-19. Ele destacou que ali, em Brasília, estava a “representação real e amorosa da resistência e da esperança” por um país justo, por um sistema de saúde universal público, igualitário e equitativo para todas as pessoas. “Somos agentes reais de transformação e de resistência em um período da história que nos pôs à prova em uma crise sanitária, confrontando um governo genocida, que agiu para propagar o vírus, difundiu tratamentos ineficazes e desconsiderou a vida humana”, disse. “Nós agimos para salvar vidas, e salvamos milhões”.
Nísia também lamentou a morte de mais de 700 mil brasileiros na pandemia, das quais estima-se que ao menos 200 mil poderiam ter sido evitadas não fosse o negacionismo (Radis 249). “Aquilo que nós pudemos fazer, pudemos fazer graças ao SUS e graças, sobretudo, ao trabalho de tantas trabalhadoras e trabalhadores numa luta incansável”, reconheceu ela.
Lula afirmou não haver um brasileiro ou uma brasileira de boa-fé que não reconheça que, “graças ao SUS, graças a todos os profissionais de saúde, a gente não chegou a um milhão de mortos nesse país (ou mais)”. “As pessoas morreram por falta de atenção, pelo negacionismo, por falta da vacina, por falta de respirador, as pessoas morreram porque este país, em algum momento, teve um governo que não era um governo, era um genocida colocando em prática a mais perversa atitude com relação ao ser humano”, declarou o presidente Lula, para quem esses atos não podem ficar impunes.
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